Estudar literatura hoje é algo estranho; deveria ser a coisa mais fácil, e, no entanto, é o troço mais complicado. Deveria ser a coisa mais fácil, porque o que é necessário é pouco, e está disponível. Para estudar literatura direito você só precisa de quatro componentes básicos: livros, tempo, boca e ouvido. Idealmente, a coisa funcionaria da seguinte maneira: a pessoa lê uma diversidade de textos, simplesmente por curiosidade, porque são interessantes e dão prazer; seja devido àquilo que as obras têm de desafiador, seja por causa das diferenças entre livros de escritores diversos ou de um mesmo autor, naturalmente surge um impulso para construir uma questão, para formular uma hipótese de leitura que organize aquilo que acontece na massa narrativa que foi absorvida, e que de outro modo permaneceria amorfa ou autocontraditória. Em sua forma proposicional mais abstrata a hipótese de leitura seria: objeto “x” significa “y”, onde “x” corresponde a um corpus específico e “y” àquilo que é trazido pelo leitor, e que deve “grudar” em tal corpus, como se já estivesse lá desde o começo. “Significar” aqui é um verbo que parece de ligação, mas só consegue chegar a sê-lo como resultado do trabalho interpretativo. A hipótese de leitura é aquilo que acaba fazendo a mediação entre a objetividade do universo verbal construído e os interesses particulares do indivíduo; quando bem sucedida, ela faz com que fique difícil saber o que pertence a quem, o que eu trouxe de meu para a obra e o que ela mesma fornece.[1] Mas a hipótese de leitura também faz a mediação entre o leitor e alguma espécie de comunidade. Esse é o primeiro ponto importante que eu gostaria de enfatizar.
Em decorrência do entusiasmo que acompanha a articulação do problema, ou pela dúvida em relação à sua solidez, o próximo passo, que também se dá como uma consequência do anterior, é o de comentar com alguém aquilo que se refletiu. Esse é o momento da exteriorização, do tornar público – nem que o público seja somente uma pessoa. Se o texto apresenta-se como uma primeira instância de alteridade, a discussão representa uma segunda esfera, um salto para fora da relação imaginária com as obras; ela já traz consigo a necessidade da exposição, do impulso retórico que organiza o material e que incide diretamente sobre o conteúdo do que é exposto. Talvez o que faça a distinção neste modelo entre o amador e o profissional seja a presença da escrita, pois seria ela o que diferenciaria a exaltação do clube de leitura, ou da conversa de bar, do rigor da crítica publicada em papel[2]. Mas é importante enfatizar que não há aqui uma valoração a priori entre essas duas modalidades de vida literária, pois é possível tanto louvar quanto atacar a exatidão e o trabalho, por um lado, ou o ardor e a espontaneidade, por outro. Biblioteca e bar constituem um campo de tensão cujo valor somente assume forma em contextos específicos, que devem ser descritos e analisados caso a caso[3]. Também vale notar que a fala ou escrita não precisa vir no final; pelo contrário, elas podem acompanhar cada etapa do processo e torná-lo mais intenso. Expus o processo em fases, para tentar ser mais claro, mas as etapas podem misturar-se.
