“De maneira semelhante à dos magnetos que imantam os anéis de ferro que atraem outros anéis de ferro, a Musa inspira os homens, ela mesma; a partir dessas pessoas inspiradas, outra cadeia de pessoas recebe a inspiração. Isso, porque todos os bons poetas, épicos ou líricos, compõem seus belos poemas não pela Arte, mas porque eles são inspirados e possuídos. Como os foliões coribantes que quando dançam não estão em seu juízo, assim os poetas líricos não estão no deles quando estão compondo seus belos cantos: mas eles, sob o impacto da música e do metro, são inspirados e possuídos; como as bacantes que tiram leite e mel do rio quando sob o poder de Dioniso, mas não quando em sã consciência.
Assim a alma do poeta lírico faz o mesmo, como eles próprios dizem; pois eles nos dizem que tiram cantos das fontes de mel que saem dos jardins e dos vales das Musas. Eles, como as abelhas, abrem seu caminho de flor em flor […] e não há invenção para eles até que estejam inspirados e fora de seus sentidos e de sua mente.
Se não atingirem esse estado, não terão como pronunciar seus oráculos […] Não é pela arte que canta o poeta, mas por poder divino.”
W. J. Bate, “Sócrates falando a Íon”, 1970 [1].
A isso, em parte, o pintor contemporâneo Francis Bacon [2], que mereceu um livro inteiro de Gilles Deleuze [3], chama de acaso; ao resto, talvez, de instinto.
Senão, vejamos alguns trechos retirados de suas Entrevistas:
“a pessoa possivelmente se aperfeiçoa ao manipular marcas que foram feitas ao acaso, marcas que ela faz de forma totalmente irracional. Quando nós nos condicionamos através do trabalho e da constância, ficamos mais atentos para aquilo que o acaso nos propõe. No meu caso, sempre que um resultado me agrada, sinto que ele foi consequência de um acaso sobre o qual pude trabalhar. […] Fazendo aquelas manchas sem saber como elas vão se comportar, surge alguma coisa que de repente o instinto apreende como sendo aquilo que você poderia começar a desenvolver.”
E ainda:
“Quando se deixa o acaso agir, certos níveis mais profundos da personalidade vêm à tona. Eles vêm à tona inevitavelmente. Eles vêm à tona sem que o cérebro interfira na inevitabilidade de uma imagem. Isso parece provir diretamente do que resolvemos chamar inconsciente, com a espuma do inconsciente circundando a imagem – é isso que lhe dá vigor. […] A imagem sensorial começa acidentalmente a formar-se.”
Cuidado, porém, com a psicanálise e a literalidade que achata, adverte o pintor. Além do mais, ela não leva em conta o estilo do artista. Só se interessa por como surgiram temas e conflitos e não por como foram absorvidos. Isso sem falar em Ricardo Piglia e em seu Laboratório do escritor [4], excepcional e esgotado: “ela investe como um touro sobre as zonas obscuras, manancial do artista”.
Voltando a Bacon e a seu entrevistador:
“Não é em torno disso que gira toda a arte? Que uma coisa seja tão factual quanto possível e, ao mesmo tempo, tão sugestiva ou reveladora às áreas da sensação, em vez de parecer simples ilustração do objeto que se pretendeu fazer.”
“É na estrutura artificial que a realidade do tema será aprisionada, e a armadilha, a fechar-se sobre o tema, deixará à mostra somente a realidade.”
“Sempre se inicia o trabalho pelo tema, por mais vago que ele seja, para depois construir uma estrutura artificial em que se aprisionará a realidade do tema com que se começou a trabalhar. […] O tema é uma isca. A gente criará um realismo equivalente ao tema, que passará a ocupar o lugar do tema. Sem um tema você automaticamente cairá na decoração.”
“E acho que tem de conhecer, mesmo que precariamente, a história da arte. Da pré-história à época atual.”
“No trabalho artístico você entra em uma espécie de transe mediúnico; melhor, você age pelo instinto enraizado na cultura, a prática, no saber.”
“O mistério da realidade só poderá ser apreendido se o pintor não souber como está procedendo […].”
“Como reproduzir a aparência? É um método ilógico de proceder, um meio ilógico de tentar fazer aquilo que, se espera, virá a produzir um resultado lógico – no sentido de haver a esperança de que, subitamente, se possa fazer uma coisa totalmente ilógica, mas totalmente real; como no caso de um retrato onde essa coisa fosse reconhecida como a pessoa retratada.”
“Acho que a arte verdadeira é profundamente ordenada. Mesmo que dentro da ordem possam ocorrer coisas demasiadamente instintivas e acidentais, acho que elas brotam de um desejo de ordem e também de reconduzir o fato a sistema nervoso de uma maneira mais violenta… De geração em geração, através daquilo que os artistas fizeram, os instintos se modificam. E com a mudança dos instintos [ou será a expressão dos instintos?] surge uma renovação da sensibilidade que me leva a perguntar de que maneira, mais uma vez, refazer determinada coisa para que ela fique mais clara, exata e violenta.”
