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A ÁSPERA BELEZA
DA POESIA QUE RENOVOU O MODERNISMO BRASILEIRO

A ÁSPERA BELEZA
DA POESIA QUE RENOVOU O MODERNISMO BRASILEIRO

 

A poeta paulista Orides Fontela (1940-1998) surgiu na cena literária brasileira da segunda metade do século XX por meio de alguns dos nomes mais influentes das críticas literária e acadêmica (a começar de Antonio Candido). E se revelaria, afinal, a poeta mais importante de sua geração, que reúne autores mais conhecidos, ou menos desconhecidos, como Hilda Hilst, Adélia Prado, Roberto Piva e Paulo Leminski.[1] Entender os motivos da dissintonia entre sua importância e seu reconhecimento pode revelar algo ou muita coisa sobre o estado da poesia brasileira contemporânea, sua recepção pública e sua crítica.[2]

Quando descoberta por Davi Arrigucci Jr. através de um poema publicado no jornal de sua cidade, São João da Boa Vista, em 1965 (o que pouco depois resultaria em seu primeiro livro, Transposição, coorganizado por ele), Orides Fontela, sem o saber, e à mais completa revelia de seus 25 anos, estava ou foi posta no centro do embate mais duro travado nas letras brasileiras desde as primeiras reações e rejeições ao Modernismo de 22.

Tratava-se da luta de vida e morte pela herança modernista, no palco armado pelos adeptos das novas vanguardas visualistas do final dos anos 1950 (das quais o concretismo era a mais visível), que pretendiam tirar de cena os defensores do verso moderno. Pois nada do verso tradicional restara depois da revolução modernista, que, entre outras coisas, aproximou a linguagem poética da sintaxe brasileira contemporânea, além de implodir, explodir e repudiar todas as formas antigas, incluindo estruturas (como a do soneto) e ritmos (como as medidas tradicionais de versos).

As novas vanguardas, então, vieram para dizer que o que o modernismo fizera ao revolucionar o verso estava feito e bem feito, mas não mais bastava. A revolução tinha de continuar. E, para tanto, sacrificar no altar do Novo o próprio verso modernista, que resultara, de um modo ou de outro, por caminhos e vieses múltiplos, na maior e melhor poesia brasileira, incluindo nomes como Carlos Drummond, João Cabral, Murilo Mendes, Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes.[3] O verso modernista, porém, apesar da potência então ainda inconclusa dessas obras, estava repentinamente morto – ao menos segundo as novas vanguardas visualistas. A poesia futura seria visual ou não seria.

A voz das novas vanguardas era alta. Suas teses, altissonantes. Suas obras, cada vez mais visíveis e vistosas. Mas ainda não bastava para calar parte importante da crítica, que ou rejeitava as novas obras e as novas teses ou, ao menos, rejeitava a nova tese de que a nova poesia visual não podia ou não devia conviver com o “velho” verso modernista, cuja longevidade fora mostrada, demonstrada e mantida pelas gerações posteriores à de 22.

Nesse quadro, um jovem poeta que, além de jovem em si, rejuvenescesse, revitalizasse ou renovasse o verso modernista seria, quase irresistivelmente, recebido e incensado por boa parte da mais importante crítica literária e acadêmica − que apesar de sua força e influência, sentia os duros golpes das novas e vigorosas vanguardas. Esse aguardado e, de alguma forma, buscado revitalizador do verso modernista brasileiro foi Orides Fontela.[4]

Toda uma pequena mitologia envolve a obra de Orides. Em parte alimentada por ela própria, ao se declarar uma adepta da “inspiração”, isto é, do espontaneísmo ou da espontaneidade (e não, portanto, da concepção, da construção e da elaboração do poema) e em parte por sua biografia intelectual, que tem dois marcos principais: o curso de filosofia na usp, o que a tornaria uma poeta filósofa, ou de uma poesia filosofante ou filosófica, e a dedicação ao budismo nos anos 1970, o que daria à sua obra um viés metafísico-oriental. Nada disso, porém, resiste minimamente aos fatos, ou seja, aos fatos de linguagem de sua poesia.

