Bacharel em Direito, identificado a um grupo de intelectuais católicos, Vinicius de Moraes, aos 23 anos, ainda procurava emprego. A família carioca de classe média pressionava o rapaz, que mostrara, com apenas 15 anos, notável talento de compositor – sobretudo com o sucesso do foxtrote “Loura ou Morena”, composto em 1928, em parceria com os irmãos Paulo e Haroldo Tapajós. Mas em uma carta escrita em Itatiaia e remetida à irmã, em 1936, o rapaz reclama da politicagem e das dificuldades que encontra para se posicionar, confessa que novamente fracassou, e brada nas linhas da sua missiva: “Trata-se de meter a cara em outra porta. O.k., Brasil, let’s go! Hei de trabalhar nem que seja por 200$000”. No mesmo ano, consegue o pasmoso emprego de censor cinematográfico do Ministério da Educação, embora não seja do conhecimento geral, até o momento, o teor dos pareceres assinados pelo poeta.
Ecumenismo místico
É mais profunda do que se apresenta a cisão de Vinicius de Moraes em relação às experiências que viveu e às opções que fez: não se trata, apenas, de um poeta que iniciou carreira com livros de forte religiosidade e grandiloquência literária para desaguar, décadas depois, no letrista popular. Nele também se assiste ao católico que, em seguida, deixa de acreditar em Deus – e pratica, ao final da vida, uma forma sensual e até libertina de ecumenismo místico. Em relação ao emprego público que acabou por fazê-lo optar pela diplomacia, na qual ingressou em 1943, Vinicius de Moraes se viu cada vez mais dividido, buscando sempre uma conciliação entre o funcionário e o compositor, com incursões noturnas pelas casas de show. Há muita ironia quando o flagramos preocupadíssimo já no seu primeiro posto diplomático, o Consulado-Geral em Los Angeles, cidade em que acabara de escrever o poema “Pátria minha”. Nostálgico, seguramente tocado pelo tom melancólico da “Canção do exílio”, sentindo falta de tudo e de todos, o poeta está em dúvida sobre a reação que poderia provocar um verso do seu poema. Em uma carta a Manuel Bandeira, de fevereiro de 1948, ele destaca o verso, para fazer uma pergunta em seguida: “A minha pátria não é filha de negociante nem mulher de militar. Diga se você acha se vão me despedir ou prender por causa. […] Não quero trapalhadas agora. Estou pagando lentamente minhas dúvidas. […] Depois podem me prender, se quiserem”.
Ilha Brasil, talvez
O ex-censor cinematográfico agora se preocupa com censura – e logo percebe os conflitos nos quais sua arte poderia metê-lo. O poema “Pátria minha” foi afinal publicado em livro anos depois – e, de fato, nele não se encontra aquele verso adverso: o autocensor falou mais alto. E talvez o verso tenha sido substituído por outros mais profundos e menos agressivos, a exemplo de
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Eis, no entanto, a única cisão que o poeta jamais apresentou: a do sentimento nacional e genuinamente patriótico, no qual todo o ufanismo se transforma em uma impressão intimista e melancólica, provocada pela distância que separa o poeta de “Uma ilha de ternura: a Ilha/ Brasil, talvez”.
É com essa nota de derramado lirismo que o poeta inicia o poema:
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Esse amor ao Brasil não foi adquirido apenas quando Vinicius de Moraes passou a representar diplomaticamente o país. Ainda estudante em Oxford, graças a uma bolsa concedida pelo British Council, ele se envolveu em luta braçal com um estudante inglês que “disse à mesa coisas desairosas sobre o Brasil”. Esse mesmo sentimento de defesa e desafio seria exibido, tempos depois, no poema “Olhe aqui, Mr. Buster…”, espécie de acerto de contas com a arrogância de um amigo norte-americano, contra o qual o poeta lançou mão da defesa de uma parte do patrimônio imaterial brasileiro:
Mas me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?
Ao longo da vida e da obra de Vinicius de Moraes, foram numerosas essas demonstrações emotivas pelos valores mais caros à nacionalidade. O sentimento de exílio e de desenraizamento costumava afligir o poeta até quando caminhava em ruas estrangeiras, como bem o mostra o “Poema de Auteil”. Ali sobressaem espasmos de quem praticamente havia surtado de saudade. Mesmo quando a situação política no Brasil se agravou, e o diplomata se viu como que forçado a deixar Paris e regressar ao Itamaraty do Rio, não lhe faltava nem mesmo a lembrança da celebração do 7 de setembro. É o que demonstra, em 1964, uma carta famosa – porque também declamada em um dos seus shows – na qual, dirigindo-se a Tom Jobim, ele faz nova declaração de amor: “Deixei Paris para trás com a saudade de um ano de amor, e pela frente tenho o Brasil que é uma paixão permanente em minha vida de constante exilado. A coisa ruim é que hoje é 7 de setembro, a data nacional, e eu sei que em nossa Embaixada há uma festa que me cairia muito bem, com o Baden mandando brasa no violão. Há pouco telefonei para lá, para cumprimentar o embaixador, e veio todo mundo ao telefone. Estão queimando um óleo firme!”.
