Que importa quem fala? Nessa indiferença se afirma o princípio ético, talvez o mais fundamental, da escrita contemporânea. O apagamento do autor tornou-se desde então, para a crítica, um tema cotidiano. Mas o essencial não é constatar uma vez mais o seu desaparecimento; é preciso descobrir, como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório –, os locais onde sua função é exercida. Michel Foucault, in O que é um autor? (1968)
O pós-Processo
A literatura encontrou também o seu lugar no meio eletrônico, ao lado de outras artes, na história dos eventos e das ideias. Mais especificamente, o poema, feito ou não com palavras, surge diante de nossos olhos ainda perplexos com os avanços tecnológicos, via computador, seu lugar nos sites e blogs específicos de poesia.
Modalidades eletrônicas de apresentação de textos, literários ou não, mostram que a competência literária não repousa mais em uma formação unívoca, mas em uma multiplicidade de técnicas, e a constatação de uma pluralidade de usos que podem se apropriar de uma mesma técnica.
Alguns artistas se mostraram e se mostram avessos a aderir a outros suportes que não sejam as páginas de um livro. Mas se o livro também já se transforma, como fazer então?
Diana Domingues nos diz que
[…] em todas as épocas, os meios e a linguagem advindos de descobertas científicas renovaram práticas e teorias em suas implicações artísticas, estéticas, filosóficas, antropológicas, educacionais, políticas e econômicas.
E pergunta: “Quão contemporânea é a arte contemporânea quando o computador invade o cotidiano?” [1].
Inovador em sua época com o Poema Processo (contemporâneo do Poema Concreto), Wlademir Dias-Pino, poeta gráfico por natureza, adere aos infopoemas.
Modifica-se o modo de criação, exibição, fruição de sua poética visual, via computação gráfica. Com seu arquivo da enciclopédia visual, o poeta se recoloca à frente de uma nova (?) poética que desdobra a arte do Processo. Outra cartografia.
Contemporâneo das chamadas estéticas informacionais dos anos de 1960 e 1970 (Moles e outros), Wlademir Dias-Pino, junto com sua parceira Regina Pouchain, produz imagens, em uma proliferação contínua de experimentações.
Combinam-se cores e texturas a partir do Photoshop, com suas ricas variáveis, afetando o universo de Gutenberg no texto.
O hibridismo de textos poéticos e imagens, ou de somente imagens autopoéticas, chamam a nossa atenção para do diálogo entre as artes.
Saídas de técnicas de colagem e montagem comparadas às das vanguardas do início do século 20, esse momento marca outro tipo de abstração.
Lembram Mondrian no trabalho com o espaço e seguem linhas de Klee, Malevitch, Boccioni ou Balla, para citar somente alguns pintores (que aliás se filiam ao futurismo).
As imagens se desdobram em imagens. Na edição com que trabalho para este artigo, a mesma que foi apresentada no Espaço Oi (RJ), os poetas Wlademir Dias-Pino e Regina Pouchain propiciam escolhas, seleção (formas de interatividade) de textos e imagens, que o leitor/espectador sofre, parece ser um complexo multidimensional e intrincado de processos de experiência poética. O que nos leva a crer que no ato de recepção o leitor não busque o significado ou a mensagem que costumeiramente tenta ter das imagens e dos textos que lê, mas vai aos poucos construindo seus sentidos.
Nessa transformação na artemídia, Ryszard W. Kluszczynski, em seu artigo “Do filme à arte interativa” [2], afirma que
Da perspectiva contemporânea, podemos até observar uma lógica sui generis no desenvolvimento de formas, atitudes, conceitos e teorias que compreendem o processo que vai do neovarguardista (happening, conceitualismo, Fluxus etc.) ao paradigma atual da cultura multimídia interativa, digital, eletrônica.
Mesmo ainda não sendo inteiramente interativos esses poemas – 3 mil Contrapoemas (poemas abstratos sem palavras) e os 2 mil Anfipoemas (poemas geométricos com a utilização das palavras “luz” e “cor”) –, constituem e apresentam algum tipo de interação perceptual e cognitiva do leitor/espectador.
Os Contrapoemas, segundo Wlademir Dias-Pino e Regina Pouchain, têm como peculiaridades básicas tratar “o térmico e os processos de compreensão como elemento retardador de supervelocidades, para existir, então, a possibilidade de leitura mecânica do cérebro humano”. “Enquanto o Poema Concreto trabalhou com a concreção, nós queremos a compressão que arquiva mais, em menos espaço” [3].
Enquanto os anfipoemas são poemas que expandem a letra, o verso, o traço em cores e luz – convém lembrar, o prefixo anfi- vem do grego amphi = em volta, de ambos os lados, em torno de, em meio a, entre, através de… –, os contrapoemas fazem o movimento da imagem, em suas múltiplas possibilidades gráficas.
Nessa poética experimental literográfica, os poemas em tela exercitam disjunções entre letra e imagem e compõem um todo em que as partes se deslocam infinitamente. Do poema de palavras ao poema-imagem. Palavra e imagem deslocam-se de seu lugar de origem para exercitar-se em experiências-limite. Fora da escrita, fora da fonte subjetiva de enunciação, bem como do enunciado – e “livre[s] de qualquer centro” [4].
Os contrapoemas apontam para o presente ou para o futuro da arte digital. O movimento faz parte das mudanças ópticas que cada slide apresenta. Pinturas cinéticas, imagens produzidas por programa anterior ao computador. Transformações radicais das imagens e também do conceito de representação – imagens que deixam de ser o antigo objeto óptico do olhar para se converterem em “imagerie” (incessante produção de imagens).
