No tocante às preferências (e quase se poderia falar em prerrogativas) da abordagem estética contemporânea relativamente às fronteiras entre os gêneros literários e artísticos, é quase um fait acomplit se dizer por aí que aquelas obras em que se pode referir índices de hibridismo, ou de cruzamentos discursivos, estão condenadas, por assim dizer, a uma recepção positiva e tolerante. Com efeito, poder-se-ia ainda perguntar: dentro de um traçado de rupturas e de apagamento dos limites sígnicos inaugurado e suportado pelo alto modernismo (o versilibrismo projetado no espaço da página, o romance-rapsódia, a assemblage etc.) e que, desde então, parece ter se constituído no cânone da representação que lhe segue, o que pode a mera reiteração de uma conquista injetar de novo em tal corrente sangüínea? O autor que decide tomar como ponto de apoio para o construto de seu texto a imagem de uma obra em devir, cuja estrutura maleável não admite que se lhe enquadre nem na poesia, nem no conto, nem no teatro, nem em parte alguma — pois ao mesmo tempo pretende ser a combinação de tudo isso —, passa de uma hora para outra a figurar como uma entidade a ser considerada e tida em alta conta. Assim, o press release fornecido pela Editora 34 com a intenção de apresentar, e inflar o quanto possível, o valor do volume em tela, que reúne dezoito ou dezenove narrativas não muito longas, destaca “o arrojo com que Beatriz Bracher experimenta e questiona os limites que separam os gêneros literários” (grifo meu). Muito bem, a autora parece cumprir satisfatoriamente um requisito básico dentro de uma expectativa presente acerca do fazer ficcional e artístico dos nossos dias.
Pulsão maneirista
Tudo em Meu amor – primeiro livro a enfeixar os contos de Beatriz Bracher — roteirista e autora do romance Antonio, Prêmio Jabuti, 2008, 3o lugar —, parece apontar para uma pulsão maneirista da autora na re-acomodação dos dados estilísticos referentes à literatura e à prosa contemporâneas. Mas, se bem vistas as coisas, constatamos que não há um efetivo arrojo — um desbordar dos marcos estabelecidos pelo ambiente — implicado em seu procedimento composicional, porquanto a autora, me parece, só faz reprisar na maior parte de seus contos, além do requerido alargamento liminar do seu gênero, esse “cinema falado americano” imiscuído nos recursos naturalistas de narrar e compor, verificável, inclusive, no trabalho de boa parcela dos seus pares. Mais do que desprovida de um apetite para corroer o fragmentário que supõe, agora, a fusão — numa massa textual vagamente literária —, por exemplo, dos gêneros biográfico, cínico-reflexivo e histórico enquanto normas da nossa mentalidade, Beatriz Bracher se revela desenvolta dentro desse estado de coisas. Dá continuação a uma forma de prosa, digamos para começar, “bem adaptada” às necessidades do fruidor. A autora pratica uma espécie de “freestyle” literário. Contrabandeia os insumos de linguagem que vêm das ruas e da fala de todos os instantes e que inundam por sua vez os meios e a ficção audiovisual, levando-os até o paladar médio da butique dos aficionados e ficcionistas do mercado literário de agora-agora.