Concepções integralmente opostas
O poema “Pátria minha”, por mais efusivo que fosse, atraiu a atenção de um poeta também diplomata, a quem notoriamente desgostava qualquer manifestação sentimental em literatura: João Cabral de Melo Neto. Foi ele quem editou 50 exemplares de uma plaqueta com o poema, em 1949, destinando-os aos amigos. Trabalho de artesão, saído da prensa manual que o poeta mantinha em Barcelona, a título de terapia para atenuar a forte dor de cabeça que o atacou durante décadas. Foi justamente ali pelo final dos anos 1940 que a amizade dos poetas se tornou ainda mais sólida – com a ressalva de que ambos escreviam poesia a partir de concepções integralmente opostas. Como demonstra a correspondência e o depoimento de amigos, o autor de A educação pela pedra (1966) nem sequer compreendia os arroubos românticos de Vinicius de Moraes, e chegou a declarar, em uma entrevista, que o poeta de “Receita de mulher” transformava o tema feminino em “abrigo de reações excessivamente subjetivas e até biográficas”.
Está claro que, ao imprimir “Pátria minha”, a homenagem que o amigo pernambucano prestava ao amigo carioca não era de natureza estética, mas sim de ordem política. O que os distanciava por completo na poesia os unia muitíssimo no plano ideológico: os dois homens partilhavam sensibilidade muito semelhante para os problemas sociais, e defenderam em muitos momentos ideias marxistas que visavam à transformação da realidade. Nunca é demais recordar que o principal tema de Morte e vida severina (1955) é a fome e a razão econômica do latifúndio. Tampouco se pode esquecer que, em “O operário em construção”, Vinicius de Moraes sataniza (valendo-se de uma citação de Lucas!) a relação entre patrão e empregado, fazendo surgir, entre outros, o tema da alienação da classe proletária:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
A justaposição dos dois poemas e de suas similaridades e diferenças pode ainda ser estendida ao diálogo que, afinal, os dois poetas estabeleceram sobre seus estilos – a começar pela provocação de Vinicius de Moraes em “Retrato, à sua maneira”. O poema mereceu uma “Resposta a Vinicius de Moraes”, na qual o poeta retratado se defende.
Retrato, à sua maneira
(João Cabral de Melo Neto)
Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica
O grafito Grave
Nariz poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a
Olho nu Árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo
Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!
Resposta a Vinicius de Moraes
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
Imitatio invertida e caricatura fraterna
No poema de Vinicius de Moraes ao amigo, a maior provocação está na imitação do estilo (por isso mesmo, no retrato, à sua maneira). Em literatura, o conceito de imitatio – tão caro às ideias artísticas da Renascença – consiste na apropriação de textos clássicos, para que sejam atingidos os ideais de beleza e de criatividade surgidos na Antiguidade. Por isso mesmo, a emulação tinha valor pedagógico, considerando-se que poderia estimular – e não tolher – a criação do poeta: haveria sempre uma relação reverencial com o passado. Sutilmente, Vinicius de Moraes inverte a cronologia obrigatória no processo de imitação, e passa a homenagear um poeta mais jovem. Descreve João Cabral de Melo Neto com os mesmos instrumentos criados pelo poeta pernambucano, e com igual dicção, como que transformando a originalidade em modelo a ser copiado. O resultado final é um poema que, na obra de Vinicius de Moraes, encontra-se completamente deslocado: não é nem mesmo um soneto, forma a que tanto se afeiçoou, e que foi decididamente repudiada pelo amigo nordestino. A pontuação quase inexistente – não fosse a exclamação final – e a oscilação por vezes confusa entre maiúsculas e minúsculas são os elementos fortes que traem o modelo, e induzem todo o retrato que está sendo elaborado a uma caricatura fraterna. Merece apreço, ainda, a seleção vocabular trazida pelo autor do retrato, que habilmente mistura a semântica mineral de João Cabral de Melo Neto (pedras, calcárias, grafito, árido, deserto, diamante) a um vocabulário nunca por este tematizado (irmão, camarada, fraterno, aedo).
O último verso do poema traz uma informação relevante, pois amplia a amizade entre os dois poetas a uma dimensão política: é ao camarada Cabral que Vinicius se dirige, como se aquele fosse um homem de partido. E está aí, mas nunca na concepção artística, o ponto de encontro. Tanto assim que a saudação final se transforma em epígrafe do poema de resposta, que também identifica em Vinicius de Moraes um camarada de igual dureza… O poema de João Cabral de Melo Neto não é, por sua vez, uma tentativa de retratar o amigo – mas uma autoexplicação de quem se acha “incapaz do vago” e, ironicamente, pede desculpas pela limitação.
O poeta pernambucano distinguia entre os que faziam e construíam a poesia e os que a encontravam em atitude de receptividade – como seguramente era o caso de Vinicius de Moraes. Na política e na diplomacia, ambos se encontrariam pelo menos uma vez mais com as dificuldades trazidas por suas opções. João Cabral de Melo Neto foi colocado em disponibilidade pelo Itamaraty, em 1953, acusado de subversão. E Vinicius de Moraes foi aposentado pelo AI-5, em 1968. Resta, no entanto, um elemento consolador na relação de amizade, em que pesem as ressalvas críticas, e no projeto de uma Pátria melhor. A Pátria que pode ocasionalmente maltratar os seus admiradores genuínos, mas que consegue encontrar um tempo para reparar o erro.