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Redescobrindo Hilda Siri

Ihr lieben Bras-Teutonen
habt ihr schon überdacht,
was wohl ein Wolfgang Goethe
im Urwald hätt‘ vollbracht?
Wer spräche heut‘ von dem Genie,
Wär‘ er geboren in Ijuí.

A memória, como é sabido, é uma instância fundamental para a aquisição do conhecimento: não só como receptáculo na origem do mesmo, quando as sensações estimuladas pelo mundo exterior, após transformadas em imagens, são recebidas e armazenadas no cérebro, mas também como arquivo, onde o conhecimento é retido e mantido sob formas maleáveis ao longo da vida. Entretanto, como a certa altura o cérebro deixa de conseguir espaço para dispor de tudo o que conhece de modo consciente, lança mão de várias estratégias para resolver o problema e sobreviver sadio; uma delas é o esquecimento. Por causa disso, o homem deve ter inventado a escrita com o objetivo, entre outros, de dar apoio à memória e, assim, prolongar-lhe indefinidamente o espaço de atuação.

E é da memória preservada na linguagem escrita de Hilda Iris Zwanziger (1918-2007), conhecida pelo pseudônimo de Hilda Siri (e também Valdívia) na literatura brasileira de expressão alemã (por muitos conhecida como literatura teuto-brasileira), que vou falar. Este meu texto objetiva, em primeiro lugar, trazer à luz do presente momento a lembrança da existência da própria escritora e, em segundo lugar, porque sua obra é vasta, focalizar alguns registros de suas próprias memórias: memórias de experiências mais ou menos próximas de seu tempo, memórias mais recuadas e memórias de memórias.

Nascida em Ijuí, no Rio Grande do Sul, em 21.01.1918, portanto no ano do término da Primeira Guerra Mundial e da derrota do Reich alemão, assinada no Tratado de Versailles, sobre o qual, a título de curiosidade, Robert Weber, um outro autor deste mesmo grupo literário, escreve em 1924 Um conto de natal (Ein Weihnachtsmärchen), Hilda Siri, senhora de imensa obra, como disse, é uma das mais profícuas escritoras dentre os autores que escrevem no Brasil e sobre o Brasil em língua alemã. Maiores detalhes sobre sua biobibliografia encontram-se disponíveis em >http://www.martiusstaden.org.br/conteudo/detalhe/102/hilda-siri-1918-2007<.

Suas obras debruçam-se sobre vários temas, mas as memórias fazem-se presentes em muitas delas. Aliás, no ensaio Bodenständiges Schrifttum. Betrachtungen einer Dichterin. (Letras localistas. Considerações de uma poetisa), em que ela reflete sobre a natureza da por mim chamada “literatura brasileira de expressão alemã”, diz o seguinte:

Quem hoje quiser ver o seu trabalho literário impresso – e qual escritor não gostaria de vê-lo? – precisa escrever exatamente o que os senhores editores ou as instituições fomentadoras da cultura germânica (Deutschtum) desejam do escritor. O mais fácil de publicar ainda são os ‘poemas e histórias localistas’, que se referem à imigração e ao destino dos imigrantes.[1]

Havia nessa época, conforme se pode deduzir das palavras da escritora, um certo dirigismo no âmbito das editoras da colônia, que incentivava o registro de determinadas memórias enquanto, certamente, silenciava outras. De Hilda Siri, por exemplo, aquelas de cariz feminista são apenas vislumbradas em seus “ensaios” publicados no “Frauenecke” (Cantinho da mulher) do jornal Serra-Post[2].

Entre os numerosos textos de Hilda Siri, escolhi três, que, de certa forma, também ilustram alguns dos dados biográficos da autora. São eles: Roman Riesch (1999), Die grosse Tour (A grande viagem) (1999) e Die alte Truhe (O velho baú) (1952).

Roman Riesch é o nome de um ator alemão, dono e diretor da companhia de teatro (Heimattheater)[3] que leva o seu nome, e de cujo elenco faz parte Marquard Siegfried Zwanziger, filho ilegítimo do dramaturgo e poeta expressionista alemão Walter Hasenclever. Marquard Zwanziger virá a ser o futuro marido de Hilda Siri. Roman Riesch tinha também uma segunda profissão: pintava igrejas, ofício aprendido com o pai em Oberammergau, cidade alemã, famosa pela encenação, de dez em dez anos, dos últimos cinco dias da paixão de Jesus. Consta que a companhia de teatro Riesch percorrera a América do Sul entre os anos de 1926 e 1936. No entanto, sua chegada ao Brasil, especificamente à cidade de Ijuí, dá-se em 1935. Ao contrário do esperado, a narrativa não cita nenhuma peça de teatro levada à cena no Brasil, mas ilumina duas outras coisas: uma obra de pintura e um gesto teatral. A pintura é aquela existente no altar-mor da Catedral de Santa Cruz do Sul, posteriormente Catedral de São João Batista (o maior templo católico em estilo neogótico da América Latina), conhecida como “Grupo da Cruz”, principiada por Arno Seer. No desenvolvimento de sua feitura, cabe a Roman Riesch o processo de douramento. E, com esta lembrança, engata-se na narrativa a criação da atmosfera triste da perseguição aos alemães, que fica toda subentendida e densa num gesto do mesmo Roman Riesch. Explico: diz a narrativa sobre esta figura que, na cidadezinha de Ijuí, como de costume, a sala da delegacia está apinhada de alemães, de seus descendentes e de judeus. Para ali, também é levado Roman Riesch, que já estivera no front durante a Primeira Guerra, pelo que havia ganho a Cruz de Ferro. Riesch atravessa a sala da delegacia, olha em volta, cumprimenta os conhecidos, acha um degrau, sobe nele, levanta as mãos e pede silêncio. Quando todos lhe prestam atenção, ousa exclamar teatralmente: “Honrado público! A apresentação está com uma boa assistência, mas o espaço, infelizmente, não se adequa a espetáculos”[4], o que provoca uma explosão de aplausos. Caberia uma observação histórica acerca deste episódio. Nas palavras de Ana Maria Dietrich,

[de] acordo com o projeto estadonovista, a sociedade brasileira deveria ser um todo orgânico, razão pela qual o germanismo era visto como uma ameaça à Segurança Nacional. O autor [Sérgio Sant´Anna] destaca que, para o governo brasileiro, a intensa vida cultural dos alemães do Sul era incômoda à construção do nacionalismo brasileiro. Processou-se então uma política de controle a essa comunidade por meio do estabelecimento de decretos-leis que regulamentavam as atividades estrangeiras no país e da investida policial à comunidade alemã. (Dietrich 2007: 69).