Do ponto de vista da minha imaginação crítica, talvez a maior vantagem associada à opção da autora em apagar as demarcações entre os gêneros, seja essa breve leitura comparativa que resolvo propor à atenção do leitor entre o poema de Manuel Bandeira “Poema tirado de uma notícia de jornal”, e o conto (com jeitão de poema) de abertura de Meu amor “Ele gostava de Maria”, de Beatriz Bracher. Isto porque à primeira vista o que há em comum entre as duas peças é justamente esse caminho indecidível entre a linha e o ritmo que nos permite dizer um tanto superficialmente que, por exemplo, o poema do mestre modernista tem um forte acento de prosa e, por outro lado, que ele roçaria também as bordas de um quase ready-made, pois seu vetor poético se produz a partir de um deslocamento referencial. Se dermos crédito a este olhar e levarmos a efeito o jogo de relações, o conto de Bracher nos fornecerá outras camadas interpretativas, prendendo nossa atenção por mais algum tempo. Embora convoque o leitor a ponderar comigo algumas possíveis conjunções e contrastes entre os dois artistas, evito lançar mão da cautelosa advertência: “guardadas as devidas proporções…”. De outra parte, não é meu objetivo operar uma despropositada subversão de um exemplar consagrado pela tradição literária brasileira pelo simples gosto de “criar caso”. Enfim, na tentativa de tramar sumariamente os fios estético-compositivos de um aos fios do outro, não se pretende com isso deprimir o contemporâneo, nem muito menos inflacionar o clássico frente ao cânone de que, em certa mediada, é produto, mas, apenas, reconhecer que a fruição crítica exerce seu poder e se projeta sobre as aparentes disjunções entre o atual e o antigo, e torna tal oposição se não irrelevante pelo menos secundária. O leitor hedônico extrairá, talvez, uma grande satisfação desse diálogo, pois o que justifica a leitura, as transas e os transes de um texto não é sua antigüidade ou novidade, mas o prazer que pode proporcionar a quem tiver apetite para experimentá-lo. Portanto, quantas coisas o poema com andar de prosa de Manuel Bandeira quer nos dizer e, ao fim e ao cabo, não diz?:
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
E agora, como se entrássemos numa sala de espelhos, ou melhor, como se atravessássemos o espelho onde em seu avesso miramos o poema de Bandeira, vejamos como o conto de Beatriz Bracher nos apresenta o subentendido e a alusão na superfície do que é desnudado pela narração:
Ele gostava de Maria
Maria aprontava. Bebia, dava escândalo, esbravejava, seguia outro rumo e não ligava para avisar onde estava.
Maria esquecia de buscar o filho na escola, não chegava em casa para o jantar, não estava na casa da mãe, não estava na casa de amigos, e não ligava pra avisar onde estava.
Maria tentava se matar, uma, duas, muitas vezes. E não ligava pra avisar onde estava.
Cada vez que ela não ligava, ele entrava em pânico. Todos procuravam, e Maria voltava.
Ele gostava de Maria porque ela voltava e porque não pedia desculpa.
Na verdade, essa prática comparativa entre as duas lâminas, esse pesar de muitas medidas, visa a situar a linguagem de Bracher colocando-a em relação, isto é, relativizando-a em sentido forte. Assim, a elevada voltagem de ineditismo e de radicalismo presentes no texto de Manuel Bandeira (considerando que sua fatura é de meados da década de 1920, período em que o ideário estético modernista enfrentava resistência de lado a lado), pode ser invocada como uma forte matriz compositiva infiltrada no conto-poema da paulistana. Mas a condição de estilema, de paradigma, de insumo, que o poema de Bandeira cumpre nesse possível contraponto com a peça de Bracher, acaba por seqüestrar do jogo desta a novidade e a surpresa necessárias ao sucesso de forma-e-fundo do texto. Em outras palavras, “Ele gostava de Maria”, percorre uma estrada já pavimentada. Os acidentes de percurso foram devidamente mapeados e cadastrados. O serviço facilitado de que se beneficia, pode se voltar contra a sua narrativa no sentido em que nos faz reconhecer nesta um déficit de informação nova. Mas, a prosadora nos dá uma piscadela de olhos, e, cúmplices — num crédito remissivo ao nosso repertório —, lemos com um misto de simpatia e tolerância sua anedota rodriguiana que se sustenta numa dialética de plano e contra-plano com a “notícia tirada do jornal” do poeta. Vejamos algumas convergências estruturais.
