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No dia 25 de abril de 1874, o jornal francês Le Charivari publicou um texto do crítico Louis Leroy intitulado “A Exposição dos Impressionistas”, o qual começava da seguinte forma:
Oh, que dia terrível aquele em que me arrisquei a ir visitar a exposição do Boulevard des Capucines, para fazer companhia ao senhor Joseph Vincent, paisagista, aluno de Bertin, pessoa homenageada e condecorada por vários governos. Coitado dele, que ia com as melhores intenções; julgava ir ver pintura como se vê por toda parte, boa ou má, mais má que boa talvez, mas não atentatória dos bons costumes artísticos, do culto da forma e do respeito dos velhos mestres.
Este artigo − uma das mais célebres páginas, se bem que pelas piores razões, da História da Crítica da Arte Contemporânea − tornou-se famoso pelo fato de nele o seu autor ter destacado uma obra do pintor Claude Monet intitulada Impressão, sol nascente e por, em consequência e com objetivos de troça, ter qualificado de “Impressionistas” os trinta pintores que então expuseram no ateliê do fotógrafo Nadar, à margem da mostra oficial. É bem conhecido o misto de hilaridade e de escândalo com que esta exposição dos Impressionistas foi geralmente recebida tanto pela imprensa como pelo público − que eram consequência da mentalidade incrementada e difundida ainda durante o Império de Luís Napoleão e que se manteve, com ligeiras variações, até ao fim do século 19. Ora, além de Monet, contavam nessa exposição nomes como Sisley, Renoir, Cézanne, Pissarro, Degas, e inclusive uma senhora, Berthe Morisot…
Se faço referência ao texto de Leroy ao iniciar esta breve comunicação não é evidentemente pelo que de curioso, anedótico e burlesco este episódio da História da Arte em si mesmo encerra. A ele recorro, isso sim, porque o considero exemplar no que diz respeito à exibição de uma atitude crítica espartilhante, dogmática e espiritualmente confrangedora ao evidenciar a incapacidade de este jornalista ver, compreender e sentir as obras-primas da pintura que se estendiam ante os seus olhos estupefatos. Aparentemente limitada à consideração de uma pintura de grandiloquente e medalhado estilo acadêmico, a capacidade analítica e estética de Leroy, se acaso existia, não conseguiu ganhar asas e, perante a novidade, o inesperado e o diferente, não procurou voar e tentar saber “o que está para além da montanha”, para utilizar a feliz expressão do escritor Rudyard Kipling.
Se este tipo de atitude tem sido habitual na História da Arte, a verdade é que facilmente o detectamos também em outros aspectos da nossa sociabilidade. Longe de ser um fenômeno específico da História da Arte, este enfoque contrário à inovação, à diferença, à singularidade e à liberdade expressiva é uma constante na história da Humanidade. A sua incidência no campo artístico, no entanto, tem sido frequente devido, precisamente, ao fato de a Arte ser um veículo privilegiado de comunicação entre os indivíduos. Recorrendo a uma analogia como forma de melhor fazer compreender esta minha afirmação, diria que a violência física e verbal que verificamos rodear hoje em dia o mundo do futebol − em certa medida uma verdadeira arte coreográfica a que André Maurois, em uma frase hoje famosa, chamou “a inteligência em movimento” −, esta violência, dizia, mais não traduzirá, afinal, que a própria violência social, expressa em um domínio − o Futebol − para o qual se têm virado cada vez mais atenções e que, portanto, é alvo de crescentes lutas, intrigas e jogos de interesses.
Referi-me atrás à Arte como sendo um veículo privilegiado de comunicação, o que levanta, de imediato, dois problemas essenciais: o primeiro, procurar saber o que é a Arte; o segundo, verificar como a Arte se relaciona com o quotidiano societário.
Ora, no que diz respeito ao primeiro ponto, como não é possível compartimentar a Arte dentro de um conjunto de regras passíveis de aplicação generalizada, poderá não ser fácil definir as qualidades absolutas que um determinado objeto deve possuir para poder ser considerado Arte. Efetivamente, não é mais Arte a Torre de Pisa que uma pintura de Giotto, nem é mais artística uma escultura de Rodin que uma outra realizada em Çatal Höyoük nos finais do sétimo milênio antes de Cristo, por exemplo. E isto porque os níveis e os contextos mentais e civilizacionais são bem diferentes, como diferentes foram as visões e as concepções do Universo circundante. Independentemente desta dificuldade, artistas, críticos e filósofos têm dedicado atenção a este assunto, suscitando reflexões que deram origem ao nascimento de uma ciência, a Estética, necessariamente subordinada às variações ditadas pela evolução e subsequentes flutuações analíticas e conceituais da Filosofia, da História, da Sociologia e da Psicologia.