Esse circuito de vida literária está mais disponível atualmente do que em períodos passados. Com o surgimento das versões de bolso, os livros tornaram-se objetos baratos, deixando de ser os artigos de luxo que antes eram: como produto material, democratizaram-se. Com o advento da internet, a acessibilidade aos mais diversos textos tornou-se absurda e em alguns poucos minutos é possível baixar páginas suficientes para uma década de leitura.[4] A conectividade proporcionada pelos computadores em rede diminuiu igualmente a distância entre o Brasil e o exterior e para quem lê em língua estrangeira a produção de outros países perdeu algo da alteridade que antes possuía; não é mais necessário ter reverência alguma por aquilo que se faz nos Estados Unidos, França ou Alemanha. O resultado de tudo isso foi um positivo esvaziamento da aura da cultura, que por sua vez modifica os objetos de dentro. Pois quando a cultura não mais se apresenta como um baluarte de valores transcendentes a ser preservados, quando não mais pode reivindicar falar pelo humano em abstrato, quando a ideia de gênio não faz mais sentido, quando não é mais preciso salvaguardar um espírito nacional – quando tudo isso ocorre, vem para o primeiro plano a essência de artefato das obras literárias, que por sinal com isso conquistam a liberdade de não precisar mais ser perfeitas. Algo de semelhante é perceptível com a fragilização das divisões de gêneros artísticos, o que permite misturas de objetos de proveniências diferentes, desfazendo hierarquias entre as diversas formas de manifestação artística e podendo aproximar a literatura da crítica.[5] Hoje é plenamente possível misturar cinema com romances, quadrinhos com contos, a canção popular com a poesia. O resultado desse processo é que fica muito mais fácil apropriar-se dos textos e inseri-los em uma dinâmica viva de questionamento. Haveria, assim, ainda por cima, uma rico potencial de inserção da literatura naquele tipo de sociabilidade brasileira marcado pela informalidade, pela proximidade e facilidade no trato.
E no entanto estudar literatura hoje é a coisa mais complicada, por uma série de razões. Duas delas eu gostaria apenas de mencionar, mas não desenvolver, porque isso levaria para uma outra direção. A primeira tem uma origem social ampla e refere-se à possibilidade de que as transformações por que tem passado a cultura nos últimos 30-40 anos estejam afetando a condições básicas da experiência da literatura. Muito já se falou na ascensão de uma cultura da imagem, o visual turn, que estaria deslocando o mundo da letra[6]; a digitalização do mundo e a presença constante de estímulos sensoriais cada vez mais fortes também têm levado a questionamentos a respeito de um novo regime de produção sígnica e a emergência de distúrbios como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).[7] O complicado de lidar com esse tema é não cair em uma postura moralista e queixosa, que detectasse no presente somente decadência e regressão, que são inegáveis. Para evitar as simples lamúrias, deve-se refletir também sobre os potenciais instaurados por tudo aquilo que é traz consigo destruição. Seja como for, um segundo motivo, relacionado com o anterior, refere-se ao próprio estatuto do que é a literatura. Se tivesse mais tempo (e energia), eu poderia defender a hipótese de que o surgimento daquilo que hoje chamamos de Teoria[8] é tanto sintoma quanto causa para uma perda de nitidez sobre o que é a literatura, que atestaria uma diminuição do interesse que ela seria capaz de gerar. É quase como se, por exemplo, diante da ficcionalização universal gerada pela propaganda, a literatura, para permanecer enfática, estivesse obrigada hoje a incorporar um material conceitual em sua tessitura, ao menos uma autoconsciência de si como coisa construída.[9] Outro ângulo, mais empírico, para detectar o mesmo fenômeno seria perceber como estão minguando os eruditos, aqueles professores que só leem literatura, e como está proliferando a ideia de que é necessário ter um “arcabouço teórico” para ler qualquer obra, como se fosse impossível abordar qualquer objeto diretamente.
O assunto que procurarei desenvolver aqui refere-se à perda do papel formativo da literatura e sua completa inserção, ao menos no Brasil, no mundo universitário. A socialização dos adolescentes já há bastante tempo passa completamente ao largo da literatura, que é vista como inescapavelmente associada ao ambiente escolar.[10] Os veículos de socialização atuais são o esporte e a música popular, a televisão e o cinema, os videogames, ou programas da internet como o falecido Orkut ou o facebook, que, diga-se de passagem, contribuem para moldar um determinado tipo de horizonte de expectativa em relação ao que seria uma narrativa. Aqueles ambientes coletivos de debate, de convivência com a literatura – que, sem dúvida, sempre foram precários – deixaram de existir na adolescência e somente surgem na universidade. É ela que será a instituição fundamental para a manutenção da vida literária no Brasil, e basta tem em mente a fragilidade da inserção da literatura na academia (para não dizer nada da precariedade da inserção da universidade na sociedade brasileira) para perceber como sua sobrevivência é incerta. Eu me arriscaria a dizer que os estudos literários existem com a relativa força que têm devido ao fato de que custam pouco e de que se aproveitam do poder da inércia, pois eles sofrem de uma dificuldade para se justificarem no ambiente universitário tanto devido à falta de função social da literatura (para quê estudar tanto algo que não serve para nada?), quanto à tensão entre lógica interpretativa e a démarche científica, que tentarei expor em seguida. Na parte das perguntas poderemos ampliar a discussão para o contexto mais geral no qual isso ocorre, o lugar Letras das humanidades no Brasil, a proximidade institucional entre literatura e linguística e seus efeitos, a política de abertura de novos cursos, a pressão pedagógica sobre a literatura etc.. Porém meu interesse agora é pensar um pouco sobre como determinados aspectos da vida acadêmica entram em conflito com o ideal de convívio com as obras literárias com o qual comecei.