O pequeno texto Roman Riesch abre um promissor horizonte de pesquisas: uma investigação das pegadas deixadas por esta companhia de teatro no Brasil e na América Latina, do seu repertório, dos lugares visitados, bem como da presença de outras companhias alemãs de teatro e de seus repertórios, a alimentarem culturalmente as colônias de língua alemã, dando sustentação ao seu sentimento de pertença étnica.

Enquanto Roman Riesch ocupa o espaço de uma página, o segundo texto, intitulado Die große Tour (A grande viagem), é mais longo (41 páginas). Trata-se, como o título indica, de uma narrativa de viagem, mas de uma viagem não experimentada pela autora, mas sim ouvida ao companheiro Willi (Wilhelm Hugo) Fick, ele sim um dos viajantes, uma narrativa que mostra a marcante presença alemã e o eficaz intercâmbio da etnia na região sulina brasileira. Willi Fick era um dos dirigentes do Grupo Escoteiro de Porto Alegre, fundado em 1912 por Georg Black, professor de ginástica, um grupo escoteiro ainda hoje existente e conhecido como “Grupo Escoteiro Georg Black”, o mais antigo do Brasil. A viagem empreendida pelo grupo, organizada por Black de Porto Alegre, por Köpke, de Florianópolis, e por Köhler, de Blumenau, começa em 27 de dezembro de 1914, em Porto Alegre, e termina em Blumenau um mês depois, tendo se desdobrado em dezesseis etapas. Cada etapa empresta título a cada capítulo: „Der Tag zuvor“ (O dia anterior), „Von Porto Alegre nach Taquara“ (De Porto Alegre a Taquara), „Von São Francisco de Paula nach Salto Grande“ (De São Francisco de Paula a Salto Grande), „Von Tainhas nach Azulegas“ (De Tainhas a Azulegas), „Von Azulegas nach Taimbezinho“ (De Azulegas a Itaimbezinho), „Vom Taimbezinho nach Praia Grande“ (De Itaimbezinho a Praia Grande), „Von Praia Grande nach Torres“ (De Praia Grande a Torres), „Torres“, „Von Torres bis Araranguá“ (De Torres a Araranguá), „Von Gamacho nach Laguna“ (De Gamacho a Laguna), „Von Laguna nach Florianópolis“ (De Laguna a Florianópolis), „Florianópolis“, „Von Florianópolis nach Itajaí“ (De Florianópolis a Itajaí), „Von Itajaí nach Blumenau“ (De Itajaí a Blumenau), „Blumenau“, „Von Blumenau nach Porto Alegre“ (De Blumenau a Porto Alegre).

O texto, que contém as memórias de Willi Fick, é, assim, registrado pela pena de Siri. Não se sabe, se as palavras do texto escrito correspondem às palavras orais ouvidas. Muito provavelmente há alterações, pois é sabido que o discurso oral difere do escrito. E, com certeza, o imaginário da escritora desempenhou aí um papel importante. Também a experiência de Willi Fick dista bastante de seu registro oral, ouvido por Hilda Siri. Trata-se de acontecimentos que remontam a dezembro de 1914 e janeiro de 1915, quando a autora nem nascida era. Portanto, o imaginário de Willi Fick também deve estar muito presente no relato e a sua memória já deve ter se encarregado de guardar determinados fatos e esquecido outros tantos do total experimentado.

O texto que nos chega oferece ao leitor uma verdadeira topografia não só da cidade de Porto Alegre à época, como também da viagem encetada pelo grupo escoteiro até Blumenau, em que são descritas as paisagens, a culinária e, sobretudo, a rede de intercâmbio existente entre os alemães e seus descendentes do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, todos eles enriquecidos e bem de vida. Basta dizer que quem recebeu os escoteiros com todas as honras e abastança em Blumenau foi o dono do jornal Der Urwaldsbote (O mensageiro da floresta), G. A. Koehler.

Sobre o Sr. Koehler e seu jornal de grande tiragem, a atingir quase todo o Estado de Santa Catarina, caberiam algumas observações de ordem histórica. Nas palavras de Giralda Seyfert,

[o] mais radical dos jornais em língua alemã do sul do Brasil foi o Urwaldsbote, identificado com os preceitos da Liga Pangermânica e dos Alldeutschen e combatido pela totalidade da imprensa em língua portuguesa do Estado de Santa Catarina. Sendo a favor da endogamia dos teuto-brasileiros, do pangermanismo, da atividade dos bugreiros, da oficialização da língua alemã, e contra as instituições republicanas e a política nacional em geral, […]. (Seyferth 1981: 52).