Como representante da última geração ainda modernista, como uma renovadora do modernismo em seu final (não porque nos tenhamos tornado, depois, “pós-modernistas”, mas porque depois nos tornamos diluidores de todas as conquistas poéticas do século xx; daí a fraqueza da poesia e dos poetas atuais) e como contemporânea das novas vanguardas surgidas nos anos 1950, Orides Fontela foi uma poeta “antilírica”, ou seja, em cuja poesia o eu lírico não tem vez e, principalmente, voz (mas apesar de tudo tem presença, como se verá adiante), trocado pelo protagonismo da palavra. Isto a aproxima, afinal, das vanguardas visualistas, de que o fato de ser uma renovadora do modernismo deveria afastá-la. Ocorre que a história das formas não é linear, nem pura. Se há algo que Orides Fontela não faz, em todo caso, é uma poesia “abstratizante”.

A poesia “abstratizante” é aquela que busca, consciente ou inconscientemente, restringir a condição referente da palavra. Há vários mecanismos para isso, como o uso cifrado, idiossincrático, para “iniciados”, o vocabulário esdrúxulo, os neologismos injustificados, as apropriações extraculturais, os estrangeirismos “de butique” (ou da moda) etc.[5] Orides Fontela chama esse tipo de linguagem poética, já muito difundida em sua época (e hoje dominante na poesia brasileira) de “barroquista”. Com qualquer nome, trata-se de marca e sintoma de uma poesia que perdeu a força e o sentido das poéticas “duras” das muitas vanguardas do século passado, daí se tornando incapaz, ou pouco capaz, de dar conta poeticamente das complexidades do mundo contemporâneo; daí, enfim, sua relativa irrelevância.

Se Orides Fontela não era “abstratizante” nem era visualista, reforça-se a percepção de ter sido uma renovadora do modernismo. O que por sua vez reforça a importância incontornável de sua obra, pois depois dela e de sua geração, seria o dilúvio da diluição em meio à grande confusão contemporânea.[6]

Há pouco se afirmou que na poesia de Orides “o eu lírico não tem vez e, principalmente, voz, porque trocado pelo protagonismo da palavra”. Mas em sua poesia há, de fato, uma recorrente presença do eu lírico – e, também, de um “nós” arriscado. Pois o fragmentário mundo contemporâneo já não reconhece facilmente nenhum plural comum – tampouco uma individualidade segura: tudo o que era sólido se desmanchou no ar, para lembrar a famosa frase de Marx. Daí esse eu e esse nós, na poesia de Orides, conviverem com uma ainda mais forte presença de imagens de rarefação e desfazimento (de que a reiterada palavra “ar”, ao lado de outros signos de dissolução e antissolidez, como “pássaro”, é marca constante). O eu e o nós líricos são aqui, bem vistas as coisas, resíduos, ruínas, que reforçam com sua presença essa condição tardia. Na verdade, se alguma coisa é de fato sólida em sua poesia, para além da densidade da linguagem, é a crua clareza da lucidez. “Destruição” aparece já em seu livro de estreia, de 1969:

A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.

A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.

A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.[7]

No outro extremo de sua obra, um de seus últimos poemas, “Da poesia” (1996), sintetizaria fortemente sua poética:

um
gato tenso
tocaiando o silêncio[8]

Orides Fontela era uma leitora de Heidegger (a quem lia, segundo suas próprias palavras, não como filósofo, mas como uma espécie de “poeta em prosa”). Mas se for de fato inevitável, ou necessário, aproximar sua poesia de alguma filosofia, é preciso pensar em Wittgenstein. Pois um dos temas mais caros a essa poesia é o da relação da palavra com o calar, com o calado, além daquela das palavras com as coisas e das coisas com o silêncio: a poesia é, seria ou deveria ser uma possibilidade de trânsito, de transporte entre tudo isso (daí o referido título de seu primeiro livro, Transposição).