Os dois textos começam apresentando os personagens no tempo pretérito: “João Gostoso era carregador de feira-livre…”; “Maria aprontava.”. Seus nomes são paródicos, o dele João Gostoso, é uma alcunha, talvez de um bamba do samba, um apelido que indica em retrospectiva uma biografia de suburbano conquistador amoroso; o dela Maria, cuja área semântica e o senso comum nos fazem lembrar de Amélia, se aplica a uma personagem que cumpre uma rotina (ou uma desrotina) que subverte, no entanto, um destino pressuposto na simbologia do nome recebido pelo rito civil. João Gostoso e Maria estão em rota de colisão com os respectivos destinos que inventaram para si próprios, mas o desenlace das histórias não é o mesmo.
Agora, algumas anotações sobre as divergências, as bifurcações entre os textos: João Gostoso é pobre e mora no morro; Maria é de classe média, tem filho na escola, “amigas”, etc. João Gostoso é um homem só, no momento não é temido nem estimado; Maria tem família, mãe, amizades, mas está cansada de tudo isso. João Gostoso dá cabo da própria vida; Maria cumpre um circulo vicioso mortificante, e se acomoda numa rede algo sádica e perversa de relações emocionais e sociais sem fundo. O desenho rítmico do poema de Manuel Bandeira apresenta maior variação e poderia ser desmembrado em quatro blocos: (1) o primeiro verso onde João Gostoso entra em cena, verso largo, informativo, cuja aparente platitude é verticalizada com uma série de incrustações aliterantes em / r / alveolares que também se duplicam em / rr / velares, conferindo um índice de vibração a uma frase musical que devido ao comprimento poderia resvalar em frouxidão: “…eRa caRRegadoR de feiRa-livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRacão sem númeRo”, e de modo suplementar destaca-se ainda a progressiva seqüência paronomástica: MoRava/ MoRRo/ núMeRo ; (2) o segundo verso que inicia com “Uma noite…”, e evoca uma preparação, um augúrio, a prefiguração do acontecimento, João Gostoso tomou a sua decisão, agora ele inspira; (3) a pequena enumeração em andamento binário ascendente, um acento fraco seguido de um forte, “Bebeu/ Cantou/ Dançou”, samba-canção-síntese onde João Gostoso, num derradeiro frenesi, sobe, fica alto, para depois cair; finalmente (4) a morte por água, os círculos concêntricos provocados pelo baque surdo, pelo fecho quase à maneira de um haikai — me perdoem os puristas da forma clássica japonesa.
Elogio do falso português relax
Por seu turno, em “Ele gostava de Maria”, Beatriz Bracher experimenta figuras rítmicas de recorrência, de redundância, mas na perspectiva do estranhamento, de retorno ao mesmo ponto, de repetições de sintagmas, etc. Numa palavra, a narrativa constrói-se em torno da anáfora (sentido dicionário: “repetição de uma palavra ou grupo de palavras no início de duas ou mais frases sucessivas, para enfatizar o termo repetido”). Num ligeiro rastreamento se pode sublinhar a ocorrência do nome-termo Maria (agora um pulso rítmico relativo e relacional) em cada um dos cinco parágrafos do conto; o sintagma “…e não ligava para avisar onde estava…”, reaparece em três parágrafos, e sempre encerrando cada um deles. Dentro dessa condenação à previsibilidade de gestos e modos bipolares, o conto reitera, via linguagem, o desatino da personagem ao materializar suas ações na monótona desinência verbal do pretérito (primeira e terceira conjugações) figurando o modelo de comportamento a que sempre retorna: “Maria aprontava. Bebia, dava escândalo, esbravejava, seguia outro rumo e não ligava para avisar onde estava./ Maria esquecia de buscar o filho na escola, não chegava em casa para o jantar, não estava na casa da mãe, não estava na casa de amigos, e não ligava pra avisar onde estava”. (…). Finalmente, Bracher parece lidar com uma liberdade auto-irônica no que se refere à literatura de gênero. Na linha-epílogo da breve narrativa, a autora aparentemente dá o troco à misoginia, mas fazendo broma dessa questão de fundo por meio de um desenlace que se cerra sobre si mesmo, não nos levando a nenhuma conclusão ou solução mitigadora: “Ele gostava de Maria porque ela voltava e porque não pedia desculpa”. Ponto para a prosadora.