De fato, a narrativa mostra o esforço de manutenção da identidade étnica do grupo. As marchas cantadas durante a viagem „Das Wandern ist des Müllers Lust“, „Ade Du mein lieb Heimatland“ „Muss i denn, muss i denn zum Städtle hinaus„ pertencem à cultura de língua alemã. A ampliação dos conhecimentos dos meninos focaliza figuras alemãs, como por exemplo, o Dr. Blumenau, fundador da cidade de Blumenau. Muitos dos utensílios e uniformes usados são comprados na Alemanha. Contudo, também há uniformes confeccionados no Brasil: são de tecido verde caqui, comprado na Casa Carvalho de Porto Alegre.  O primeiro capítulo chama a atenção pelos cuidados dispensados naquela época ao grupo, vacinado contra a varíola, examinado por um médico e por um professor de ginástica, também eles participantes. Depois, seguem-se os cuidados com as noções das necessidades básicas à sobrevivência. E interessante é também a apropriação inescapável de muitos termos brasileiros como bolacha Maria, mandioca, gasosa, tarrafas, botos, guará, tropeiros, rapadura, charque, arroz-carreteiro, ford-bigode.  No segundo capítulo, a voz de um “nós“ assume a narrativa com a descrição pinturesca e metafórica do entorno e das personagens: no ar áspero da madrugada, quando a coluna já está em marcha a caminho da estação de trem, cantando „Das Wandern ist des Müllers Lust“, o único bulício na cidade é o das carroças dos leiteiros, dos padeiros, dos verdureiros, de suas vozes apregoadores, através das ruas de Porto Alegre, e com isso vai-se desenhando uma minuciosa topografia da cidade de então. Na estação, o trem soltando fumaça, é composto de um vagão para a primeira classe, de bancos de couro, de dois vagões de bancos de madeira para a segunda, onde viajavam os trabalhadores e o povo pobre, e um para o correio. Cheira a urina e à gordura dos alimentos ali oferecidos em cestos cobertos por panos brancos por vendedores ambulantes. Um negro coloca sem cessar madeira na „goela“ da locomotiva. O chefe da estação toca o sino, apita duas vezes, e o trem põe-se em movimento, trepidando e bufando. À esquerda, o rio Guaíba e a Ilha do Pavão ainda encobertos pela neblina, bancos de areia, o estaleiro Mabilde e algumas choupanas. À direita, descortinam-se jardins, pomares, residências, fábricas – a aciaria de Kappel, a fábrica de limonada de Fischel, a cervejaria de Ritter, a fábrica de móveis Gerdau, a fábrica de fogões Wallig, a fábrica de chocolate Neugebauer. Depois, divisam-se os postes das linhas dos telégrafos. Na estação Navegantes, o trem faz sua primeira parada. Dali avista-se a monumental igreja dos Navegantes. Logo, galga as próximas estações: Gravataí, Canoas e Esteio, Sapucaia e São Leopoldo. Às vezes, os trilhos surgem margeados por água coberta de aguapés; outras, por campos de pastagens. Nas estações, os ambulantes oferecem pasteis de carne, espigas de milho cozidas, rapadura, doce de leite e frutas da época que, nesse momento, são uvas e melão. Em Sapucaia, ainda há o beijú, que o eu-narrador se imcumbe de explicitar. Digna de nota é também a ponte sobre o rio Gravataí e, em Esteio, a grande figueira, a maior do Rio Grande do Sul. E, assim, continuam deliciosas as descrições paisagísticas urbanas e rurais, passando por Neustadt, Neu-Hamburg, Alt-Hamburg, pedacinhos da Alemanha transplantados no Brasil. Almoçam todos na casa do Dr. Tschermak em Taquaral, onde o seu novo automóvel é objeto de admiração. Ali, dormem em barracões e, depois nas primeiras horas da manhã, seguem a pé pelas ruas cortadas pelas rodas dos carros de bois, pelas paisagens de pastos entremeadas de rochas, pelos pinhais, cantando, em direção à serra envolta em neblina. Na subida, o nevoeiro transforma-se em chuva, trovões e relâmpagos que obrigam a procurar abrigo numa cabana abandonada. Continuam subindo até o hotel de madeira do Sr. Hampel na Encosta, cercado por pinheiros, onde jantam e pernoitam. Todos são conhecidos e se cumprimentam com um „Hallo“. Acordam no outro dia com o canto do galo e colocam a roupa para secar ao sol. Descobrem um lago e uma cachoeira de água gelada nas redondezas, onde se banham. Voltam para almoçar carne de porco assada, frango, salada de batata, arroz e feijão preto. De sobremesa, queijo serrano e goiabada. À tarde, desbravam as belezas naturais do lugar. No dia seguinte, prosseguem até o alto da serra, 1.200m, onde fica a pequenina povoação São Francisco de Paula. É um acontecimento ver uma coluna de escoteiros em marcha, cantando! Abastecem-se de salsichas, arroz, charque, rapadura e bolachas numa pequena venda e começam a descida.

Agora a paisagem modificava-se. A floresta espessa deu lugar ao campo. Pastos a perder de vista, interrompidos aqui e ali por grupos de árvores ou pequenas matas e por muitas quedas d’água. […] Grandes pássaros levantavam voo em bandos, quando nos aproximávamos, mudando-se de uma mata para outra. Assustavam-nos com um alarido ensurdecedor.[…] Por toda a parte, gado bravo, cavalos e muares, rebanhos de ovelhas.[…] Nenhuma casa, vivalma para onde quer que se olhasse.[5]

À tarde estavam em Salto, a visitar a represa do rio Santa Cruz e a usina, de onde desde o início do século XX sai a energia para São Leopoldo e Lomba Grande, graças ao trabalho de Theodomiro Porto e Coronel Gölzer, este último conhecido como o imperador de São Leopoldo. Pertenceu-lhe o primeiro ”Ford-bigode“ do Rio Grande do Sul, cuja viagem inaugural iniciou em sua fazenda em Santa Maria dos Caboclos e terminou em São Leopoldo. A subida da serra continua até 1.800m. Aqui, os escoteiros, montam barracas vindas da Alemanha e procedem aos rituais da arrumação, do preparo das refeições, do fogo do conselho. No dia seguinte, levantam acampamento  prosseguem até o rio Tainhas. Almoçam Schmarren[6], mas, ao que parece, a iguaria não está boa, pois a delícia da alta Bavária não dispõe no Brasil dos ingredientes alemães para ser feita. À tardinha, chegam a Azulegas, uma minúscula povoação com uma venda, que costuma receber os tropeiros. Os escoteiros acampam e ali se abastecem. Na serra, ressentem-se da falta de frutas e verduras. Dali, prosseguem até Itaimbezinho. De singular nesse trajeto, acham um corno de boi transformado em garrafa com cachaça, que algum tropeiro deve ter perdido, e o cânion de 5,8 km extensão, com uma largura e uma altura máxima de cerca de 700 m, sendo percorrido pelo arroio Perdizes.