Contudo, paralelamente às diferenças evidenciadas pelas diversas realizações artísticas, é também detectável a permanência do mesmo impulso criador, o que deverá ser salientado. Isto é, verificamos que nenhuma Civilização existiu sem produzir a sua própria Arte. Este parece ser um fato inerente à condição humana. Mas, sendo assim, a que necessidade pretenderá, então, satisfazer? A meu ver, busca a satisfação de uma função mental e espiritual que assenta na necessidade de se terem respostas ao nível da comunicação qualificada. Já o pintor Delacroix o disse a respeito da pintura, referindo-se a ela como “uma ponte lançada entre as almas”. Beethoven, na música, e Rimbaud, na poesia, exprimiram-se em termos semelhantes. Cito um antigo ministro francês da Cultura, André Malraux: “A Arte e a Civilização uniram a Humanidade em um laço apertado, se não eterno, e contribuíram para fazer do Homem algo mais que um sobrecarregado habitante de um Universo absurdo”. Podemos dizer que, desta perspectiva e em certa medida, a Arte acaba por ser a respiração da mente.
Disse mais atrás, se estão recordados, que pode não ser fácil definir as qualidades absolutas que um determinado objeto deve possuir para poder ser considerado Arte. Contudo, tal será possível se dispusermos dos instrumentos culturais que nos permitam uma análise adequada. Através da sua utilização, poderemos chegar a conclusões tendencialmente seguras. Assim, verifica-se que uma efetiva “Obra de Arte” apresenta sempre as seguintes condições reais:
1º qualidade formal − ou seja, grande qualidade na inter-relação dos elementos formais que constituem essa obra;
2º originalidade conceptual − ou seja, essa obra tende a estar concebida de forma original;
3º profundidade filosófica específica − por outras palavras, as mensagens que transmite estão longe de ser superficiais; pelo contrário, expressam um sistema de ideias estruturado com uma certa robustez.
Estas três condições são alicerçadas nas seguintes características do autor:
1º bom conhecimento dos meios que utiliza;
2º espírito criativo inovador;
3º persistência na expressão das suas propostas.
Nesta conformidade, a “Obra de Arte” fica investida de uma especial durabilidade que lhe confere uma reconhecível permanência no Tempo.
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Afirmar que a essência da Arte é ser comunicação qualificada implica também referenciar o Artista como um comunicador qualificado.
Assim sendo, que pretende o Artista comunicar? Ele deseja revelar a sua verdade mais íntima, afirmar a sua interpretação da realidade circundante e, simultaneamente, interrogar-se a si mesmo, descobrindo-se e enriquecendo-se humana e espiritualmente. Pretende, em suma, partilhar as suas concepções e as suas descobertas com o seu semelhante, desta forma elevado a espectador privilegiado do fenômeno criador.
O Artista é pois, no seu âmbito de ação, um verdadeiro demiurgo, ou seja, um construtor de mundos até então ignorados − e isto tanto para a Pintura como para o Teatro, tanto para a Arquitetura como para a Música, ou para qualquer outra disciplina. A afirmação de si mesmo e da sua individualidade criadora, o seu desejo de permanência expressando a luta eterna entre a Vida e a Morte; a sua vontade de partilha (pois a Arte também combate a solidão); o seu espírito inovador em maior ou menor grau; e, finalmente, as suas próprias interrogações e reflexões, conferem à “Obra de Arte” um cunho profundamente pessoal e imbuído de uma linguagem simbólica específica. Treinando-se para compreender mais de si mesmo e do quotidiano que o rodeia, de modo a poder expressar cada vez melhor e mais fielmente a sua “Verdade”, o Artista expande não apenas os seus horizontes próprios mas possibilita-nos também a nós − espectadores, observadores, leitores ou ouvintes − que expandamos também os nossos, o que levou o escritor Marcel Proust a dizer, com justeza, que “o prazer que o artista nos dá é fazer-nos conhecer um universo mais”.