 

Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.[9]

 

Para além do modernismo brasileiro, a obra de Orides também se reporta ao alto modernismo internacional, de que William Carlos Williams é um dos nomes mais fortes. Ao se ler “Da poesia”, é inevitável pensar em “Poem”: “as the cat / climbed over / the top of // the jamcloset / first the right / forefoot  // carefully / then the hind / stepped down // into the pit of / the empty / flower pot”.[10] O gato da poesia, para Williams, é altamente articulado, e aciona uma trama complexa de ressonâncias em seu silêncio factual. Por exemplo, a palavra jamcloset, que abre a segunda estrofe, ecoa os vários tt finais mudos dos versos (a partir da própria palavra-tema, cat), para então ecoar na tripla aliteração final, pit-empty-pot. Ao mesmo tempo, a estrutura e o ritmo do poema, definidos por seus cortes, são também definidos por essas recorrências sonoras, que os cortes dos versos expõem. Já o gato poético de Orides é mais tenso, mais contido, mais potência do que verdadeira possibilidade de realização. Poucos poemas metalinguísticos poderiam ser mais (poderosamente) sintéticos. E poucos trariam em tão parca matéria vocabular (apenas seis palavras) tal matéria poética redivivamente moderna – isto é, construtivista. A trama sonora não é menos densa que a de Williams: GATO está em anagrama em TOCAiando, e tenso é uma assonância forte de silêncio. Mas Orides diz mais com menos, ou seja, depura as lições do alto modernismo. É verdade que este, assim como o próprio modernismo brasileiro, atingiu eventualmente os limites máximos da síntese, como no famoso “Amor // humor” de Oswald, ou como nos poemas de palavras desmontadas de Cummings. Mas, em primeiro lugar, a síntese de Orides não fica nada a dever à máxima tensão sintética dos modernismos; em segundo lugar, ela usa essa tensão/contenção em uma poesia cuja matéria formal informa e conforma densamente o material semântico. Em suma, Orides Fontela se apropria das lições mais radicais dos modernismos e com elas cria uma poesia cuja ambiência não é mais a da irônica iconoclastia ainda antiburguesa (apesar das simpatias pela técnica) do início do século XX, mas a do amargo e duro ceticismo do final desse mesmo século, cujo centro fora dominado pela catástrofe.

 

Deus existir
ou não: o mesmo
escândalo.

 

Notar o corte polissêmico em mesmo: pois a pausa evoca a frase “[dá no] mesmo” (Deus existir ou não), antes de a palavra afinal resultar em adjetivo de “escândalo”.[11]

O domínio do corte significativo e significante (e por isso tantas vezes polissêmico) é outra marca da maestria poética de Orides Fontela, e outra lição do modernismo que ela retoma, revitaliza e repotencializa. Se o verso livre, o abandono da métrica constante, e mesmo de toda métrica, dando afinal lugar ao prosaísmo (presente e evidente tanto em Drummond quanto em Bandeira, além de dominante em Mário de Andrade, entre outros), foi um dos principais mecanismos da revolução poética modernista, sua vulgarização e sua diluição se tornaram parte importante do laissez-faire da poesia contemporânea. Entre um e outro, a poesia e a poética de Orides emergem como um ponto equidistante de adensamento.