Annateresa Fabris cita Rénaud quando ele aponta para “o novo estatuto da imagem e o que é possível produzir nos terrenos da estética e da arte” [5].
Parece-me que os contrapoemas de Wlademir Dias-Pino e Regina Pouchain vão em direção a uma estética do processo que se impõe sobre o objeto. Desdobramentos, versões, contraestilo de A ave [1954] e Solida [1956].
Arte gráfica, arte literária? Os conceitos se transformam e estão sujeitos às transformações históricas.
Trata-se de obra de natureza processual, que enfatiza sua qualidade de não acabada (tanto que Dias-Pino e Pouchain não terminam os 5 mil poemas), sempre produzindo imagens.
Ler essas imagens com paradigmas a que estamos acostumados a ler parece impossível, pois a imagem não se deixa apreender. Trata-se de um modelo mais complexo, que leva em conta elementos intrincados de temporalidades heterogêneas de que toda imagem é feita.
“Um poema não se faz com palavras, mas com ideias.” Eis um paradoxo que os contrapoemas parecem explicitar.
Cada imagem grapho-óptica é depositária de formas gráficas, uma ruptura que se estampa e nos toca, nos impressiona.
Restam-nos impressões (de coisa grapho-impressa) – não é um gesto de pressão, mas um resultado que é uma marca.
Para que uma impressão de passos se produza enquanto processo, é preciso que o pé se enterre na areia, que o caminhante esteja ali, no próprio lugar da marca a ser deixada [6].
O mesmo se dá com esses contrapoemas. O trabalho realizado pelo artista é o de imprimir imagens sobre imagens. Como um palimpsesto digital.
Deixar impressões na tela que vão se apagando à medida que outra vai se formando. Como o pé na areia. Para que a impressão apareça enquanto resultado é preciso também que o pé se levante, se separe da areia e se afaste para outras impressões que se produzem posteriormente. Agora o caminhante não está mais ali.
Como o poeta responde à nossa época, às invenções técnicas? Abstração? “A arte abstrata tende a apagar os vestígios de autoria na proporção inversa em que as instalações têm necessidade de deixar o rastro de um registro” [7]. São “as incertezas do opus” [8].
O poeta redefine a relação de espectador com a obra, transformando pensamento e visualidade. Essas imagens – contrapoemas – não visam representar qualquer coisa externa a eles. Designs eletrônicos, complexidade gráfica, eis o que as poéticas experimentais trazem à interface do poeta à máquina.
A poética visual dos contrapoemas apresenta novos parâmetros de arte visual. Desafia-se a teoria. A complexa variedade de formas que são desenvolvidas no processo é infinita. Na obra de arte virtual produzida digitalmente é o processo e a dinâmica que se instalam nessas paisagens virtuais que a arte gráfica de Dias-Pino nos possibilita ver.
Através dos contrapoemas de Wlademir Dias-Pino podemos observar que as mudanças no campo da arte, advindas de propostas dos anos 1960-1970, por exemplo, do Poema Concreto, do Poema Processo, entro outros, liberam a palavra para que com ela o poeta a crie sem limites. Jean Baudrillard [9] nos fala de “autorreprodução ao infinito”, “modo fractal de dispersão” etc.
O contrapoema seria assim uma modalidade das poéticas experimentais em que encontramos, no limite, as mais variadas vertentes paradigmáticas da arte contemporânea (incluindo aí a arte abstrata), realizada através de confluências, superposições dessas vertentes.
Experimentação à parte, os contrapoemas pertencem a um projeto maior – a Enciclopédia Visual – e mantém com ela, a partir desse encontro, um princípio fundamental – não se sabe jamais exatamente no que vai dar. Inesperada, instável e aberta, a forma se revela ao poeta como se o “inconsciente óptico” de que nos fala Walter Benjamin [10] acontecesse, ou um “inconsciente técnico” de que nos fala Didi-Huberman [11] permeasse as imagens aqui mostradas.
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Referências bibliográficas:
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In Obras escolhidas, vol. I, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance par contact. Paris: Minuit, 2008.
DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia. São Paulo: UNESP/Itaú Cultural, 2009.
FABRIS, Annateresa. A imagem hoje: entre passado e presente. In DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia, São Paulo: UNESP/Itaú Cultural, 2009.
FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior. In Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
KLUSZCZYNSKI, Ryszard W. Do filme à arte interativa. In DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia. São Paulo: UNESP/Itaú Cultural, 2009.
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Notas:
[1] Diana Domingues, Arte, ciência e tecnologia, p. 25.
[2] Ryszard W. Kluszczynski, Arte, ciência e tecnologia, p. 219.
[3] Exposição Oi Futuro, Rio de Janeiro, set.-nov. 2008.
[4] Michel Foucault, O pensamento do exterior, Ditos e escritos III, p. 219.
[5] Alain Rénaud citado por Annateresa Fabris, Arte, ciência e tecnologia, p. 201.[6] Didi-Huberman, La ressemblance par contact, p. 309.
[7] Wlademir Dias-Pino, carta aberta de julho de 2009. A aventura visual de Wlademir Dias-Pino, por Adolfo Montejo Navas (matéria de capa). Revista Dasartes, Rio de Janeiro, n. 5, ago.-set. 2009.
[8] Michel Foucault, O que é um autor?, Ditos e escritos III, p. 265.
[9] Jean Baudrillard, A transparência do mal, p. 9.
[10] Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política, pp. 93-95.
[11] Didi-Huberman, op. cit., p. 35.