Em “Ficamos por aqui, para dizer a verdade”, Beatriz Bracher põe em cena um conto de maior extensão. E neste como em quase todos os outros que formam o conjunto de Meu amor, a autora intensifica, a confiança num estilo de discurso literário que joga suas forças expressivas na naturalização ou na naturalidade da linguagem. Seus personagens são, por assim dizer, falantes do idioma da dramaturgia das telenovelas. A este propósito cabe lembrar um trecho da canção “Língua” de Caetano Veloso.
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas (…)
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Meu amor põe a nu e faz o elogio cínico desse falso português relax de uma classe média traumatizada com a violência e a irracionalidade nas quais está implicada de modo pró-ativo. Sua vitimização às vezes beira a distinção. Língua de pequenas celebridades encurraladas entre usurários e favelados atenuando seus transes num vago budismo de inspiração nagô, e que aos poucos começa a ser “disponibilizado” inclusive aos executivos do segundo escalão. Deste modo:
Ele estava no escritório da sua casa, dele, ela entrou e perguntou o seu endereço. Precisava do endereço para mandar um convite. Ele deu o endereço, não achou ruim a vinda dela, nem boa, deu o seu endereço, ela foi embora. Houve uma pequena falha, um número do código postal errado, e ele a procurou para corrigir o erro e comentou que talvez não pudesse aceitar o convite dela… (pág, 22)
Claro que neste procedimento a autora deposita um propósito estético, evoca um pano de fundo mental. Ela o faz na perspectiva de um efeito de linguagem. Não se trata de questão de imperícia. Por outro lado, o prosador standard pode ser figurado como aquele sujeito que tem uma ideia mais ou menos clara da clientela a que serve, ao contrário do poeta que nas ocasiões em que se dispõe a apresentar sua identidade como “a voz” por detrás da linguagem, mesmo assim costuma se refestelar mais com o solilóquio do que com qualquer outra coisa. Ou seja, para o prosador o leitor se converte numa entidade essencial. Digamos que ele o vê como a face subjetiva do mercado editorial, um índice epifânico deste segmento humano, agora visado como um público potencialmente fiel — caso não seja contrariado em suas esperanças — que forma uma classe de interlocutores que por diversos modos dá continuação às produções de tal série literária. Sendo assim, para o narrador, é vital saber quem é e como reage esse leitor frente aos seus estímulos. Então, onde, no caso de Beatriz Bracher, termina sua escolha por esta forma ou aquela de discurso, e onde começa sua preocupação em atender a demanda de um público de leitores-seguidores? À diferença do feito perpetrado por Poe que, ao inventar o conto policial, acabou por inventar o leitor para esse modo de escrita, a prosa contemporânea submete sua capacidade de invenção aos limites de linguagem desse leitor que, cada vez mais, se mostra satisfeito em afivelar a máscara de internauta, flâneur voraz do fragmento, da informação básica e do conteúdo sem cotejo. Já o poeta o despreza (o público leitor) por secundário — ou talvez por um receio de que uma eventual identificação alcançada torne essa relação algo corruptora —, pois do seu ponto de vista o que está em jogo, em primeiro lugar, é o sucesso estético e não comunicativo do poema.
O que é bom e que o não é?
