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REVISTAS LITERÁRIAS E SEUS TARADOS PROTETORES

O poeta peruano Mirko Lauer escolheu como epígrafe paro o seu livro Os poetas en la republica del poder, esta maravilha de José Lezama Lima, que diz assim: “…el encapotado odio de siempre de los poetas tejedores de la gran resistencia en contra de los asquerosos y progéricos, porcinos y tarados protectores de las letras”. Uma provocação, ou um reparo que poderia ser aditado à divisa do autor cubano é o seguinte: muitos poetas também se encontram entre os asquerosos, porcinos e tarados protetores das letras e da poesia. Isto até não seria de estranhar, inclusive porque, em nossos dias, parte importante deles se forma e se formará cum laude dentro dos muros da academia, instituição cuja apetência museológica se presta apenas para ratificar e amparar o consagrado.

De outra parte, o papel, a ingerência da crítica num suposto aprimoramento da poesia no Brasil é reconhecido pelos leitores das revistas dedicadas ao gênero? Sabe-se lá. A rigor, a crítica só contribui para o aprimoramento da crítica. A tarefa crítica, naturalmente, deveria propor leituras novas mesmo para as obras arraigadas em chão canônico. Ao mesmo tempo, ela não pode descurar de interpretar o que carece de interpretação. No entanto, por mais genial que seja a explicação de um poema, ela jamais poderá substituí-lo. E essa meia-idéia serve de salvaguarda contra a presunção de uma hiper-interpretação como também de uma hiper-tradução teorizante e toda-poderosa, que reifica e eviscera o poema de modo a fazer com que sua existência se justifique apenas para servir às necessidades desta mesma interpretação, refém de uma série de interesses e mistificações. À crítica resta tão-só secundar o poema. Um reclame antigo aponta falta de curiosidade e ousadia à maioria dos críticos. As revistas literárias (seja em papel, seja em pixel) deveriam contribuir mais para a problematização das disputas de poder que suportam as imposturas do sistema do que apenas servir para irrigar o narcisismo intertextual dos grupelhos que delas participam. O aparecimento e a continuidade de diversas revistas literárias, e o atrito competitivo entre elas, só fazem aperfeiçoar ou radicalizar os projetos editoriais e estético-críticos desse setor. Elas fazem a metalinguagem necessária, bem, digamos que deveriam fazer. Revistas são meios, e, muitas delas, apenas a serviço do mercado livreiro-editorial, ou de um controle convencional ou interesseiro da interpretação. E, hoje, em poucos casos, poder-se-ia afirmar que sua função se presta à discussão de idéias e de questões estéticas atinentes à contemporaneidade. Não há mais chance para a figura da revista-manifesto. As melhores são aquelas que aboliram o compadrio. No entanto, a questão que fica é: qual delas barganha menos?

Frente às condições brasileiras, a poesia e a literatura contemporâneas estão bem representadas ou servidas, quer em suportes tradicionais, quer no âmbito da internet, por diversas publicações. Um dado significativo é a vida relativamente longa e a dinâmica das transformações de algumas dessas experiências. Posso lembrar, por exemplo, as revistas Coyote, Inimigo Rumor, a própria Sibila (que não se restringe apenas ao suporte papel), e Babel; entre as de cepa internética, cito, entre outras, a Revista Critério, Germina Literatura e Cronópios. Se não estou enganado, a idade das publicações aqui citadas ronda a casa dos dez anos, algumas para mais, outras para menos. Segundo Friedrich Nietzsche “o comentário demasiadamente elogioso produz mais indiscrições que a censura”, assim, no bojo do meu comentário lacunar a propósito dessa hemeroteca viva em cujas páginas – às vezes a contragosto – nos vemos especularmente, tento aplicar algo desse espírito reflexivo preconizado pelo pensador não-alemão.

Portanto, os limites dessas revistas e publicações são os limites de suas opções de linguagem, isto é, os limites do seu pensamento que se desdobra em tensões de fundo-forma. O que se nota,grosso modo, é que as revistas emprestam seu charme a essa erudição perdulária ou a esse esnobismo de prontidão que moldam, no presente, a linguagem de certa parcela da poesia dos nossos pares. Os estímulos sobre a sensibilidade aumentam em progressão geométrica e produzem o “mal de Usher”, do conhecido conto de Edgard A. Poe, “A queda da casa de Usher”, onde se descreve a mórbida agudez dos sentidos do personagem, o embotamento da percepção pelo extremo requinte, e esta narrativa, ao menos como ironia, serve de metáfora para o poema do nosso agora-agora. O altíssimo grau informacional atingido pelo fazer poético do pós-tudo e o risco-oportunidade de repetição ou de inovação que nos ronda, “otimizam” a tal ponto o nosso faro experimentado e burguês, que só conseguimos suportar, agora, a forma mais insípida de poesia e fruir textos de uma certa densidade intransitiva que, por seu turno, flertam com um prosaísmo fashion. Não se trata de reivindicar uma “poesia melhor”. Proponho apenas uma poesia não-emasculada.

