A nova utopia, de Régis Bonvicino, é uma luta incansável entre a visão descarnada – isto é, real – deste momento humano que atravessamos, e a consciência e o movimento encarnado da linguagem poética. Um livro, embora assumindo o desafio do presente como pouquíssimos que li nestes últimos quarenta anos, escrito depois. Depois de quê?
Depois de dois séculos e vinte anos de mortes e renascimentos da arte e da poesia marcados, sucessivamente, pelo romantismo, pelo simbolismo francês e pelas vanguardas estético-históricas (se começo a contar desde a pergunta lançada em 1800 por Hölderlin: “[…] e para que poetas em tempos de penúria?”, verso principal de sua elegia “Pão e vinho”).
É essa temporalidade deslocada – insisto: diante de uma realidade presente, cujo primeiro nome é desolação – que permite a Bonvicino entregar ao leitor uma radiografia do momento poético e humano atual com uma contundência e um nível fora do comum. A poesia moderna e a contemporânea são mostras evidentes da arte poética como princípio ativo de contradição. A poesia é um não lugar que aparece como lugar. É uma presença utópica sem nenhuma razão – a razão utópica que deu vida ao melhor e ao pior do século XX, quando quis ser a realidade que substituiu o “princípio esperança”. Um exemplo: sem mais lugar que seu próprio não lugar, a poesia, durante a década dos 1960-1970 na América Latina – para territorializar de uma vez essas palavras – escreveu seu pior momento. [já há dois pontos] Com exceções, é claro: pôs sua escrita no lugar da esperança; isto é, deu por fato conquistado de linguagem o que perdeu em realidade
Se há um livro de poemas capaz de sustentar a contradição da poesia moderna sem olvidá-la, e de manter viva a linguagem poética, este é, para mim, A nova utopia. Pela primeira vez, em muito tempo, apresenta-se poeticamente um exercício de fidelidade à poesia que não renega a memória histórica nem o tempo de radical adversidade que se vive hoje. Daí a ironia do nome do livro. Porque não se trata, com efeito, de um mundo sem utopia: não. É a distopia atuando como utopia e a utopia convertida em valor de troca pela revolução midiática e pela desumana realidade do consumismo. E o rastro de miséria humana que já não se pode ocultar, e que convive como “marginalidade tolerada” no dia a dia. A lucidez poética de Régis Bonvicino se joga inteira quando evita toda nostalgia de outros tempos – tanto poéticos como históricos – para confrontar este presente histórico com o tempo da poesia. Nesse confronto, Bonvicino mostra o abismal fracasso entre a produção simbólica – poética – e a realidade mercantil obrigatória em que se converteu o intercâmbio humano-social da vida. A segurança absolutamente falsa da poesia como linguagem “salva” de antemão perante a realidade é, aqui, desmascarada.
Um conhecimento profundo da memória poética percorre esses “poemas do presente”, que Bonvicino mostra como saídos de outro tempo. Não posso chamar de testemunho o que atua por contradição, porque pareceria que uma obrigação ética substitui a possibilidade poética. Se em Deus devolve o revólver (2019-2020) – como se chama sua notável obra anterior –, Bonvicino nos recorda que haver escolhido o caminho poético não foi uma aposta equivocada neste tempo de devastação, A nova utopia reafirma, de modo intenso, seus passos.
https://editoraquatrocantos.lojaintegrada.com.br/a-nova-utopia