O Itaimbezinho é uma garganta profunda, de mais ou menos 200m de profundidade, lavada por um rio pouco caudaloso, mas impaciente. Tem três cachoeiras. A água despenca em direção ao fundo num fio fino e ciciante, abafando o embate com vapor branco, por sobre o qual se forma frequentemente um arco-íris.[7]

Nesses alcantilados, experimentam os efeitos do eco. Armam as barracas na região (1800 m altura) e, ali, pernoitam e apreciam o entorno deslumbrante. Na manhã seguinte, iniciam a descida até a Praia Grande já em Santa Catarina. Fazem menção a um lobo guará e ao fachinal, como explica o texto, uma áspera e estreita vereda, usada por tropeiros desde tempos imemoriais, o único caminho a ligar a serra ao litoral. Aqui, dão passagem a uma tropa de mulas. Já é noite quando atingem Praia Grande. Logo atravessam o rio Mampituba, a fronteira entre Estados, e seguem para Torres, onde pernoitam no hotel “Picoral“, feito de madeira. Muitos dos escoteiros veem o mar pela primeira vez. A paisagem volta a se alterar: agora, desvela-se uma região mais densamente povoada, pomares de laranjeiras e plantações de abacaxis e hortas. Torres é o balneário preferido dos Portoalegrenses ricos. Lá, estão as residências, todas de madeira, de Herbert Müller, Krahe, Reiniger e de muitas outras famílias alemãs. Em Torres, os pontos visitados são: o Morro das Furnas, a praia da Guarita, o farol e o cemitério, que chama a atenção pelo grande número de nomes alemães inscritos nas lápides e, depois, a Ilha dos Lobos (marinhos) e a Praia de Itapeva. Como é explicado, na época da primeira onda imigratória entre 1824 e 1850, um grande veleiro com emigrantes colonos havia encalhado nas proximidades da povoação, pelo que logo se estabeleceram ali. Os escoteiros também ouvem muitas histórias contadas pelos chefes, inclusive, a história do próprio escotismo. Na manhã seguinte, seguem para Araranguá, ao longo da praia, descalços pela areia, cantando „Ade Du mein lieb Heimatland“, como se na Alemanha estivessem. Almoçam na areia da praia que se infiltra na comida. O chefe cozinheiro passa mal, toma gotas de Opium que, por serem mal contadas, o fazem dormir longamente e acordar indisposto, deixando os escoteiros preocupados, pois nas redondezas não se avista ninguém. Por fim, põem-se a caminho e continuam até Araranguá, onde chegam à noite. Esta é a maior distância percorrida num dia. Todos estão muito cansados. Na manhã seguinte, com o céu azul sem nuvens, dunas amarelas, sol quente e mar, apreciam na areia conchas e moluscos. Só ao cair da noite ouvem um latido que, finalmente, sinaliza a proximidade de gente, uma aldeia de pescadores chamada Gamacho. Os pescadores acabam de puxar uma rede e preparam o peixe – tainhas – para secar. Os escoteiros conseguem tainhas frescas para assar e nunca peixe algum lhes tinha sido mais saboroso. Por seu lado, os pescadores divertem-se, observando os rituais escoteiros. A próxima cidade é Laguna, que, para ser atingida, é preciso alugar uma canoa a um pescador. Chegados à praça central, o prefeito permite que, ali, acampem. Mas uma tempestade de água inunda todas as barracas, pelo que o prefeito, condoído com os meninos, lhes oferece a cocheira de sua casa para pernoitarem. Nessa noite, um deles começa a ter dores de barriga. É tratado com calor sobre o ventre e chá preto com cachaça. No dia seguinte, passeiam pela cidade de arquitetura portuguesa e visitam o Museu Anita Garibaldi. Só no dia seguinte, partem para Florianópolis, cantando e bordeando o litoral entre o mar e a Serra do Mar, de onde se avistam plantações de bananeiras, milho, mandioca, muitas casinhas, aldeotas de pescadores. Nas proximidades de Imbituba, uma ciadezinha portuária, de escoamento do carvão de Santa Catarina, acampam. Depois, a paisagem passa a oferecer dificuldades: “A Serra do Mar debruçava-se agora sobre o oceano, apoiada em rochedos íngremes e, em parte, descalvados. Ilhas e recifes alcantilados, rochas abaixo do nível do mar dificultavam aqui, ameaçando mesmo, a travessia dos barcos. Alguns já haviam afundado lá“[8]. Levam três dias de marcha difícil até Florianópolis. São grandes o cansaço e os machucados do corpo e todos os meninos se tornam psicologicamente muito vulneráveis. Os mosquitos também não dão trégua. Por fim, como numa miragem, avistam os pilares da ponte anterior à Hercílio Luz, ligando o continente à Ilha Santa Catarina, outrora chamada do desterro, por abrigar prisioneiros. Ainda na ponte são recebidos por uma comissão de outros jovens e são levados em triunfo até o centro da Florianópolis, aplaudidos pelos transeuntes nas ruas. É uma experiência extraordinária atravessar aquela ponte, um verdadeiro monumento da modernidade: 200m de comprimento, assentados sobre pilares colossais de aço, amarrados a torres de 20m de altura, com cordas de aço mais grossas que um braço. Em baixo, só água, em cima o céu azul. Dirigem-se à casa do Sr. Köpke, um agente de uma companhia de navegação, pertencente à Hamburg-Süd, um homem de cerca de 50 anos, alto de traços enérgicos e amigáveis. São levados a uma casa magnífica rodeada por grande parque. O Sr. Köpke já havia mandado reservar nos estábulos um espaço para vários colchões e havia providenciado mantas. Os escoteiros armam barracas à sombra das árvores, enquanto os mosquitos atacam. Alimentam-se como cães famintos. As roupas e os utensílios, tanto quanto os corpos e a alma, estão esgarçados. Recuperadas as forças, vão visitar um vapor alemão, o Pontius, ancorado na baía, que os encanta e de onde avistam os muitos faróis na costa brasileira. A Europa está em guerra (1ª Guerra Mundial que começara em 28 de julho de 1914), mas o Brasil ainda está fora do conflito. O vapor aguarda o desfecho do que se pensa à época ser uma breve guerra. Pertence à Hamburg-Süd e costuma transportar cereais, couro e outras matérias primas e também gado. Voltam os escoteiros à magnífica residência do Sr. Köpke, onde recebem alimentos de maneira bastante sofisticada. Despedem-se de tão excelente hospedagem cantando „Muss i denn, muss i denn zum Städtle hinaus„. E, então, prosseguem rumo a Itajaí a bordo do vapor Max. Tudo vai bem até o momento em que o vapor alcança mar aberto e começa a balançar violentamente com as ondas, mareando todos. Aos poucos, tudo volta à normalidade, o sono sobrevém e, quando acordam já é manhã e estão em Itajaí. É aqui que o rio Itajaí-Açu desagua no mar. Faltam 33 km para alcançar a pé o final da viagem em Blumenau. O grupo recobra a animação perdida, já canta a marcha bávara e a paisagem também se torna mais acolhedora: campos semeados e prados onde vacas pastam, casinhas de treliça pintadas, cortinas e flores nas janelas de colonos e suas adjacências com estábulos, currais, pocilgas e galinheiros, estradas cuidadas, plantações de cana-de-açúcar, bananas e tabaco, milho, mandioca, verduras e frutas. Os pinhais haviam ficado para trás. Agora aparecem cedros, caneleiras, palmeiras, coqueiros, palmitos. Veem-se pelo rio Itajaí pequenos vapores, barcos, canoas, meios de transporte para gente, animais, mercadorias e produtos das colônias. Em Blumenau, são recebidos por uma comissão, enviada pelo Sr. Köhler, dono e redator do jornal Der Urwaldsbote, e levados em triunfo até o centro, à sede do jornal. A população se anima com a novidade, já anunciada pelo jornal e recebida pelo telégrafo. O Sr. Köhler, ele próprio chefe criador de um grupo escoteiro local providencia alojamentos. Willi fica hospedado na casa da família Schachtleben, gente rica, donos de um curtume. E, depois de um bom banho, de alimentação e barbeiro, tem de contar a sua aventura para os membros da família hospedeira. Em troca, recebe informações sobre a cidade e sobre seu fundador, o Dr. Blumenau. Ficam três dias em Blumenau. O ponto de encontro é a sede do jornal, de onde o grupo parte para várias visitas a fábricas, à tecelagem Hering, fábrica de conservas, cervejaria, fábrica de tijolos. Também visitam uma fábrica de porcelana em Pomerode. No quarto dia, cedo, embarcam no vapor Ita e regressam a Porto Alegre, levando como presente da cidade um cacho de bananas cada um. O chefe escoteiro, Sr. Black, ganha uma cobra, enrolada numa caixa. O capitão só concorda em transportar os escoteiros sem pagar com a condição de eles se manterem no deck e não se misturarem com os passageiros. A viagem é tranquila, na companhia de gaivotas, botos e peixes voadores, e dura dois dias, um deles percorrendo a Lagoa dos Patos, perigosa, porque o canal navegável é muito estreito e assinalado por boias. Nas margens da lagoa gigante, avistavam-se patos bravos, corças e um montão de outros pássaros. Curioso observar como a água doce ao penetrar na água salgada vai deixando um rastro vermelho longo e largo. À vista de Porto Alegre, deitam fora as últimas bananas. No molhe, são recebidos pela família e pelos amigos, mas dirigem-se em marcha e cantando até a sede do grupo e, só lá, cada um segue para sua casa. A viagem durara quase um mês e servira para socializar as crianças dentro de seu grupo étnico.

