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Sobre a poesia sui generis de Claude Royet-Journoud ou o javali plural

O uso e os atributos do coração
O mais recente livro de Claude Royet-Journoud  

(O  título deste artigo é um trocadilho entre dois termos presentes na obra da poeta “javali”, sanglier,  e “singular”, singulier, que não conseguimos refazer em português ).  

O uso e os atributos do coração (2021) dá continuidade ao trabalho empreendido por Claude Royet-Journoud em sua Tetralogia (1971-97). Encontram-se aí a herança de sua longa relação com a vanguarda americana, suas curiosidades como grande leitor e o trabalho coletivo realizado em torno do grupo Orange Export Ltd. “Preciso admitir que quis introduzir uma outra definição do livro”. Claude Royet-Journoud cita essa frase de Joë Bousquet em uma carta enviada a Roger Laporte e publicada por Fata Morgana sob o título Lettre de Symi (Carta de Symi, 1980). Ele tinha acabado de ler o livro de Laporte, Suite (Sequência). Laporte vê o livro como parte de um “outro livro”, sempre retomado e nunca concluído, remete ao próprio trabalho de escrita de Royet-Journoud, que é também uma sequência [suíte] narrativa: seus livros constroem uma narrativa e uma intriga retomadas a cada novo volume. A publicação de O uso e os atributos do coração dá prosseguimento ao trabalho iniciado com Théorie des prépositions (Teoria das preposições, 2007) e La Finitude des corps simples (A finitude dos corpos simples, 2016) ambos editados pela P.O.L. Ou, antes, o “livro(s)”, para retomar o singular plural que Emmanuel Hocquard usava para designar o trabalho coletivo dos quatro livros de Royet-Journoud publicados pela Gallimard entre 1972 e 1997. Como cada uma de suas obras, O uso e os atributos do coração foi publicado, de início, em sequências – na ocasião, pela revista Koshkonong, editada por Jean Daive na Éric Pesty Éditeur. Um novo livro de Royet-Journoud é como uma nova investigação policial feita por um detetive particular que se tornou familiar. Encontramos nele personagens e lugares. Pensamos em Jack Taylor, de Ken Bruen: um detetive solitário e ansioso, cuja vida está constantemente ameaçada, sujeita a obsessões recorrentes. Personagens desaparecem, surgem ou perduram. Só que a investigação liderada por Royet-Journoud não começou com a descoberta de um corpo, mas com a ausência de um corpo. E seus personagens são nomes, pronomes, às vezes, preposições. Em O uso e os atributos do coração, seu personagem “detetive” se chama “o singular”. “O javali”, “o gavião”. O singular devasta seu território, a palavra é um círculo carregado pela tempestade; o mesmo vale para certos objetos.      

CAÇADOR-LEITOR

Royet-Journoud nasceu em 1941, em Lyon, como Laporte – embrião de uma escola imaginária lyonense. Ele funda em 1963 a revista Siècle à mains (1963-1970), com Anne-Marie Albiach e Michel Couturier. Seu primeiro livro, Le Renversement (O Aniquilmento), vem à tona em 1972. Contraste entre a força clássica de seu editor e o gosto de Royet-Journoud pela montagem artesanal, pela edição de fundo de quintal ou caseira. As muitas revistas que ele cria são folhas soltas (llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwllllantysiliogogogoch), fotocópias (In-Plano), ou cadernos escolares (A – em referência ao livro de Louis Zukofsky, do qual ele é um dos divulgadores na França). Também há Zuk (para Zukofsky), quatro páginas impressas à mão por Emmanuel Ponsart, tipógrafo à época. E duas revistas de crítica, Vendredi 13 (Sexta-feira 13), depois l’Anagnoste (O Anagnosta), série de estudos de Michèle Cohen-Halimi sobre os livros caçados por Royet-Journoud : Charlotte Delbo, Dionys Mascolo, Jean Grosjean… pois Royet-Journoud é um leitor versátil, imune às categorias tradicionais de escrita. Há em seus livros “apenas um texto, cujo gênero não é detectável”, ele também é um leitor sem gênero: de história grega com Nicole Loraux, de filosofia política com Michèle Cohen-Halimi, de romances noirs com Ed McBain, ou de antropologia com Maurice Olender. Ele também é um editor sem editora, um disseminador de livros, seja de mão em mão ou através de caixas de correspondência – graças às quais devemos, discretamente, a sobrevivência de várias autoras em vias de desaparecerem, como Hélène Bessette, Agnès Rouzier ou Danielle Collobert. 