Mas antes de entrar nesse assunto, vale a pena apontar para uma possível objeção. Questionaria um interlocutor imaginário: “Dizer que a vida literária só existe na universidade, vindo de um acadêmico, é uma limitação de visão e princípio de auto-engrandecimento; nunca houve no Brasil tantos eventos literários, tantas editoras, tanta atenção direcionada à cultura.” Sem dúvida, existe hoje no Brasil uma indústria da alta cultura relativamente bem estruturada, o que, sob certo ângulo, parece uma vitória. Porém, aquilo que a move é um sistema de valorização do capital simbólico que não difere tanto da valorização do capital real. Mesmo quando não há um lucro direto envolvido (vários bancos têm institutos culturais), a lógica organizadora é a da produção de eventos, de valorização do nome próprio, do estrelato; o princípio de circulação é o da celebridade e a agenda é voltada para aquilo que é chamativo e que pode funcionar bem no mercado. Muito da fragilidade da literatura brasileira contemporânea pode ser relacionado ao modus operandi da indústria cultural, que trabalha com o consenso mais do que com a crítica, mais com o espetáculo mais do que com a pesquisa, a estratégia do que o debate.[11] É óbvio que não é possível fazer uma separação clara e que a academia e a indústria da alta cultura possuem vários pontos de interseção, na verdade cada vez maiores; e haveria ainda que levar em conta o papel das instituições governamentais, que podem inclinar-se ora mais para um lado, ora mais para o outro. Com efeito, seria interessante investigar o processo de estreitamento das relações entre a universidade e pública e a indústria da alta cultura; o meu ponto aqui, porém, é tão-somente o de que a cultura como business não favorece aquela prática que descrevi anteriormente como sendo a ideal para a vida literária.
Mas para voltar para a universidade: é importante ter em mente que antes de entrar o ingressante já traz consigo uma imagem do que seria a literatura. Salvo engano, quem decide fazer o vestibular para o curso de Letras porque gosta de literatura (o que não é tão comum assim), geralmente é motivado por um desejo solitário, como a escrita de poemas ou de diários, e não pela experiência de um grêmio literário ou de um ambiente de discussão em casa, por exemplo. A associação entre literatura e intimidade, interioridade, silêncio e isolamento tornou-se tão comum que adquiriu ares de natureza, como se essas características pertencessem intrinsicamente ao objeto, o que não é o caso. Sem dúvida, essa redução ao individual não é fortuita e pertence a um movimento imanente da literatura: a ideia romântica de estilo, o corpo do escritor na escrita, suplantou a preocupação retórica que marcava boa parte da literatura até o século XVIII; por outro lado, o ideal modernista de uma autodeterminação total do artefato dificulta a comunicação e a formação de uma experiência coletiva. No entanto, nada disso representa uma barreira intransponível para a discussão; pelo contrário, o estilo pode tornar-se objeto de investigação, e uma resistência à paráfrase e um afastamento da linguagem comum podem funcionar como um mecanismo de seleção de leitores e gerar ainda mais interesse entre certo tipo de pessoas inquietas. Mas o fundamental aqui é que no presente a formação passa a ser mais tardia e toma corpo de fato somente na universidade, o que traz consigo problemas específicos.[12] A construção da bagagem literária dá-se dentro de um contexto institucional. A forma-curso, e o seu componente definidor por excelência, a avaliação, não apenas submetem a leitura a uma dinâmica de meios e fins, como também tendem a sugerir que o objeto é do professor e não aos alunos.[13] Fica problemático sentir-se confortável na cultura, apropriar-se do objeto, porque ele parece pertencer a um outro – e cada um tem o seu outro: o do aluno é o professor; o do professor jovem é o mais velho; o mais velho, um já morto. Não é à toa que um superego intelectual opressor é algo tão corriqueiro no Brasil.[14]
Usei a expressão “sentir-se confortável na cultura”, e ela precisa ser esclarecida. “Confortável” aqui significa perceber como a cultura é, ao mesmo tempo, um âmbito de liberdade, que se subtrai à mera reprodução do existente, e uma esfera que perpetua relações de dominação: na sociedade desigual em que vivemos, você só pode ter tempo de ler literatura porque alguém está trabalhando para você. “Conforto” então é um termo contraditório, que está ligado a um mal-estar, à percepção tanto da distância que separa a construção bem sucedida de uma obra daquilo que fornece a indústria da cultura, quanto da insuficiência do que a arte pretende ser, a distância daquilo que promete e realmente é.