Leniência

Na recente edição da revista Inimigo Rumor, com a bela capa em prata e preto, comemorativa dos seus dez anos de circulação, alguns desses gestos da expertise contemporânea como que ganham a moldura requerida à sua fruição. A revista enfeixa colaborações críticas muito interessantes, destaco o ensaio “Hagiografias” de Flora Süssekind, que estuda as formas hagiográficas trabalhadas por Paulo Leminski em sua obra; e a multi-resenha de Leonardo Martinelli, cujo título, de inegável corte acadêmico, parece tema de seminário ou simpósio de Letras, “Primeiras impressões e segundas intenções da crítica diante de certa poesia contemporânea”. Martinelli, num primeiro momento, resenha e confronta os livros Página órfã, de Régis Bonvicino e Sol sobre nuvens, de Josely Vianna Baptista; e, num segundo tempo, se debruça sobre as obras de alguns novíssimos, a saber, 20 poemas para o seu walkman, de Marília Garcia, Rilke shake, de Angélica Freitas, a cadela sem Logos, de Ricardo Domeneck e Estudos para o seu corpo, de Fabrício Corsaletti. Tentando “discernir entre o que parece importante e o que de fato importa” – sirvo-me das palavras do crítico -, ou ainda, me perguntando sobre as “segundas intenções” ou precipitações subjacentes à matéria da resenha, noto que com relação aos livros dos poetas não-novíssimos, isto é, Página órfã e Sol sobre nuvens, Martinelli escolhe uma visada no mínimo menos leniente no que diz respeito às eventuais imperícias detectadas e apontadas por ele nessas obras. O senso comum diz que a cobrança deve ser feita a quem mostra mais competência. Se este é o parti pris do crítico, o dispêndio de atenção devotado às obras das vocações promissoras, parcela então a cada um o seu quinhão. Embora, como argumenta Leonardo Martinelli, “o campo da poesia contemporânea está longe de ser uma estrutura solidificada de nomes e posições”, também é verdade que as quizilas, as réplicas e tréplicas inerentes ao pathos convivial nos condenam a uma atitude de análise em que o importante é nos sentirmos implicados quer nos logros, quer nas pertinências que denunciamos. Trata-se do bom e velho ponto de vista baudelairiano a respeito da parcialidade da crítica. A inexistência de testemunhos desinteressados; o analista que se situa.

Diluidores de modelos consagrados

A revista carioca estampa ainda em suas páginas o fundamental ensaio “Crise do verso”, de Mallarmé (até agora não havia para essa peça histórica uma tradução para o português, e a tarefa foi levada a efeito por Ana de Alencar). Pois bem, a certa altura do ensaio, o autor de Un Coup de Dés, escreve que Jules Laforgue “iniciou-nos no charme seguro do verso falso”, deixando de lado a discussão anacrônica acerca da crise ou mesmo do encerramento-enterramento do verso, fiquei tentado a tresler a afirmação de Mallarmé aplicando-a contra o elenco de poetas reunidos nas páginas de Inimigo Rumor. Na presente edição há uma coesão transversal no que toca à dicção dos poetas. Tanto os mais, quanto os menos conhecidos se mostram convencionais versemakers da fratura, da fragmentação. O aproveitamento acrítico desse verso fake resolvido na estabilidade de uma sempre elipse. Eduardo Sterzi: “Temos que/ castrar os gatos/ (Não há quem/ durma)”, do poema Berceuse. E o falso lirismo relax dos poetas de 90, coloquialismo de blogueiros, Júlia Studart: “Você nunca me enganou/ com essa conversa frouxa/ (…)/ Depois,/ pus vasos/ de orquídeas/ no meio do vazio”. E de lambuja, muitos poetas gastando o seu divino latim na prática indecorosa da prosa poética, ou seja, a proesia, como querem uns e outros. Em cada revista se plasma um recorte do espírito de uma época e de um lugar. Uma dialética entre destinação e recepção. O descolamento ou não do contexto, é produto de uma conquista. Qual a imagem possível do contexto sobre o qual deslizam essas revistas?

Não é muito fácil colocar a poesia atual dentro de uma mirada cujo enquadramento seja suficientemente amplo a ponto de permitir ao observador o vislumbre de uma figura que faça sentido em seu conjunto. Nos últimos anos tenho pensado e escrito bastante a respeito da produção poética recente. Um exemplo é “Lugares-comuns da poesia contemporânea”, artigo que escrevi analisando a linguagem de boa parcela da poesia dos meus pares, mas por meio do livro Planos de fuga de Tarso de Melo. Experimentei fazer uma crítica metonímica: vislumbrei as virtudes e os vícios da atual poesia encapsulados no volume do poeta paulista. Assim, posso resumir as figuras a que cheguei na tentativa de descrever a verdade cambiante dessa poesia: (1) numa perspectiva panorâmica, a competência poética define a nossa práxis, nos tornamos excelentes diluidores dos modelos consagrados; (2) o elogio de uma pluralidade hipocritamente tolerante está na base desse ecletismo poeticamente correto; (3) cada vez mais, os poetas parecem necessitar das credenciais da academia e do mercado editorial; e (4) uma retomada algo virtuosística de um vanguardismo como mise-en-scène, agora, apenas um recurso de estilo constante do repertório oferecido por uma tradição bem recente.