Die alte Truhe (O velho baú) é uma narrativa, de cunho autobiográfico, mais elaborada do ponto de vista formal, uma das melhores da autora. Trata-se de um texto, originalmente assinado com o pseudônimo Valdivia, distinguido com o segundo prêmio no âmbito do certame instituído pela Editora Ulrich Löw. O baú funciona como mola propulsora do desenvolvimento da ação. Trata-se de uma narrativa que, através de um “flash back”, projeta no presente o tempo passado, na tentativa de oferecer informações sobre a vida heroica de quatro gerações de antepassados[9].

É uma narrativa contada em primeira pessoa. Tem início no momento em que a personagem principal, o eu-narrador, se dirige ao baú antigo [aquele ainda existente e em exposição no Museu de Ijuí] para procurar algumas roupas já usadas, destinadas aos pobres. Ao pôr os olhos no baú, porém, o eu-narrador esquece-se momentaneamente de seu intento, interroga o baú, constrói-lhe as respostas em prosopopeia, e dá asas à imaginação, que, alimentada pela memória, tece uma série de associações, que vão criar o tecido da narrativa. A história desenvolve-se, assim, em 2 planos de ação: uma exterior que mal se esboça, pois não passa da cena do encontro eu-narrador/baú, e outra interior, bastante desenvolvida. Ao momento do encontro entre o eu-narrador e o baú, seguem-se instantes de recordações relativas à infância e, só em seguida, se delineiam os contornos da narrativa propriamente dita, que avança de um salto até um passado remoto e, depois, caminha cronologicamente até o presente.