Autocrítica
Mas o que isso tem a ver com a dinâmica de academização da literatura? Muito, pois o fechamento da universidade, em grande medida necessário, facilita o apaziguamento do mal estar que deveria ser o ponto culminante da formação. A institucionalização e a profissionalização tendem a ver a literatura como taken for granted, como algo solidamente estabelecido, o que dificulta perceber a tensão entre a literatura e a sociedade, bem como entre as obras e o ideal de cultura que subjaz a elas. Mas vejamos mais alguns exemplos da inadequação da vida literária em relação à universidade. Um efeito mais nocivo do que a aula, que ademais pode ser convincentemente defendida, é gerado pelas transformações no modo de produção acadêmica (transformações, por sinal, que tornam possível pensar a prática de escrita com um vocabulário da produção, algo antes inimaginável, quando ainda se falava das “coisas do espírito” para designar a literatura e as artes). Já sugeri que a presença da avaliação tende a retirar do aluno aquela curiosidade desprovida de interesse típica de uma experiência mais imediata da literatura – que, incidentalmente, traz consigo um resquício da brincadeira infantil e do prazer que ela gera; porém algo mais problemático ainda pode ser a ideia de pesquisa na graduação, como na Iniciação Científica. Porque aqui não apenas existe uma distinção clara entre meios e fins, estruturalmente sinalizada pela obrigatoriedade de se obter “resultados”, mas também, como dirá qualquer manual, o corpus deve ser bem delimitado. Há pelo menos três consequências disso: em primeiro lugar, a bagagem do aluno tenderá a ser mais homogênea, se não limitada; além disso, a coerência da questão a ser investigada muito possivelmente perderá em criatividade, ao adotar a configuração mais óbvia (e segura), a de autor ou movimento literário; finalmente, se por um lado a pesquisa encoraja uma apropriação do objeto (afinal, ela é minha pesquisa), por outro, ela desestimula o interesse por aquilo que os outros fazem (afinal, é a pesquisa deles).[15]
Muitas pessoas vão dizer que a Iniciação Científica geralmente é feita com bolsa de estudos, que ajuda financeiramente alunos que de outro modo teriam dificuldade de fazer o curso de Letras, e que ela premia o trabalho com a literatura, incentivando o discente a estudar mais. Isso nos leva a pensar na questão do financiamento, que nada mais é do que a associação direta entre estudo e dinheiro. O argumento que gostaria de defender é o de que há um desvio de concepção. Para os estudos literários, o único gasto que realmente importa é o da compra de livros, para a qual não há editais nem verbas regulares; não existe uma política de fortalecimento das bibliotecas universitárias, que vão aumentando seus acervos irregularmente, à medida que aparecem recursos aqui e ali. Por outro lado, aquilo que é mais facilmente financiável não tem tanta relevância assim, e é ligeiramente cômico ver pesquisadores de literatura fazendo projetos para a aquisição de equipamentos – quantos computadores é possível ter? Com um desktop, um laptop, um scanner e uma impressora tem-se tudo o que é necessário para ler e escrever. Porém o mais problemático é a alocação de recursos para eventos. Principalmente no caso dos internacionais (ou em lugar com praia), são muito frequentemente ocasiões para turismo intelectual. Como os congressos são geralmente organizados de forma a agregar um grande número de participantes, eles tornam-se máquinas produtoras de comunicações e os vinte minutos que você tem para expor o seu trabalho nessa imensa cadeia de apresentações, como em uma esteira transportadora (os as consultas da Unimed), significam quase nada. Diante disso vale a pena defender o cafezinho ou a cerveja: muitas vezes as ideias mais interessantes aparecem conversando com colegas inteligentes na cantina ou em um bar.[16]