Mas, no mesmo conto, algumas páginas mais adiante, Beatriz Bracher esboça pequenas incisões experimentais no corpo do texto. Como todo experimento, o risco e o riso da arbitrariedade rondam. Alguém já disse que o texto literário não deixa transparecer em sua economia genésica toda a gama de vacilações, de rasuras, ou até mesmo, de escarificações envolvidas no desentranhamento do neográfico no interior das convenções do discurso literário. Já que quando é dado por embalsamado — como escreve João Cabral num poema —, isto é, quando acaba num livro, aquilo que era febril e fabril resta apagado de uma vez por todas. Assim, em duas páginas do conto em causa, a autora resolve trazer à superfície da materialidade textual esse esforço heurístico e quase que físico do escritor no corpo a corpo com a linguagem, na tentativa de reencenar a pulsão tanto indicial quanto icônica do verbal; essa “estranha esgrima”, metáfora escolhida por Baudelaire para representar o artesanato, a oficina irritada e irritante do escritor tatuando a folha incólume. Para tanto, Bracher simula o industrioso e ocioso trabalho da escrita no encalço do melhor efeito aplicando em alguns pares de palavras, a saber: “memento-momento” (pág. 24); “redundância-similaridade”; “minha-dele”; “vir-ir” (pág. 25) dois sinais visuais: um traço contínuo que corta sempre a primeira palavra da parelha, e outro que da mesma forma sublinha sempre a segunda palavra do compósito. Esses sinais, tiques de linguagem, podem nos sugerir, num primeiro passo interpretativo, o seguinte: o primeiro, a rasura, o apagamento, ato de recusa; o segundo, a escolha, ou o que deve ser levado em conta, não obstante a sombra incômoda da palavra precedente que embora “descartada” ainda pode ser entrevista e, portanto, capaz de emitir um rumor de significações. Por meio dessas variantes que figuram uma escrita em processo, em devir, ofertadas à escolha do leitor, Beatriz faz aflorar à lâmina textual as hesitações emocionais e intelectuais do personagem que se dá a conhecer apenas pelo pronome ele. Vejamos:
Em frases organizadas e sem corpo ele falou, explicando que era uma mentira necessária dizer que ele literalmente restava em uma casa que já não existia. Não exatamente uma mentira poética, se bem que um pouco sim, com certeza. Mais uma mentira filosófica.
Por detrás do experimento da autora, poder-se-ia ler que os pares de palavras evocando escolhas possíveis em suspenso, também apontam para um aspecto da arte do conto que mostra que em seu interior há algo que se narra diretamente (episódio aparente) e mais alguma coisa que permanece cifrada (episódio velado). Neste aspecto se enquadraria a primeira palavra riscada, interditada, do par. E a palavra sublinhada, suportada, nos serviria como símbolo-síntese da narrativa que surge em primeiro plano. Com isto, a autora apresenta algo ou uma situação enquanto parece narrar e apresentar apenas outra, ou aquela que seria a de maior relevância para o enredo. Ao fim e ao cabo, nesse momento-memento de perturbação do clima naturalista da narrativa, a autora convida o leitor a considerar toda significação como uma instância fugidia e controversa. De outra parte, nas palavras de J. L. Borges: “No tempo real, na história, sempre que um homem depara com diversas alternativas opta por uma, eliminando e perdendo as outras; não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha ao da esperança e ao do esquecimento”. Em fim, Beatriz Bracher, num lance de metalinguagem, como que deixa em suspensão, ou numa quase precipitação, variantes construtivas e de sentido na perspectiva de que um leitor ficto vasculhe às apalpadelas as ranhuras de um texto vivo, em processo, ou inacabado, como a sua própria fruição.
Em vários momentos de Meu amor, a autora nos coloca numa situação sem escape. Isto é, às vezes se torna difícil discernir entre o que é bom e o que não é. Mas, Bracher não anda sozinha nessa incômoda virtude. Nos últimos tempos os estímulos sobre a sensibilidade aumentaram em progressão geométrica e produziram digamos assim, figuradamente, um novo surto do “mal de Usher”, de que trata o breve e conhecido conto de Edgard A. Poe, “A queda da casa de Usher”, onde se descreve a mórbida agudez dos sentidos do personagem, o embotamento da percepção pelo extremo requinte. Com efeito, ao chegarmos a essa condição de leitores saturados conseguimos reconsiderar ao menos como ironia, o conto de Poe como a metáfora feita à medida para o nosso agora-agora. O altíssimo grau informacional e a rosácea de referências exigidos pela literatura de culto do pós-tudo, e o risco-oportunidade de repetição ou de inovação que nos ronda, “otimizaram” a tal ponto o nosso faro experimentado e de fundo burguês, que só conseguimos suportar ou levar em consideração, agora, as formas mais insípidas de poesia e a fruir textos de ficção que aceleram a fragmentação do real fazendo a leitura se dissipar numa transpiração intransitiva.
