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Sexo e Gênero em Parque Industrial

Parque industrial, de Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), foi escrito em 1932 e lançado no ano seguinte (em pequena tiragem financiada por Oswald de Andrade), com o pseudônimo de Mara Lobo,1 que ela adotou para evitar mais atritos com o Partido Comunista, no qual militava sem nunca, no entanto, se submeter ao seu “centralismo”. O livro foi, assim, escrito durante o governo Vargas, que tomara o poder em 1930, após o breve período do governo da junta militar liderada pelo general Tasso Fragoso, sucedendo Washington Luís (1926-1930).

A polarização política mundial entre comunistas e fascistas, que ocorreu nessa década, pautou igualmente as artes, que, pouco a pouco, na maioria de suas manifestações, foi deixando de lado as experiências internacionais e nacionais de vanguarda dos anos 1910 e 1920 para entrar em um universo mais “realista”, “denuncista”, “engajado”, ideológico e partidário, que Carlos Drummond de Andrade sintetizaria com rara felicidade no poema “Nosso tempo”, de A rosa do povo, de 1945, ano da queda de Vargas: “este é tempo de partido / tempos de homens partidos”. Um exemplo cabal do que acabo de dizer: a famosa tela Operários, de 1933, de Tarsila do Amaral, musa do modernismo de 1922 e do Movimento Antropofágico de 1928, dissidência à esquerda do primeiro, no qual se alinhava também Pagu, e do qual Oswald sairia casado com ela, deixando Tarsila.

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Raul Bopp, um dos integrantes do Movimento Antropofágico, afirma, em Vida e morte da antropofagia,2 que o movimento, além de determinar uma estrutura nova do pensamento, “tomara posse de seu tempo”. Em consequência, Parque industrial maneja ainda técnicas de vanguarda, herdadas da década anterior e de sua vivência antropofágica, entre elas, a frase telegráfica, os diálogos nervosos, os cortes abruptos e uma vívida plasticidade. Parque industrial é, para muitos, como Kenneth David Jackson, que o traduziu para o inglês, “um importante documento social e literário, com uma perspectiva feminina, única do mundo modernista de São Paulo”; por este ângulo, outros o classificariam como “romance social”, numa linhagem que viria de O cortiço, de Aluísio de Azevedo, ou de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, ambos do período realista do século xix.

Discordo: vejo em Parque industrial a inauguração, entre nós ao menos, de um gênero, o do romance panfletário, explícito e assumido. Na verdade, seu lado menos rico é o de documento social: as descrições dos cortiços e dos operários é ligeira, intelectualizada e sem profundidade. O livro vale-se da oposição Brás/Higienópolis (e de muitas outras), sem revelar detalhes dos habitantes dos dois bairros e deles próprios, registrados em rápidas pinceladas. Ao longo da leitura, evidencia-se o tom proselitista, insistente, como se Pagu quisesse provar alguma coisa aos colegas de Partido Comunista: “na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham se esgoelando”; “A burguesia perdeu seu próprio sentido. O proletariado marxista, através de todos os perigos, achou o seu caminho e nele se fortifica para o assalto final”. Cito dois exemplos, mas poderia transcrever inúmeros desse tipo de clichê, hoje e já naquela época também. Outro tipo de clichê do livro, digamos assim, é o retrato óbvio de Oswald de Andrade no personagem de Alfredo Rocha:

Alfredo Rocha lê Marx e fuma um Partagas no apartamento rico do hotel Central (o Esplanada). Os pés achinelados machucam a pelúcia das almofadas. Cachorrinhos implicantes. Bonecas. O chic boêmio. Uma criadinha chinesa para servir o casal (nota do resenhista: a esposa, uma ex-proletária, está ausente do hotel naquele momento). A desarrumação. Ming! (fala Alfredo Rocha), Me dá chá com beijos.

Persistem os clichês na descrição do ambiente, que lhe dão, exatamente, o tom panfletário e, aí sim, pioneiro.

A delícia literária do livro está, afinal, em outras descrições, de cenas sensuais, sempre ousadas para aquela época: expressionistas, originais. “A boca farta de beijos. O bronze de sua cabeça saturada de alegria está mais bronzeado. As pernas se alçam, com rasgões nas meias, sobre saltos descomunais. Traz um braseiro nas faces e um lenço novo, futurista, no pescoço […]”. Ou então: “[…] Línguas maliciosas escorregam nos sorvetes compridos. Peitos propositais acendem os bicos sexualizados no sweater de listras, roçando […]”. Aqui a palavra “listras” empresta à cena uma inflexão da descoberta de alguma coisa alucinante. Cito outro exemplo, esse comovente, sobre a personagem Corina, uma prostituta grávida que quer se suicidar: “A sua roupa chove com a chuva. Volta taciturna para o mesmo banco. Procura. Não acha a nota que ele lhe atirara”.

Parque industrial inaugura o gênero romance panfletário construído à base – em sua maior parte – de clichês políticos e sociais, mesmo para os anos 1930. Seu maior mérito é, ao mesmo tempo, seu maior demérito. No entanto, ele registra o deslocamento dos poucos poetas/artistas que contavam em São Paulo nos anos 1930 – anos duríssimos sob Vargas e a industrialização caótica da cidade, sempre desplanejada, em todos os sentidos. Há uma passagem reveladora sobre isso: “Bruna desperta. A moça abaixa a cabeça revoltada. É preciso calar a boca! Assim, em todos os setores proletários, todos os dias, todas as semanas, todos os anos! Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam ‘Como é lindo o teu tear’”.

Pagu, para fazer um paralelo atual, é nossa Anna Politkovskaya, a jornalista russa de 48 anos que cobria a guerra da Chechênia e foi assassinada, em 2006, em razão de suas denúncias e da insistência em permanecer na Rússia, em solidariedade a suas fontes, igualmente assassinadas durante os muitos anos de reportagens que produziu, desagradando o governo Putin, entre outros. Pagu pagou com a prisão e a tortura por sua ideologia e sua atuação política; pagou com descrédito por ser uma vanguardista antropofágica. Não se “exilou” em Paris. E Parque industrial, por tudo e apesar de tudo, é hoje um clássico do nosso modernismo.


Notas

  • Rio de Janeiro, José Olympio, 2006.
  • Rio de Janeiro/Brasília, Civilização Brasileira/inl, 1977.

 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.