Além disso, quando a necessidade desnecessária do financiamento é naturalizada, ela deixa de servir a um fim específico e passa a funcionar como um motor automatizado: o pesquisador vai se transformado em um administrador de projetos. Gostaria de falar duas palavras sobre a tensão existente entre o projeto e a escrita; antes disso porém vale observar que o comportamento em projetos coletivos difere do ideal de comunicação com o qual comecei. Muitas vezes os grandes projetos de pesquisa possuem o mesmo problema que trabalhos em grupo na graduação. O professor pede para os alunos que façam um seminário, digamos, sobre O Retrato de uma Senhora, do Henry James. Ao invés de todos lerem e discutirem o romance, para ao final apresentar suas conclusões, talvez não unânimes, para a turma, o livro é dividido entre os quatro membros do grupo e cada fica com 11 dos 55 capítulos. O mesmo ocorre em grande parte dos projetos de colaboração envolvendo várias universidades e vários pesquisadores; cada um fala a partir de sua especialidade, de modo a gerar publicações nas quais falta o desacordo e o dissenso, e que tenderão a ser ou bastante homogêneas, ou fracamente coesas.
Se o projeto parece ser imprescindível para a prática da pesquisa nas ciências duras, nos estudos literários ele é algo estranho. Já mencionei o que há de questionável na lógica de meios e fins inerente à investigação científica, bem como na limitação da experiência de leitura a um corpus pré-formado. Agora vale acrescentar que o projeto possui uma estrutura de ficção, uma vez que ele antecipa algo que por definição não é previsível. O momento de descoberta na literatura, creio, aquele que corresponde ao experimento no laboratório, é o da elaboração na escrita, mas que pode também ocorrer na aula.[17] É ele que o projeto impossibilita, pois não consegue lidar nem com a leitura, nem com a escrita como procedimentos de descoberta. Ou seja, quando lemos, abrimo-nos para associações que destroem a coerência do objeto inicialmente proposto; quando escrevemos, descobrimos o que sabíamos sobre ele. O projeto antecipa (e assim potencialmente constrange) justamente aquilo que surge como novo e desconhecido; para ser válido, e não fruto de má-fé ou wishful thinking, o projeto, a rigor, deveria ser escrito no final da pesquisa. Ou, numa formulação mais generosa: projeto bom é aquele foi modificado, que perdeu os seus contornos iniciais. Quantas dissertações de mestrado ou teses de doutorado foram abandonadas no meio ou resultaram em algo pífio, porque o orientador insistiu que o pós-graduando se ativesse ao projeto original…
De tudo isso que foi dito, surge uma primeira conclusão inicial, a saber, que leitura e a interpretação solitárias são patológicas. Como disse no começo, o entusiasmo de se ler algo fascinante já traz consigo o impulso de contar para alguém, talvez ele já seja ele mesmo esse impulso. Quando, na universidade, não há discussão, quando não se forma uma cultura literária, um padrão diferente se estabelece. Como leitura e escrita são fenômenos sociais (assim como é social o isolamento a elas associado), como não podem acontecer sem a projeção íntima de algum outro, na ausência de pessoas este converte-se em um Outro, uma força abstrata e exterior, que nas melhores universidades pode tomar o formato da Tradição ou do Saber, entidades inabordáveis e inatingíveis, mas que em instituições mais frágeis assume a imagem… da Capes, à qual distorcidamente atribui-se o papel de entidade opressora e reguladora. Os efeitos dessa substituição de pessoas por uma imagem são impressionantes. Ao afastar o sujeito de uma relação com a coisa, as incertezas, salutares, a respeito da consistência da interpretação dão lugar a um esforço para cumprir metas, adequar-se a regras, ser aceito. Essa vontade de inclusão favorece a homogeneização e desestimula a crítica. A mediação por esse Outro não deixa de ter as suas vantagens, pois elimina toda a angústia advinda da necessidade de se auto-definir e de caracterizar o objeto. Se esse Outro tem um lado opressor, pois demanda a adaptação, também desempenha uma função apaziguadora, a do acolhimento no seio da profissão/instituição – além fomentar a competição e alimentar o narcisismo.