Estes criadores de Arte, exprimindo as suas vidas e as suas experiências pessoais nas obras que executam, possibilitam-nos, assim, o acesso a vários mundos, proporcionando, em certa medida, que possamos transcender a própria condição humana no que à limitação cronológica da vida diz respeito. Ou seja: tanto o historiador profissional como o amante da Arte, ou mesmo, apenas, o honesto observador atento e interessado, apoderam-se de diversos e multifacetados mundos interiores, de variadas expressões de vivências, experiências, trajetórias e concepções da Existência. É-lhes conferida, desta forma, a faculdade de contatar com mais universos que aqueles que, por si sós, poderiam conhecer e, em consequência, é-lhes possível também enriquecer o seu particular universo interior, ampliando-o através da obtenção de maior soma de elementos que, conjugando-se, contribuem para melhor compreensão no que se refere ao percurso da aventura humana.
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Pelo que atrás afirmei, lógico é concluir que a Arte é uma necessidade e não um luxo ou uma frivolidade de salão mundano, como tantas vezes se tenta fazer crer; e que não deverá, portanto, ser algo exclusivo de uma minoria de iniciados, de estudiosos e de privilegiados, habitualmente inacessível ao comumente denominado “grande público”.
Contudo, apesar desta constatação, verificamos que, para este “grande público”, com frequência a Arte aparece como uma realidade na qual dificilmente pode penetrar, ficando assim estabelecida uma separação entre o seu quotidiano e a Arte. É lícito e inevitável que nos questionemos então: Que fatores contribuirão para este divórcio entre o artista criador e a obra de arte enquanto seu veículo de comunicação, por um lado, e o público, por outro? E quais as características de que se reveste? Busquemos as respostas a estas duas perguntas.
Consideremos primeiramente o Artista. Já acerca dele teci algumas considerações, mas impõe-se agora que recordemos e sobretudo reafirmemos o que atrás em parte já foi referido: que ele deve ter um correto (e tão perfeito quanto possível) conhecimento dos meios e da sua aplicação; que deve ser persistente na expressão das suas propostas, ou seja, das suas criações; e que − questão fundamental − deve possuir um espírito criativo inovador. Significa isto que o criador que possua estas características pode imediatamente incorporar excelência e qualidade em seu trabalho? Respondo que, em princípio, sim, naturalmente − se isso corresponder a uma autenticidade assumida. É que não será um Artista verdadeiro aquele que constranger o seu talento para agradar a facções, a grupos ou a modas, ou que forneça produções artificiosas tendo em vista conseguir vastos proventos à custa de ingênuos ou de novos-ricos, ou que busque apenas o reconhecimento de largos setores populacionais frequentemente alienados por manipulações sociais. Ou seja, o Artista autêntico deverá ser dotado de corajosa persistência de modo a poder resistir a ambientes habitualmente adversos.
Como exemplo daquilo que agora afirmei, reparemos no que se passou com algumas personalidades: comecemos pela denominada Escola de Barbizon, que reuniu, entre outros, os pintores Rousseau, Millet e Corot. Sendo sobretudo um grupo de amigos, sem uma unidade teórica e conceitual, estiveram sob a suspeita de serem perigosos anarquistas e a polícia tentou várias vezes prendê-los e difamá-los, ainda que sem êxito. Millet, por exemplo, sofreu diversas tentativas de agressão, às quais só escapou por ser um homem forte e decidido. Quanto aos Impressionistas a que no início aludimos, foram continuamente caluniados pela imprensa do regime de então, que chegou mesmo a tentar dá-los como loucos. Cézanne foi caracterizado como “uma criança de mama que faz borradelas”; a Monet criaram problemas tais, impedindo-o de ganhar o sustento quotidiano, que a sua primeira mulher faleceu, tanto por não poder comprar os remédios de que necessitava como por subalimentação. E os exemplos poderiam multiplicar-se. Só com a chegada de uma nova mentalidade diminuiu esse franco ambiente de hostilidade. Poderemos perguntar-nos: por que tanta animosidade contra simples pinturas de gente pacífica? A resposta residirá no fato de estes, ao proporem uma nova visão das coisas, autêntica e liricamente salubre, porem em causa muitas das estruturas mentais e de comportamento em que assentava a sociedade da época − e isso era evidentemente inquietante para quem detinha o poder político. Quanto aos pintores ditos oficiais − muitos dos quais já desapareceram das salas de exposição dos museus, tendo sido remetidos para as suas caves ou depósitos −, viviam no conforto econômico e social, muito respeitados, pintando aplicadamente e sem faísca de originalidade retratos de importantes personalidades da chamada “boa sociedade”, e enviando aos “Salons” oficiais medíocres exemplares da sua “arte” lambida e artisticamente morta. Alguns deles tinham capacidades técnico-artísticas, mas não tinham ética, autenticidade e independência de espírito; pelo que, passado o período em que estiveram na moda, foram colocados pelo Tempo − que alguém já disse ser o maior dos críticos − no justo limbo do esquecimento.