 

“Como as palavras permanecem as mesmas, é por sua disposição que o estilo é construído. A disposição das palavras é: sintaxe”. Não há nada de especialmente inovador nesta afirmação de Mallarmé.[12] Na verdade, ele está sendo tão somente etimológico: sintaxe, do grego syntaxis (σύνταξις), significa ordenação (táxis) conjunta (syn) – ou seja, coordenação, organização, disposição. Daí se entende outra famosa afirmação de Mallarmé: “Sou profunda e escrupulosamente sintaxeador”. O poeta é um organizador, na verdade, um reorganizador das palavras − e um grande poeta, em consequência, é um renovador da sintaxe. Pois não se trata mais, ou não se tratou jamais, de meramente construir belas frases de medida e ritmo precisos, mas de fazer com as palavras o que a língua e a prosa correntes não fazem − sem, no entanto, tornar-se por isso obscuro, o que seria fácil e, provavelmente, inútil. O próprio Mallarmé conclui que, por ser “escrupulosamente sintaxeador”, sua poesia é “desprovida de obscuridade”.[13] A renovação criteriosa da sintaxe faz a poesia, e faz da poesia um ato de renovação compreensível da sintaxe.

Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
Desnaturado o possuímos?

O que era voo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que
o contempla e revive
– criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias –

Mas para que serve o pássaro?

O pássaro não serve. Arrítmicas
Brandas asas repousam.

“O que era pássaro e é / o objeto”: o esperado, ou “natural”, seria que se mantivesse a mesma categoria genérica, pássaro x objeto, um pássaro tornado um objeto, porém o poema contrapõe o genérico ao particular, ao antepor o artigo definido ao segundo termo da equação verbal, pássaro x o objeto, em uma múltipla transmutação, de ser vivo em coisa, de condição (ser pássaro) a ser uma coisa em particular, de ter sido no passado a ser no presente.

A Orides Fontela da última fase, apesar de tudo, talvez reduzisse esse poema aos seus versos finais: “O pássaro não serve. Arrítmicas // Brandas asas repousam”. Mas o fato é que o poema como publicado já continha, em 1965, todos os elementos de uma linguagem poética potente, feita de um grande domínio da frase, do ritmo, do vocabulário e das imagens, a ponto de não poderem ser facilmente aproximados ou subsumidos a qualquer grande poeta anterior, que a poeta estreante estivesse tentando emular ou superar. E como tal foram prontamente reconhecidos por Davi Arrigucci Jr., que leu por acaso o poema em um jornal, e por Antonio Candido, a quem Arrigucci, então estudante em São Paulo, mostrou-o em seguida. A publicação do poema pelo jornal O município, de São João, levaria em seguida a jovem poeta para as páginas do Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, então editado por Décio de Almeida Prado, e para a edição de seu primeiro livro. Também a levaria para São Paulo, para a usp, para o curso de filosofia, para o contato e a convivência com parte importante da intelectualidade e da crítica paulistanas e para o pronto reconhecimento de sua grande relevância para a poesia brasileira contemporânea (seu terceiro livro, Alba, de 1983, traria um prefácio particularmente elogioso de Antonio Candido − além de, incidentalmente, ganhar o Jabuti de 1984).

Nada disso, no entanto, tornaria sua obra minimamente popular, mesmo considerando o mínimo de popularidade que é o parâmetro habitual da poesia. Basta comparar seu nome aos de seus contemporâneos Adélia Prado, Hilda Hilst, Roberto Piva e, principalmente, Paulo Leminski.

Uma das diferenças é que cada um, a seu modo, soube ou pôde mobilizar um menor ou maior círculo de cultores, não de todo incompreensivelmente. Adélia Prado é uma espécie de palatável Drummond de saias, ou uma “drummondiana” feminina-levemente-feminista, e tanto o ser uma coisa como a outra é um tanto quanto simpático para parte do público e da crítica; Hilda Hilst construiu, malgrado ela mesma, certo mito de poeta incompreendida, mas não necessariamente incompreensível, ao contrário, pois afinal se reportava ao tardorromantismo, com sua mistura de poemas de amor, misticismo & mistério, e o tardorromantismo, para parte importante do público, é, de certa forma, a “verdadeira” poesia, a mais “genuína”, porque mais próxima da “alma” do poeta – portanto, da “essência” da poesia;[14] Roberto Piva é um caso de certo modo semelhante, ainda que em chave militantemente contracultural (e também por isso). Paulo Leminski é um caso à parte e, de alguma maneira, o mais antitético (e o mais antiteticamente esclarecedor) ao de Orides Fontela. Há muitas semelhanças entre as duas obras, como certo predomínio do poema curto ou curtíssimo, a forte presença da metalinguagem, as referências orientais, a frase lapidar. Mas as diferenças são ainda maiores, a ponto de torná-los, de fato, dois antípodas. Para citar um aspecto fundamental, se uma enunciava a dificuldade, o outro cultuava, ao final das contas, a facilidade. Orides: “tudo / será difícil de dizer: / a palavra real / nunca é suave”. Leminski: “inverno / primavera / poeta / é quem se considera”.[15]