E para fechar, uma segunda conclusão: se a universidade é um meio insuficiente para promover uma vida literária, ela é o que há de disponível no momento. Com efeito, a academia não é aquele monólito que as pessoas que têm dificuldade com ela creem que seja. Ela é uma estrutura repleta de lacunas, de espaços que permitem práticas diferentes, incluindo a sua autocrítica (como o próprio espaço que esta fala pressupõe e estabelece). A universidade, historicamente, já teve muitas formas, e não é impossível que desenvolvimentos do presente façam que ela se desfigure a ponto de tornar-se irreconhecível[18]. A questão, portanto, é a de saber como agir nela, tanto aproveitando as oportunidade que apesar de tudo permitem uma vivência literária mais genuína, quanto usando a universidade como meio de socialização que aponte para além de si, seja no bar ou na roda de conversa, no grupo de estudo, no sarau, ou mesmo em um movimento social ou partido. Se não estou enganado, essa é uma perspectiva que une uma posição teórica a uma forma de ação.
[1] Para uma exposição mais pormenorizada sobre a hipótese de leitura como método interpretativo, cf. F.A. Durão, “Reflexões sobre a metodologia de pesquisa nos estudos literários”, in Delta. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 31, p. 377-390, 2015. Disponível em: https://www.academia.edu/14955478/Reflex%C3%B5es_sobre_a_metodologia_de_pesquisa_nos_estudos_liter%C3%A1rios.
[2] Talvez essa distinção não esteja suficientemente precisa, pois seria necessário levar em conta aquela figura do professor universitário que cativa em suas aulas, que é um mestre na oratória, mas que não escreve. Para uma apreciação positiva dos clubes de leitura, mais especificamente do Book-of-the-Month Club, cf. Janice Radway, A Feeling for Books (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1997).
[3] Por exemplo, seria possível defender que no Brasil há bares demais e bibliotecas de menos, e que nos EUA ocorre o contrário.
[4] Fiz a conta certa vez do número máximo de livros que seria possível ler durante uma vida, e ele não chegou a 7.000, uma pequena parcela perante não apenas a imensa tradição literária, mas também da diversidade de campos de interesse de qualquer pessoa culta, como teatro, cinema, filosofia, psicanálise etc. É claro que isso pode ser fonte de angústia, uma versão hipersemiotizada do velho ars longa, vita brevis, mas também pode ter algo de libertador, justamente pela perda da pretensão de um conhecimento total. Ao invés de um desânimo da grandeza, uma felicidade da humildade. Cf. F.A. Durão, Fragmentos Reunidos (São Paulo: Nankin, 2015), p. 108-109.
[5] Cf. F.A. Durão, “As artes em nó”. Alea, 2003.
[6] Cf. F.A. Durão, “A crise nos estudos literários, hoje”. In: Inês Signorini; Raquel Salek Fiad. (Orgs.). Ensino de língua: das reformas, das inquietações e dos desafios (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012), p. 191-202.
[7] Cf. Christoph Türcke, Hyperacktiv: Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur (München: Beck, 2012).
[8] Para uma discussão mais extensa dessa nova formação discursiva, cf. F.A. Durão, Teoria (literária) americana: uma introdução crítica (Campinas: Autores Associados, 2011).