Recorda o eu-narrador, ao aproximar-se do baú, o medo que a sua tampa lhe inspirara quando criança. Temia que aquela tampa tão pesada lhe caísse na cabeça. Observa e descreve o baú de 1677 e, logo em seguida, retorna à lembrança das histórias que a bisavó [Susanne – elemento autobiográfico] lhe contava à noite, estando ele/narrador [ela – Iris Zwanziger – elemento autobiográfico] sentado sobre esse móvel. Vêm-lhe ainda à mente o ordenhar das vacas e sua alimentação, coisas que a bisavó fazia antes do jantar e antes de lhe contar as histórias numa sala ao cair da noite. Em seguida, com uma pergunta dirigida ao baú: “De onde vieste, velho baú?”, o protagonista-narrador alcança a árvore que viria a dar origem à arca. O proprietário do bosque teria um dia ordenado a derrubada de algumas árvores, e da madeira de um carvalho teria mandado confeccionar um baú que iria abrigar o enxoval de sua filha. Através de uma segunda pergunta dirigida ao baú: “Onde terás estado, quando eras ainda completamente novo?”, o eu-narrador dá mais um impulso ao desenvolvimento da ação interna. Desta forma, o leitor é levado a imaginar um castelo onde vivia a jovem esposa do senhor do castelo, usando saias longas, corpete justo e mangas rocadas, que guardava no baú os preciosos linhos brancos, por ela mesma tecidos e, que, bem lá no fundo, escondia alguma joia. Então, não mais com uma pergunta, mas com um comentário: “Quanta alegria, quanto sofrimento deves ter já presenciado em tua juventude!”, dá novo estímulo ao desenrolar da ação. São recordados tempos de guerra entre castelos senhoriais. Com outro comentário semelhante, o eu-narrador transporta-nos à época em que o baú abrigava crinolinas e o pó de arroz de perucas teria caído em sua tampa, isto é, ao tempo em que a família possuidora da arca empobrece e a leva a leilão. A partir deste momento, ocorre uma mudança na história da mesma. Depois de pertencer a gente nobre e rica, passa a ser propriedade do tio do bisavô do narrador, um camponês rude. É colocada entre móveis toscos e guarda, agora, linhos grosseiros. Mais tarde, o novo dono oferece-a a um irmão como presente a ser levado para o Brasil. Atravessa o Atlântico e, nesta viagem, August, o filho do trisavô do narrador conhece uma moça chamada Suzana. [Trata-se de elementos autobiográficos presentes da narrativa: C.F. Becker, o terceiro dono do baú, emigrou de fato com mulher e filho. Este filho seria o futuro bisavô da autora. Susanne viajava no mesmo navio. Chegaram todos ao Brasil – a Santa Cruz do Sul – em 1854. August Becker e Susanne Gessinger casaram-se posteriormente.]

Logo depois, é narrado o desenrolar da vida, das dificuldades e do trabalho desses imigrantes no novo país que os acolhe. Precisam desbravar a selva, a fim de poderem construir uma cabana e, para tornarem o solo arável através de queimadas, têm de lutar contra as cobras e outros animais selvagens. Logo no primeiro ano vem a primeira colheita. Porém, nem todas as colheitas crescem sem perigos. Muitas vezes são devastadas pelos macacos ou pelas enchentes do rio Pardinho. Por causa deste trabalho árduo, muitas lágrimas são derramadas. No entanto, a vida continua. August desposa Suzana, a moça do navio. Trabalham muito. Suzana sente-se dividida entre o Brasil e a Alemanha. O Brasil é sua segunda pátria, aqui trabalha, é aqui que tem uma propriedade. A Alemanha, por outro lado, faz-se sentir no seu modo de pensar, na língua que fala, nos costumes.

Os trisavós do eu-narrador [C.F.Becker e esposa] morrem e são sepultados no jardim atrás da casa. Lágrimas e luto são as derradeiras homenagens a essas pessoas exemplares, que tanto fizeram pela nova pátria. O bisavô do protagonista-narrador e Suzana têm dois filhos. A mulher do segundo filho morre ao dar à luz uma menina. Esta menina, que virá a ser a mãe do eu-narrador, cresce e casa-se, indo morar na Serra, onde estabelece um pequeno negócio que prospera à custa de muito trabalho e esforço. O eu-narrador é a terceira criança do casal. Certo dia, a bisavó resolve morar com eles e leva o velho baú. [Trata-se aqui de mais elementos autobiográficos: August Becker e Susanne (Gessinger) Becker têm dois filhos. Mas, quando Susanne enviúva, de fato, muda-se para a casa da neta – a mãe de Hilda Siri. Consta dos dados autobiográficos do espólio, que o afeto entre Susanne e a bisneta – Íris/ Hilda – sempre foi muito intenso.]

 É assim que, aos quatro anos de idade, o eu-narrador trava conhecimento com esse móvel, esse baú misterioso. A ação interna retorna ao passado recente. O protagonista-narrador volta a falar dos afazeres da bisavó em casa: cuida das vacas, planta as flores e os legumes. Nos dias de chuva remenda roupas ou faz toalhas dos sacos de farinha ou de açúcar. Apesar de trabalhar bastante, consegue ainda dedicar alguns momentos ao entretenimento dos bisnetos [Henrique, Ilse, Iris e Hildegard], fazendo ela própria poesias, ou recitando de cor as baladas de Schiller, que conhecia, para que eles a imitem, e transmitindo-lhes textos dramáticos do mesmo autor, que eles encenam. Este detalhe curioso que o eu-narrador inclui na enumeração dos afazeres da bisavó não é comentado na narrativa, ficando o leitor sem compreender de que forma a bisavó – que aprendeu a escrever só aos setenta anos, conforme o texto, – teria tido acesso à obra de Schiller. Ao que parece, a bisavó sabia ler, mas não escrever. De qualquer forma, o eu-narrador alude à cultura da pátria alemã, da qual até mesmo pessoas rudes partilham].

Ao morrer, a bisavó deixa ao protagonista-narrador o baú como herança. Termina aqui o ‘flash-back’. O propósito do eu-narrador consiste em oferecer uma visão épica de seus antepassados, exaltar-lhes as virtudes, como podemos constatar pelo desenrolar dos acontecimentos:

Que força de touro devem ter tido meus antepassados, para te poderem carregar, velho baú, cheio de pesados trastes de uma época difícil, através das quase intransitáveis picadas. E tudo tinha de ser carregado, as trouxas, as crianças pequenas; não havia nenhum animal de carga à disposição. E então estavas, velho baú, junto com teus senhores, no meio da floresta virgem, sem abrigo sobre a cabeça, sem fogão, frente a uma natureza inimiga. Apenas machados, facas, foices e ancinhos estavam à disposição e braços fortes e – o fogo. O fogo era o único aliado na luta contra o ambiente selvagem, contra os horrores e os animais selvagens. Tudo parecia desesperador, opressivo, imponente, e apesar disso em muito pouco tempo vocês tinham um telhado sobre a cabeça, embora fosse apenas o de uma cabana. E já depois de um ano podiam teus senhores alimentar-se com o produto da primeira colheita. Da luta dos homens lá fora na selva não podes contar nada, pois não os viste. Não viste como as pessoas eram feridas ou atingidas por árvores que caíam; não viste como os macacos se precipitavam sobre a plantação nova e a arrasavam; – não viste a inundação do rio Pardinho, normalmente tão pequeno, que arrastou os poucos haveres de alguns colonos nas suas águas /…/ tu viste só as lágrimas de saudade da pátria, derramadas por minha bisavó, que acariciava com mãos gastas pelo trabalho os preciosos bens da pátria que tu abrigavas /…/ Tu só viste como os homens à noite voltavam para casa, sofridos e cansados, e tiravam do corpo a roupa encharcada de suor /…/ Tudo era feito em casa: fiava-se, tecia-se, tricotava-se, cozia-se pão, depenavam-se patos e gansos, cujas penas enchiam os espessos acolchoados e as cobertas /…/ A mulher precisava ir à roça para plantar e semear. Ela educava as crianças e de passagem executava todos os trabalhos da casa, da fazenda e do jardim. Ela alimentava as vacas e as ordenhava; ela ajudava a debulhar os cereais e a descamisar o milho; o mel tinham  de ser extraído dos favos e xaropes e geleias tinham de ser cozinhados.[10]

É evidente a exaltação dos antepassados pelo trabalho e sacrifícios que fizeram em prol de seus descendentes, e também em favor da nova pátria, onde se fixaram e viveram. O enaltecimento da colonização alemã no Brasil é realçado pelo ritmo peculiar ao texto citado, baseado no emprego do paralelismo estilístico. O eu-narrador acumula as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, procedendo ao encadeamento de valores sintáticos idênticos. O efeito retórico, assim obtido, descamba para o melodramático, principalmente, quando à tripla repetição do sintagma negativo ‘tu não viste’, se contrapõe a dupla repetição do sintagma, agora afirmativo, ‘tu viste só’, ‘tu viste só’, porém de valor semântico negativo, que visa a enfatizar a enumeração das desgraças.  A veneração do eu-narrador chega ao auge no final da narrativa, que se concentra novamente no baú:

Agora serves à descendente de uma raça forte e trabalhadora, cuja alegria e cujo sofrimento partilhaste durante um século. Testemunhaste a ascensão de uma família durante cinco gerações, que através de esforço próprio conseguiu sair da pobreza e da carência e alcançar prestígio e bem-estar. És para mim uma exortação e me impões o dever de imitar o exemplo de meus avós.[11]

A recordação dos imigrantes alemães alcança, nesta narrativa, foros de glorificação. As personagens da composição literária estudada são vistas só pelo lado dignificante e, por conseguinte, são idealizadas.

O baú funciona como um verdadeiro totem da família e, por extensão, vira um paradigma das memórias e da história da etnia formada pelos imigrantes de língua alemã e seus descendentes no Brasil.

Fontes bibliográficas

Dietrich, Ana Maria. Caça às suásticas. São Paulo, Humanitas, 2007.

Seyferth, Giralda. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1981.

Siri, Hilda. Die alte Truhe. In: Serra-Post-Kalender. Ijuí: Ulrich Löw, 1952, p.81-92. Também in: Die alte Truhe. Campinas, edição particular, 1999, p. 23-31.

Disponível em >http://www.martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/102/971611078859cf0d64c1d13068f3c13a.pdf<.

Disponível em >http://www.martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/102/08395d1b29ae12bca4f21e7f664b4d6f.pdf<.

Siri, Hilda. Bodenständiges Schrifttum. Betrachtungen einer Dichterin. (Letras localistas. Considerações de uma poetisa). In: Brasil-Post, São Paulo, 24.10. 1959, p. 1. Disponível em

 >http://www.martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/102/c5ca9477999f2b9d6082c82ba6e79d94.pdf<.

Siri, Hilda. Roman Riesch. In: Siri, Hilda. Die alte Truhe. Campinas, edição particular, 1999, p. 159.

Disponível em >http://www.martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/102/90cd319897ef522ae73ca9902d3fb809.pdf<.

Siri, Hilda. Die grosse Tour. In: Siri, Hilda. Die alte Truhe. Campinas, edição particular, p. 192-223.

Disponível em >http://www.martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/102/cf32e9d5b4cc27258ebcf529d07c9ca0.pdf<

Sousa, Celeste Ribeiro de. A narrativa literária no Anuário do Correio Serrano após 1948: temas. São Paulo, FFLCH/USP, 1980.

* Este texto foi originalmente apresentado, com alterações, numa palestra durante a 2ª mesa-redonda sobre literatura brasileira de expressão alemã, intitulada “Espaços da memória imigrante: Arqueologias literárias”, em 18 de outubro de 2010, na FFLCH/USP. Programa disponível em >http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/109/3b336c9c615724deb77072eea214f2ab.pdf<.

[1] Trad. Luana Camargo. “Wer heute seine schriftstellerische Arbeit gedruckt sehen will (und welcher Schreibende möchte das nicht?), muss das schreiben, was die Herren Verleger oder die das Deutschtum pflegenden Institutionen gerade von ihm wünschen. Am leichtesten sind noch die „bodenständigen Gedichte und Geschichten“, die sich auf die Einwanderung und die Einwanderer-Schicksale beziehen, unterzubringen“. (Siri 1959: 1). Disponível em

>http://www.martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001-0000500/102/c5ca9477999f2b9d6082c82ba6e79d94.pdf<.