Orides Fontela pode, então, ser talvez descrita ou compreendida como uma espécie de anti-Leminski. Não apenas no rigor e na relativa dificuldade de sua poesia − em todo caso, em sua não-facilidade, apesar da clareza da expressão – mas também, e não por acaso, na sua oposta popularidade.

Além disso, Orides Fontela era ainda mais difícil no trato pessoal do que na própria poesia, como sua biografia demonstra à exaustão.[16] E isto afinal explica seu posterior afastamento de todos os mesmos nomes influentes da crítica que de início prontamente abriram, de forma pouco usual, os caminhos do meio literário para a jovem poeta do interior de São Paulo. Se se soma, então, a secura da linguagem à aspereza da personalidade, tanto a popularidade (minimamente) possível a um poeta quanto sua presença crítica, humanamente também sensível ao trato (ou destrato) pessoal − e não apenas aos intangíveis estratos dos argumentos −, o relativo silêncio que hoje cerca, não sem certa ironia, a obra de uma das mais fortes e importantes poetas brasileiras contemporâneas, torna-se grandemente explicável – ainda que inversamente justificável.

[1]  Nascidos nos anos 1930-40.

[2] Este texto foi publicado originalmente, salvo algumas mudanças posteriores, como introdução à Poesia completa de Orides Fontela, por mim organizado (São Paulo, Hedra, 2015). Os dados sobre a vida e a vida literária de Orides aqui referidos devem seu mérito ao trabalho do biográfo Gustavo de Castro em O enigma Orides (São Paulo, Hedra, 2015 [ganhador do Rumos Itaú Cultural 2013-2014]). Os eventuais equívocos são todos do autor deste texto.

[3] João Cabral de Melo Neto iniciou sua obra próximo do surrealismo e da “geração de 45”. Em mais de um aspecto, portanto, muito longe do modernismo. Mas apenas se entendido como o Modernismo de 22.  Pois Cabral não se engajou em um “retour à l’ordre” (para lembrar a expressão de Picasso ao voltar à figuração depois de ajudar a criar o abstracionismo, via cubismo), caso em que se deveriam encontrar, por exemplo, traços parnasianos em sua linguagem. Cabral, o “antilírico” por excelência, ou, dito de outro modo, um representante do “objetivismo”, que engloba obras tão variadas como as de Wallace Stevens, Carlos Williams e Francis Ponge, é por isso mesmo um dos grandes representantes do modernismo internacional. No caso de Gullar, bastaria citar o Poema sujo, uma “lição de coisas” das incontáveis possibilidades do verso modernista. Vinicius, naturalmente, além dos justamente famosos sonetos, também se dedicou ao verso livre (e escreveu sonetos como “A pera”).

[4] Outro que parecia capaz de ocupar esse lugar foi Bruno Tolentino (1940-2007), notadamente em seu livro de estreia, Anulação e outros reparos (São Paulo, Massao Ohno, 1963, apresentação José Guilherme Merquior). Mas Tolentino, à diferença de Cabral, operou em seguida um verdadeiro “retorno à ordem” (literalmente): à ordem, ou estrutura, do soneto. Isto não torna sua obra menor, ao contrário, pois ele seria, ao lado de Nelson Ascher e Glauco Mattoso (sem esquecer, obviamente, Drummond, Vinicius e Jorge de Lima), um vigoroso renovador da longa tradição do soneto em português. Não poucos poemas de A balada do cárcere (Rio de Janeiro, Topbooks, 1996) e de A imitação do amanhecer (São Paulo, Globo, 2006) estão entre os grandes sonetos da língua portuguesa. E sua língua é o português brasileiro contemporâneo.