[9] Não esquecendo de que há vários romances contemporâneos que usaram a teoria ela mesma como tema ou material de fabulação. Cf. Judith Ryan, The Novel After Theory (Nova York: Columbia U.P., 2012).
[10] Vale a pena, neste contexto, mencionar Behind the beautiful forevers (NY: Random House, 2012), de Katherine Boo, que apresenta um quadro tão desolador que parece cômico. Manju, a única favelada de Annawadi a fazer faculdade, tem como tarefa para as aulas de literatura decorar enredos de romances. Não passa por sua cabeça, nem é mencionado em momento algum na narrativa, a possibilidade de possuir ou ler os livros; isso está simplesmente fora do horizonte do livro, não há nem mesmo uma culpa em relação a isso.
[11] Algo de semelhante pode ser defendido para o papel da Globo Filmes no âmbito do cinema. Para o Neoliberalismo como o último dos –ismos, cf. http://sibila.com.br/critica/neoliberalismo-o-grande-ismo-das-literaturas-do-seculo-21/11626
[12] Por isso é tão curioso encontrar aquela construção retroativa tão comum em memoriais, segundo a qual o autor já gostava de literatura desde a mais tenra idade.
[13] Para não mencionar aquela penosa sensação que o docente muitas vezes tem, diante do desinteresse geral da classe, de que é somente ele que deseja o objeto.
[14] O superego intelectual é uma instância muito frutífera para se investigar a presença do subdesenvolvimento. Não é raro encontrarmos professores muito estudiosos e conhecedores de seus campos de estudo, mas que no entanto não conseguem progredir porque consideram a literatura um objeto da maior reverência. Ao fazerem isso colocam-se performativamente fora da cultura. Relacionar-se bem com ela significa perceber como é ao mesmo tempo, infinitamente superior à reprodução do existente e inferior à aspiração de ser uma esfera perfeita, de não pertencer a este mundo.
[15] É com isso que tento explicar para mim mesmo o interesse baixíssimo que os alunos de pós-graduação do IEL/Unicamp demonstram por palestras de professores vindos de fora, bem como por eventos nos quais não apresentarão trabalho. Pelo que ouvi de colegas de outras universidade, esse grau de absenteísmo é bastante comum.
[16] Há também, é claro, o caso dos documentos comprobatórios. “No Brasil, ganha-se um certificado por fazer uma palestra, apresentar uma comunicação, mediar uma mesa ou simplesmente estar presente a um evento, independentemente do que você fez enquanto se desenrolavam as atividades: ouvinte, mesmo que de headphones. O paroxismo do produtivismo e da sua essência quantificadora é certificar o simples ser: regozije-se de que existe.” F.A. Durão, Fragmentos Reunidos, op.cit. p.102.
[17] É por isso que o powerpoint é um instrumento tão problemático: “‘Quanto melhor o powerpoint, pior a aula.’” A máxima é importante, não apenas por chamar a atenção para algo que a tecnofilia facilmente deixaria passar desapercebido, mas pelo quanto revela, negativamente, a respeito da dinâmica de fala desse estranho gênero. O que o powerpoint dificulta é o elemento de elaboração presente na aula, o fato de que, semelhantemente à escrita e com alguma proximidade à psicanálise, ela acolhe o imprevisível, aquilo que só depois de falar você passa a saber que sabia, e que surge com a presença dos alunos, a partir de perguntas ou do mero olhar atento. No powerpoint, o caminho já está todo traçado, enquanto a graça da aula é não se saber exatamente aonde se vai chegar. Ao invés da possibilidade de algo novo, o powerpoint incentiva a repetição do conteúdo de antemão estabelecido. Quem fala agora é na realidade a máquina, que o professor tão-somente reitera; até mesmo na disposição espacial, isso fica claro: não mais o docente em movimento, pensando, associando ideias e vagando na sala, mas o clicador ao lado da tela, que já não pode ser obstruída: um palco com a máquina ao centro, quase um objeto de adoração.” Fragmentos Reunidos, op.cit., p. 105-106.
[18] Cf. Richard Allen e Suman Gupta, “‘Liderança acadêmica’” e as condições do trabalho acadêmico”, no prelo, revista Alea.