Afetação não-literária
No conto “Davi”, por exemplo, acompanhamos a autora investindo no gosto pelo vulgar e pelo piegas em locuções como “ter você dormindo ao meu lado era tudo o que eu queria”; “O último instante que a memória guarda é o rosto de um menino uivando no vidro preto da janela de um banco”; “...eu precisava te agarrar com força, te morder, eu precisei de você ontem de noite…”, etc.. Mas esses detalhes ainda poderiam ser abonados — como uma espécie de salvo-conduto, e em fim de contas — pelo próprio título do livro. Enfim estes elementos são indissociáveis do uso pesado da fala natural a conduzir as narrativas e acabam plasmando frases surradas e hiperbólicas de gosto suspeito, como as que apresento aqui: “Dedos frios com membranas aquáticas a uni-los…”; “Meus sonhos ainda vivos desenrolam-se, cobras e lemas e pedras e paus mexendo-se dentro do estômago…”; “Ver o garoto de joelhos pedindo para não morrer me sufocou (…) seus dentes batendo na boca do cano do revólver…”; “Meus olhos pulam de horror, as mãos crispadas na boca aberta e hirta, sem qualquer possibilidade de voz…”; “A menina quer ser a mata e, ao mesmo tempo, quer ser o corpo sozinho”; “…um julho especialmente seco, não há água no mundo…”; “Lá fora começou a chover. Chove, chove, chove. Há séculos que chove, o mundo está cansado, encolhendo. A pele da ponta dos meus dedos engruvinha-se na água quente da banheira, submerjo no tédio quente da banheira”. E “My Love”, peça que encerra o livro, se apresenta como o maior exemplo desse lugar incabível onde o bom e o ruim (ruína de qualquer presunção de valor?) se mesclam para apontar e acender quem sabe a centelha insuspeita das singularidades discursivas do modelo de conto de Beatriz Bracher. O conto-poema-canção por onde o conjunto de narrativas termina, se parece com a letra de uma canção pop, de uma balada açucarada à espera de uma melodia previsível. Não é difícil ouvir:
Please, don’t
Let me down
Write me a letter
Say a word(…)
I beg you
now and for ever,
leave my never ending love
alone
Topar com esta peça ao término de Meu amor, me induziu a algumas interpretações (feitas a seguir) que me ajudaram a lidar melhor com situações e questões que sempre me causavam um grande incômodo durante a leitura do livro, a saber: porque a autora parece se esforçar em escrever de maneira não-literária?; porque os personagens do seu livro são quase todos planos?; porque os lugares-comuns do cinema de inspiração norte-americana impõem as balizas à prosa dos meus contemporâneos?; porque a convencionalidade do real é preferível, hoje, à profundeza do artístico?. Para estas questões que me foram suscitadas pelo livro de Beatriz Bracher, minha imaginação crítica forjou o seguinte pensamento.