Entretanto, os poetas relevantes para a cultura do país estão todos mortos. Seus livros vendem muito bem. Poesia precisa de tempo. Há poetas de agora-agora que conseguem excelentes tiragens para os seus livros, todos eles irrelevantes. Como diria o socrático Zé Paulo Paes, cada um deles é o poeta mais importante de sua rua.

Na opinião do poeta Marcelo Ariel, quando se entra em qualquer livraria, percebe-se que a questão mercadológica é colocada num grau de importância maior. Ainda de acordo com Ariel, o marketing literário, ao invés do talento e da consistência determina o que merecerá evidência e conseqüentemente o que será vendido e, a partir deste fato, o que deverá ocupar o espaço dos cadernos de resenhas, concorrer nas loterias literárias, etc. A literatura subsume no mercado livreiro-editorial.

Infelizmente essa cisão entre mercado e literatura se torna menor a cada momento. Cada vez mais, os poetas “antenados”, os contistas de segunda mão, etc, mostram-se obedientes à lógica desse mercado que busca canonizar menos este ou aquele autor em particular do que um modo de escrita conectado com o repertório de um hipotético público leitor. Seus interesses coincidem com suas crenças. E todosse acomodam muito bem às regras de eficiência e competência exigidas por esse sistema literário, representação especular, embora com suas singularidades, das malversações e imposições sócio-econômicas abrigadas sob o arco ideológico do livre mercado. Parece inacreditável, mas a literatura participa do conjunto das manifestações artísticas, sim. E isso não causa o menor embaraço à maioria das grandes editoras, não obstante prosseguirem em sentido contrário. A literatura degenera quando dá as costas ao seu impulso de arte.

Hoje, publicar no mundo virtual, se apresenta, infinitamente, mais fácil. E aí me parece residir a diferença notável em relação ao que acontecia num passado recente, quando o livro, as revistas e os jornais representavam os veículos consagrados para a divulgação de obras literárias a um público mais amplo. Mesmo escritores já homenageados com a publicação de suas obras completas, têm seus sites ou blogs. A internet é um veículo, poderoso, mas ainda um veículo. A persona da literatura que aí se publica continua com os mesmos traços do tempo em que os pixels não vigoravam. Ainda temos uns oitenta, noventa por cento de porcaria lotando nossas caixas de e-mails ou flutuando nos espaços insondáveis da rede mundial de computadores.

A seleção disso, separar o que presta, é, em última análise, um problema individual de repertório. E, não custa lembrar, o tempo tem a prerrogativa de dizer a última palavra. Além das fronteiras invisíveis da internet ocorre a mesma coisa. Os cânones são revogados, cedem o lugar a outros, e os sebos são o inferno-paraíso daqueles que fruem a grande poesia e a velha e boa prosa que não é história. Nem a política literária, nem os interesses medíocres de escritores subalternos resistem ao gesto radical e disruptivo do escritor divisor-de-águas ou da obra inventiva: cedo ou tarde esses experimentos entrarão na corrente sangüínea da nossa sensibilidade. O resto, bem, o resto é literatura light e o amiguismo sem atrito.

Há indagações motivadas por um profetismo high-tech sobre a possibilidade de a internet mudar a forma de fazer poesia. Outras opiniões dão conta de que a internet não é senão mais um veículo de informações. Na poesia de muitos poetas vivos só se perceberá o influxo das tecnologias poéticas, traços de uma tradição em movimento. Feliz ou infelizmente, a internet não afetou a maneira de fazer poesia de muitos. Mesmo entre os praticantes da poesia não-verbal ou visual, não se nota uma grande vantagem nos resultados obtidos a partir das novas tecnologias a disposição. Tal realidade cuja condição de fato consumado torna todo questionamento a seu respeito um anacronismo, deposita suas forças e esperanças numa transição que é, antes, de suportes do que de repertórios ou de formas. A retaguarda inventiva da poesia migrou para a tela do computador: o poema experimental, até há pouco tempo construído caprichosamente com cartelas de letra-set, virou animação digital em 3D. Parece que vai sair da tela, mas não sai.

 

Leia opiniões sobre Página órfã em http://www.regisbonvicino.com.br/paginaorfa.htm

 

* Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá exepdiente no blog www.poesia-pau.blogspot.com


 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com