[2] Entre os muitos: Siri, Hilda. Der Sonntagsanzug des Hausherrn (O terno domingueiro do senhor da casa). In: Die Serra-Post (suplemento do Correio Serrano). Ijuí, Löw, 16 fev. 1952, p.3. Siri, Hilda. An die Herren der Schöpfung (Aos senhores da criação). In: Die Serra-Post (suplemento do Correio Serrano). Ijuí, Löw, 13 set. 1952, p.3. Siri, Hilda. Wer setzt DIR ein Denkmal? (Quem TE erigirá um monumento?) In: Die Serra-Post (suplemento do Correio Serrano). Ijuí, Löw, 19 set. 1952, p.3. Siri, Hilda. Wem der Schuh passt… (A quem a carapuça serve…) In: Die Serra-Post (suplemento do Correio Serrano). Ijuí, Löw, 27 set.1952, p.3.

[3] Por “Heimattheater” entenda-se um teatro amador ou não, cujo repertório assenta em peças populares de ambientação local.

[4] Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Verehrtes Publikum. Die Vorstellung ist zwar sehr gut besucht, aber der Raum ist leider für Theaterspiel nicht geeignet“. (Siri 1999: 160).

[5] Trad.  Celeste Ribeiro de Sousa. “Nun veränderte sich  die Landschaft. Der dichte Wald wich dem Kamp. Weideland, so weit das Auge schaute, unterbrochen von Baumgruppen oder Wäldchen, besonders an Wasserläufen. […]  Große Spechte flogen in Schwärmen auf, wenn wir uns näherten und flogen von einem Wäldchen zum anderen. Sie erschreckten uns mit ihrem ohrenbetäubenden Gekreische. […] Überall weidete wildes Vieh, Pferde und Maultiere, auch Schafherden waren zu sehen“. (Siri 2000: 199).

[6] Alimento da cozinha bávara e austríaca feito de farinha, ovos, leite e uma grande variedade de recheios doces ou salgados.

[7] – Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Der Taimbezinho ist eine ungefähr 200m tiefe Schlucht, ausgewaschen durch einen kleinen, aber reißenden Fluss. Er hat drei verschiedene Wasserfälle. Das Wasser ztürzt in dünnen zischenden Strahl in die Tiefe und verhüllt den Aufprall mit weißem Dampf, über dem häufig ein Regenbogen steht“. (Siri 2000: 203).

[8] Trad.  Celeste Ribeiro de Sousa. “Die Serra do Mar zog sich jetzt mit steilen, teils kahlen Felsen an der Küste längs bis ins Meer hinein. Inseln und steile Riffe, auch Felsen unter dem Meeresspiegel erschwerten hier die Schiffahrt und gefährdeten die Schiffe. Manches Schiff ist hier gesunken“. (Siri 2000: 215).

[9] A interpretação que se segue encontra-se em: Sousa, Celeste Ribeiro de. A narrativa literária no Anuário do Correio Serrano após 1948: temas. São Paulo, FFLCH/USP, 1980,  p. 49-54.

[10]  Trad.  Celeste Ribeiro de Sousa. “Was müssen meine Vorfahren  für Barenkräfte besessen haben, dass sie dich, alte schwere Truhe, angefüllt mit dem schweren Krempel einer schwerlebigen Zeit, durch die fast  weglosen Pikaden schleppen konnten. Und alles musste geschleppt werden, die Bündel, die kleinen Kinder; kein Maultier stand zur Verfügung. Und dann standest du, alte Truhe, zusammen mit deinen Herren, mitten im Urwald, ohne Dach über dem Kopf, ohne Feuerstatt, einer feindlichen Natur gegenüber. Nur Äxte, Messer, Sicheln und Hacken standen zur Verfügung und starke Arme und – das Feuer. Das Feuer war der einzige Verbündete im Kampf gegen die Wildnis, gegen die Schrecken und die wilden Tiere. Alles schien hoffnungslos niederdrückend, überwältigend, und trotzdem hattet ihr nach ganz kurzer Zeit ein Dach über dem Kopf, wenn auch nur das Dach einer Hütte. Und schon nach einem Jahr konnten sich deine Herren vom Ertrag der ersten Ernte ernähren. Von dem Kampf der Männer draussen in der Wildnis kannst du nichts erzählen, denn du hast ihn nicht gesehen. Du sahst nicht, wie die Menschen von niederstürzenden Bäumen verletzt oder erschlagen wurden, du sahst nicht, wie die Brüllaffen sich über die junge Pflanzung stürzten und sie verheerten. Du sahst nicht die Überschwemmungen des sonst kleinen Flüsschens Rio Pardinho, das die wenige Habe einiger Siedler  in seinen Fluten fortriß, /…/ Du sahst nur die Tränen des Heimwehs meiner Urahne, welche die kostbaren Güter der Heimat, die du bargst, mit den verarbeiteten Händen streichelte, /…/ Du sahst nur, wie die Männer abends abgehärmt und müde nach Hause kamen und die schweißtriefende Kleidung vom Körper streiften. /…/ Alles wurde im Hause gemacht, gesponnen, gewebt, gestrickt, Brot gebacken, Enten und Gänse gerupft, deren Federn die dicken Unter- und Überbetten ausfüllten/…/. Die Frau musste in die Roça zum Pflanzen und Säen. Sie zog die Kinder auf und verrichtete so nebenbei alle Arbeiten im Hause, auf dem Hof und im Garten. Sie fütterte die Kühe und melkte sie; sie half das Korn dreschen und den Mais abribbeln; der Honig musste geschleudert und Syrup und Marmeladen eingekocht werden“. (Siri 1952: 84-88).

[11] Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. “Du dienst jetzt der Nachfahrin eines starken, arbeitsamen Geschlechtes, dessen Freude und Leid du ein Jahrhundert lang geteilt hast. Du hast den Aufstieg einer Familie durch fünf Generationen hindurch erlebt, die durch eigenen Fleiss aus Armut und Besitzlosigkeit zu Ansehen und Wohlstand gelangte. Du bist mir eine Mahnung und Verpflichtung, dem Beispiel meiner Ahnen zu nachzueifern”. (Siri, 1952: 92).


 Sobre Celeste Ribeiro de Sousa

Celeste Ribeiro de Souza é pós-doutorada em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo/Universidade de Colônia (2000). Tem doutorado em Letras: Língua e Literatura Alemã também pela USP/Universidade de Colônia (1988) e mestrado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela USP (1979).