“É um poema tudo aquilo que possui uma densidade linguística. Podemos encontrá-la seja em um historiador, um psicanalista, ou um sociólogo”, diz ele a Jean Daive, para explicar o convite a Philippe Lacoue-Labarthe ou a Michel de Certeau para participarem do programa Poesia interrompida, que ele produziu para a France Culture de 1975 a 1979. Nesse programa, quatro vezes por dia durante cinco minutos, um poeta lia seus textos, ou textos de que ele gostava e que nutriam seu trabalho. Nessa época não era habitual que um autor lesse seus próprios textos. Os ouvintes reclamavam: os poetas convidados leem escandindo! Água para o moinho do descontentes, Royet-Journoud insiste na importância da voz que escreve – “Será que um escritor asmático escreve como um escritor que não é asmático?” – e em questionar “a ideologia da voz […] Daí as cartas de ouvintes que não suportam, por exemplo, que se comam as palavras. A voz marca uma classe, todo o corpo, todo o corpo social, a origem social mascarada ou não. Aquilo que alguns burgueses não querem ver. Eles gostariam de um corpo limpo, neutro, asséptico. Percebemos agora a violência do neutro”. 

A MATILHA

“O javali é um solitário: ele é só, mas se desloca em matilha”. Nos anos 1970, uma “turma” (Royet-Journoud, Hocquard, Alain Veinstein, Jean Daive, Anne-Marie Albiach, Joseph Guglielmi, Olivier Cadiot, Roger Giroux…) se encontra regularmente no ateliê de Raquel Levy, em Malakoff.  “Não havia pauta: a única exigência era trazer um vinho”, conta Hocquard. As famosas festas de Raquel (Bob Marley esteve numa delas) os libertam de uma época de inimizades dogmáticas (um sujeito da Tel Quel não conversa com outro da Change que, por sua vez, não conversa com outro da Action poétique). Mas na festa também há lugar para estudo. Ela está em plena atividade em torno da Orange Export Ltd.. (1), fundada por Raquel e Hocquard, que é o coração editorial dessas “pessoas de uma mesma geração, que tinham o que partilhar, senão positivamente, ao menos negativamente. Concordávamos em ser contra um certo número de coisas. Contra essa poesia ‘poetizante’, onipresente, contra tudo o que nos irritava; nos interessávamos por problemas intelectuais, problemas de língua, de como a língua poética podia entremear o discurso político (2).” A “turma” se sente próxima dos objetivistas americanos, dos poetas Langage ou, ainda, de Keith et Rosmarie Waldrop. Todos se traduzem e se publicam reciprocamente: é de Keith Waldrop a tradução americana dos livros de Royet-Journoud. Os anos 1960 marcam a descoberta, para Royet-Journoud, por intermédio de Anthony Barnett, de Louis Zukofsky (assim como de Lorine Niedecker, Larry Eigner ou Georges Oppen, que Royet-Journoud traduz). O encontro marca um abalo. Albiach e Royet-Journoud relacionam seu trabalho de escritura ao de Zukofsky: a primeira faz de A9 uma tradução que incomoda de tanto que é bela, e que marca obssessivamente État (Estado, 1971) seu primeiro livro; quanto a Royet-Journoud, seu trabalho sobre as preposições (La Poésie entière est préposition /Toda a poesia é preposição e Théorie des prépositions /Teoria das preposições, 2007) repercute o livro de ensaios de Zukofsky, Prépositions. Em 1987, Rouyet-Journoud e Hocquard, convidados da Universidade de San Diego graças a Michael Davidson et Jean-Luc Nancy, ligam-se a Rae Armantrout, Helena Bennett, Fanny Howe, Stephen Rodefer.