[5] “Abstratizante” porque, apesar dos esforços, não há uma verdadeira poesia abstrata, à diferença da pintura. A palavra casa refere-se a uma casa ou a todas as casas ou à ideia de casa, mas não pode se referir a nada, ou melhor, a si mesma, ao contrário de uma mancha de tinta, que é assemântica, ou nula de qualquer referência a algo que lhe seja externo (re-ferir, do grego foréo, levar, voltar-se para); e se não há referência, há abstração, isto é, a separação, o isolamento do signo (do latim abstrahere, separar).

[6] Naturalmente, sempre há exceções, condição mesma para haver a regra. Aqui, bastaria citar um nome, Régis Bonvicino – caso quase único de um poeta brasileiro atual cuja forte linguagem encara de frente a feiura complexa do mundo contemporâneo. A vasta maioria, por outro lado, decaiu em certo “autismo” satisfeito (a “poesia para mim mesmo” – e para os meus pares), ou nessa outra forma de “autismo” poético que é a poesia “abstratizante”.

[7] Transposição (São Paulo, edição autoral, 1969).

[8] Poema inédito, resgatado por Gustavo de Castro (ver nota 2).

[9] “Esfinge”. In Rosácea. São Paulo, Roswita Kempf, 1986.

[10] Acessível em <http://www.americanpoems.com/poets/williams/4510> (“o gato / ao agarrar-se / no alto do // armário / primeiro a / pata / direita // com cuidado / depois a traseira / depôs // no cavo do / vazio / vaso de flores” [trad. L. D.]).

[11] “Teologia II”, poema inédito.

[12]Comme les mots demeurent les mêmes, c’est par leur disposition que le style se construit. Le disposition des mots est: la syntaxe”. In Pamela Marie Hoffer. Reflets Réciproques – A Prismatic Reading of Stéphane Mallarmé and Hélène Cixous. New York, Peter Lang Publishing, 2006, p. 18.

[13]On s’aperçoit que je suis profondément et scrupuleusement syntaxier, que mon écriture est dépourvue d´obscurité”. Idem, p. 17.

[14] No entanto, como bem lembra Alcir Pécora em comunicação particular, o caso da Hilda Hilst prosadora é distinto do da Hilda Hilst poeta. Confirmando uma constatação histórica que transcende épocas, línguas e lugares, Hilst é mais um exemplo de que o talento para a poesia e para a prosa e não costumam andar juntos – só se surpreende com todos os casos notórios de grandes escritores que não são grandes poetas (Machado, Joyce etc.) quem não atenta para o fato de a prosa e a poesia serem linguagens mutuamente irredutíveis, ao contrário do que pretende o persistente modismo da “prosa poética” e semelhantes. Nas palavras de Pécora, “HH não se tornou maior por ser mais poeta ou por sua poesia ser mais ao gosto do público, e sim porque escreveu A Obscena Senhora D, Qadós, Com os meus olhos de cão, Textos grotescos e Tu não te moves de ti, entre outros. Hilda é grande por razões de outro gênero” – em mais de um sentido.

[15] “Leminski hesitaria a vida e a obra inteiras entre o ‘capricho’ e o ‘relaxo’, a densidade e o raso, a verdadeira inteligência e suas exigências e a pseudoesperteza pop e sedutora. […] Sua obra é, afinal, dominada pela segunda vertente – o que, por sua vez, explica e apoia sua recente popularidade, tanto via internet quanto via antologia”. L.D. “Paulo Leminski, o Paulo Coelho da poesia”. Acessível em <http://bit.ly/1rw8E9U>.

[16] Ver nota 2.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).