Leio provisoriamente a canção “My Love” como se fora a chave léxica da reunião desses contos. No sentido em que sua afetuosa alusão ao território pop, quer por sua mundanidade que nos abriga, quer por seu apelo emocional à realidade, consiste em tentar descobrir o interditado, a cifra de outra narrativa criativa, em tudo que fora considerado indigno de atenção e, ainda menos, próprio da arte da literatura. A inspiração de base de Meu amor é de caráter duchampiano, referência onde deita raízes a pop arte da década de 1960. Bracher, à maneira de um artista pop, arrisca-se na fratura do cânone. Para a prosadora, e do mesmo modo para o pop, as coisas e as mitologias parecem melhores quanto mais vulgares e baratas sejam. Em seus contos somos obrigados a perceber uma representação sem relevo e descarnada do cotidiano que tem tanto de lirismo quanto de materialismo. Os dilemas de muitos personagens denunciam um vazio espiritual e um ambiente em que a violência é ridiculamente espetacularizada. Meu amor deixa de lado a fenomenologia da composição em detrimento de uma fenomenologia do fragmento, do descartável como manchete (substituto do pensamento) que vira a fala, o bordão de um dia apenas, e do ready-made, aplicados sobre a superfície de um discurso em relação ao qual a autora poderia dizer (parodiando um dos seus personagens): “Quero pensar que não escrevi, que só falei e, por isso, deixei ir, assim como a história deles, não fui eu a dar-lhe a forma que ficará sendo”. Ou ainda: “…as palavras que aprendeu, as frases que outro falou antes dela, repetindo o que ouviu de outro, que por sua vez — lugares-comuns…”. Um tranco sutil, um incômodo; melhor: uma incomodação — é isso mesmo que põe a literatura em movimento? O percurso inacabado do roteiro ao conto.
Repercussão
Luis Dolhnikoff
Caro Ronald, Começo meu breve comentário pelo seu começo. O desmonte da aura de positividade a priori de certo hibridismo pós-moderno transfronteiriço é perfeito, e perfeitamente oportuno. Dele, pulo para sua excelente análise do poema de Bandeira, à qual acrescentaria, depois de provocado por sua leitura, a relação a um só tempo gramatical e visual das partes finais.Primeiro, a sequencia de versos de um só verbo cria uma verdadeira coluna verbal, que aponta para e prepara o último verso. Este, ao contrário, é uma longa linha horizontal. E tudo isso forma, em conjunção com a semântica da cena, um perfeito micrográfico da ação, ou seja, a queda vertical direto para a superfície do lago. Sua análise lucidíssima desse poema demonstra o quanto Bandeira era enganador, e o quanto somos enganáveis. Ele juntava a um grande talento poético a vontade programática de não ser poético, para ser moderno, e um dos caminhos mais radicais, irritantes, provocativos e eficientes para acabar com o poético era ser, ora, prosaico. Mas Bandeira não era um prosador, era um poeta, e não estava se pondo ou se propopondo a fazer prosa moderna, apesar de tudo, e sim poesia moderna. A tessitura sonora que você demonstra desmonta, ao menos nesse caso, de um prosaísmo pretensamente extremo, que ele resolveu a contradição contrabandeando para um ritmo eventualmente prosaico (pois isso não é verdade para os versos curtos de um só verbo), ou seja, não feito das unidades discretas definidores da linguagem (e do ritmo) poético(s), uma grande densidade de recorrências sonoras (a outra característica definidora da linguagem). O que me leva à Bracher. Ou à sua análise dela. Isto demonstra, de fato, que aquilo que em Bandeira era radical, irritante, provoactivo e eficiente, em Bracher se reduziu, em suas palavras, a “um tranco sutil, um incômodo; melhor: uma incomodação”. Dizer “em Bracher” não é, porém, justo, pois parece tornar pessoal o que é grupal, ou temporal, pois ela aqui é uma sinédoque. Portanto, neste caso, o correto seria dizer: o que em certa prosa contemporânea se reduziu a “um tranco sutil, um incômodo; melhor: uma incomodação”. Então, e fechando o círculo, isso se apllica a ela não por se aplicar a ela particularmente, mas por ela fazer de fato parte de seu grupo. O problema, portanto, é geral, como aliás estava apontado no próprio começo de seu texto. Além de em várias passagens do seu (ou dela) meio.