Tais afinidades os levam a compor duas antologias de poesia americana contemporânea: 21+1 poètes américains d’aujourd’hui (1986) e 49+1 nouveaux poètes américains (21+1 poetas americanos de hoje, 1986, e 49+1 novos poetas americanos, 1992). É espelhando-se nesses vizinhos do outro lado do Atlântico que se forma, na França, uma geração poética resistente a qualquer definição – ainda que insistam em rotulá-la de alguma forma: “modernidade negativa”, “poesia branca”, “literalidade”, mas ninguém leva a sério – e sem manifesto. O que têm em comum são os lugares que constroem para si mesmos, revistas e editoras, dentre as quais Le Collet de Buffle, ou as sucessivas revistas de Jean Daive, Fragment, Fig., Fin e Koshkonong, onde Royet-Journoud publica regularmente. Seu ponto comum é, sobretudo, uma questão de vocabulário. “Preciso do texto dos outros”. Uma linguagem coletiva ou um dialeto social [sociolecte], para retomar a hipótese de Éric Petsy, construída a partir de palavras que trocam entre si, e de questões que partilham. Dessa forma, a interrogação “Escaparemos da analogia?”, que Royet-Journoud formula em Le Renversement, será objeto de múltiplas retomadas. “Pela renúncia da questão, cada autor se reconhece como destinatário e interlocutor desta comunidade”, explica Abigail Lang (3). No boca a boca, uma comunidade de humanos reparte os pedaços. É a essa comunidade de língua, “poesia sem sotaque poético, tão seca quanto uma torrada sem manteiga” (Hocquard) que pertence o trabalho de Royet-Journoud. Pouco apetitoso? Expliquemos: uma poesia cujo objetivo seria “a clarificação lógica do pensamento” (Wittgenstein), distante do poema como exutório lírico. O poema é refletido como uma ferramenta da linguagem, em vista da construção de um pensamento, da resolução de um problema; ele requer um trabalho asséptico e minucioso com a língua; trabalho de açougueiro, de marceneiro ou de cirurgião. E de equilíbrio: pois “quando há excesso de sentido, não há mais poema. Trata-se, portanto, de encontrar essa espécie de tremor que reside no jamais acabado e que está em vias de se construir, mas que tem consciência de seu próprio inacabamento”.

OS QUE ESTÃO DO LADO DE FORA

“Eu permaneci mais tempo nessa zona fronteiriça entre a solidão e a comunidade do que na própria solidão”, escreve Franz Kafka em seu diário. A hipótese do colapso de uma comunidade percorre O uso e os atributos do coração como uma ameaça. “Não há mais matilha”, “Javali singular solitário soluços”, escreve aquele que detesta as aliterações, mas que adora os dicionários. O uso e os atributos do coração é a narrativa de um confinamento, tanto no singular [na solidão] quanto na matilha, e da exploração da zona fronteiriça entre os dois. A possibilidade do aniquilamento [renversement] (da narrativa) é o coração do trabalho de escritura de Royet-Journoud. Seu suspense. A Théorie des prépositions já colocava a questão de Viggo Brøndal, de quem emprestava seu título: “Uma relação pode ser aniquilada [renversée] ou não?” A preposição, quase invisível, é contudo o que faz a ligação: variável decisiva de uma relação de pertencimento ou de exclusão. A legibilidade de um aniquilamento anexou a imagem ao seu pedestal.   

E é o elo, e não o seu rompimento, que é objeto de O uso e os atributos do coração. Não há cena final. “Não há lugar fixo. Apenas um vai e vem”. As palavras-personagens se aniquilam [reversent], pois são duplas: a palavra uso designa ao mesmo tempo o conjunto de práticas de uma comunidade e a possibilidade de empregar livremente um objeto para fins próprios. O íntimo constitui a essência profunda de algo, mas é também aquilo que aproxima estreitamente. Quanto ao coração: tanto escondido, quanto central.     

Texto publicado em ART PRESS, November 2021, issue N° 493, traduzido para o português por Érica Castro.

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(1) Uma abrangente seleção de publicações da Orange Export Ltd., publicada pela Flammarion em 1986, foi reeditada em 2020, acrescida de um importante e inédito prefácio de Stéphane Baquey.

(2) Entrevista de Raquel e Emmanuel Hocquard, a Bogdana Savu-Neuville, em 1992 (acessível no site dedicado à Raquel).

(3) Ver seu livro La Conversation transatlantique. Les échanges franco-américains en poésie depuis 1968, Presses du réel, 2020, ao qual o presente artigo deve muito.