“A arte é uma obsessão pela vida. Nossa maior obsessão somos nós mesmos.”
“As pessoas gostam de achar um enredo escondido. Elas sentem falta de uma espécie de ficção na Arte.”
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Já Fayga Ostrower comenta em seus livros – e particularmente em Acasos e criação artística [5], no qual estabelece a relação aproximada entre cor = som; imagem = palavra; linha = sílaba, fonema; espaço = período – que um dos elementos mais invocados na criação artística é o do acaso significativo. (Crianças não têm acasos significativos, diz a autora: para elas tudo é natural ou tudo é acaso.)
Apresentamos, a seguir, uma síntese dos trechos que mais se ligam à questão do acaso, tal como é visto pela autora:
Qualquer ato pode ser significativo, mas cuidado, isso não quer dizer que seja artístico.
Ato significativo, o que vem ele a ser?
Mera coincidência?
Sincronicidade?
Catalisador que potencializa a criatividade?
Sugestão de um tema?
Exacerbação de algum mito pessoal?
Até aqui vai a psicanálise – não além, diz a autora, pois não se preocupa com o estilo da obra feita.
Além desse início é, entretanto, indispensável o envolvimento por uma ambiência que propicie a eclosão da semente (nos 46 cromossomos) e seus desenvolvimentos por meio da linguagem verbal e não verbal.
Esses desenvolvimentos, na psicanálise, são reduzidos a meras ilustrações – ilustrações de casos clínicos. Assim, as formas visuais não apontam para dentro de seu próprio conteúdo, e sim para fora, para algum significado alheio – que existe sem elas também –, para um simbolismo intelectualizado preestabelecido.
“A psicanálise ignora na arte a existência de uma linguagem própria, constituída por termos de alto teor sensual que permeia os significados criados.”
“Há inocência ou indiferença, por parte da psicanálise, em frente a questões de estilo”, diz Ernst Kris [6], citado pela autora.
O estilo representa a experiência da personalidade adulta no contexto de determinada cultura. Obras são respostas a uma vida vivida: a linguagem artística (de forma, de palavra, de estilo, de condensação de experiência), consegue expressar a fluidez dos sentimentos e integrar os vários níveis acima.
De acordo com a formulação de Eisenstein [7], a obra de arte deve conter desde a camada dos pterodátilos até a camada da forma mais elevada de consciência. Podemos assim registrar: abuso de um lado – demência; abuso do outro – robotização.
Continuando, agora, com a síntese de Fayga Ostrower:
Na experiência artística sempre existem tensões. Já este ponto demonstra o quanto, ao recorrer à simples descarga de tensões, a arte-terapia se afasta da arte.
O sentido da arte é ampliar o viver e torná-lo mais intenso, nunca diminuí-lo ou esvaziá-lo. Conhecer sua experiência por dentro: síntese dos sentimentos; síntese da linguagem. Equilíbrio dinâmico que absorve as tensões, não as anula. A geometria são formas estáticas.
As formas visuais são seu próprio conteúdo.
As formas (imagens) se transformam em conteúdos e vice-versa; as formas sensoriais comunicam significados.
Na poesia, as palavras dentro da forma adquirem densa significação. As linguagens simbólicas se fundamentam pela conversão formas/significados e por meio dela, por objetivar vivências subjetivas, dando-lhes forma.
Na ciência, parte-se de um modelo, formulam-se hipóteses (referencial) e já é meio caminho para a resposta.
Valores na arte
Segundo Giulio Carlo Argan [8],
a arte cria valores, pois a cada passo pergunta pelo sentido do agir e do operar, de modo a ampliar seus próprios fundamentos. Ético = fazer; estético = projetualidade.
A consciência que apreende uma obra de arte realiza uma redução fenomenológica que leva a uma “epoché” (colocação entre parênteses do mundo objetivo).
Ocorre uma ampliação da consciência através da sensibilidade.
O estético encerra o ético.
Hoje os valores são contestados.
Falta uma unidade de medida.
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Notas:
[1] Walter Jackson Bate, Criticism: the major texts. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1970.
[2] David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[3] Gilles Deleuze, Francis Bacon – Logique de la sensation. Paris: Seuil, 2002.
[4] Ricardo Piglia, O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.
[5] Fayga Ostrower, Acasos e criação artística. 2.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
[6] Ernst Kris. Psicanálise da arte. Trad. Marcelo Corção. São Paulo: Editora Brasiliense, 1968.
[7] V. V. Ivánov, Dos diários de Serguei Eisenstein e outros ensaios. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Noé Silva. São Paulo: Edusp, 2009.
[8] Giulio Carlo Argan, Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.