No que diz respeito a determinados artistas nossos contemporâneos promovidos pela publicidade − ou são Artistas autênticos (e nesse caso não há jogadas de interesses econômicos que os aniquilem, porque a sua obra resistirá), ou não passam de episódicas vedetas que a breve trecho os conhecedores sérios e informados desmascararão como simples blefes.
Tenho vindo a fazer assentar os exemplos mais no campo da Pintura. Mas se passássemos para outra disciplina, ou o panorama seria afim (caso da Música), ou até mais marcado (caso da Literatura, uma vez que o seu universo é, devido à especificidade de comunicação da palavra escrita, mais “interveniente” ou aparentemente mais perceptível).
Passemos agora, de forma breve, a considerar a Obra de Arte. Em função daquilo que já disse, tornar-se-á evidente que aquilo que nela o Artista deseja explanar é, prioritariamente, a sua Ideia, isto é, elementos (ou mesmo a totalidade, aí sintetizada) das suas concepções existenciais. Os meios expressivos são uma consequência, evoluindo a partir dessa mundividência. A inexistência, no Artista, de uma profundidade filosófica específica a que já aludi, traduz-se inevitavelmente na pura reprodução mecânica de uma linguagem plástica adotada de outrem, a qual foi aprendida e mesmo, eventualmente, compreendida, mas que lhe não é própria. Uma obra nestas condições não é uma obra “viva”, mas sim “morta”.
Nesta altura, já tereis compreendido que não sou partidário das teorias puramente formalistas da análise da obra de arte, que não buscam o que subjaz às formas evidenciadas pelo quadro. É que um trabalho artístico põe-nos o problema da necessidade da sua decifração, como se depreende do que atrás referi. Ora, esta tentativa de obtermos uma correta compreensão implica sempre a necessidade de se proceder à sua leitura completa, pelo que não se pode limitar à análise plástica e histórica da obra, como tantas vezes ainda se faz, mas necessita de ir mais longe, dirigindo-se tanto ao consciente do artista como ao seu inconsciente. Estudiosos como Emile Mâle, Elie Faure, André Malraux e Ernst Gombrich, entre outros, perceberam-no perfeitamente, tendo aberto, com os seus trabalhos ligados à Psicologia da Arte, novas e mais proveitosas perspectivas no que se refere à possibilidade de decifração dos artistas e das suas obras.
Ou seja, não basta “sentir” a obra de Arte. Há também que compreendê-la, procurando simultaneamente compreender o artista. Só com esta disponibilidade e abertura de espírito é possível que entre em ação a magia comunicativa que a Arte constitui.
Isto nos conduz ao terceiro ponto que há que considerar: aquilo a que habitualmente se chama “o público”. Esta denominação, talvez cômoda, é, afirmemo-lo desde já, profundamente incorreta, pois, na verdade, não existe “o público”: existem “públicos”. “Isto é óbvio”, podereis dizer-me com razão. Contudo, tal perspectiva generalizadora e unitarista é inúmeras vezes afirmada para salientar um acentuado divórcio entre os Artistas, a Arte e os seus possíveis receptores, o que tem contribuído para, paulatinamente, se radicar nos espíritos a ideia de que a Arte é um produto de difícil acesso, apenas destinado a uma elite, mais ou menos endinheirada, a qual, tendo satisfeitas as suas elementares necessidades materiais, dispõe então da oportunidade de se deleitar na ociosa contemplação de tais criações.
Urge que repudiemos este equívoco tão divulgado com intuitos que provêm de certa má-fé. Evidentemente que a satisfação das necessidades materiais pode assegurar a disponibilidade espiritual necessária ao estímulo da compreensão da obra de arte e ao crescente refinamento do gosto, da sensibilidade e da inteligência cultivada. No entanto, verdadeiramente fundamental na adesão ao prazer superior que a boa obra de arte proporciona é a disponibilidade interior de base que o eventual receptor pode cultivar, no sentido de aprofundar, com maior ou menor dificuldade de sua parte, as condições mentais que lhe permitam fruir as propostas artísticas. E estas coordenadas interiores têm menos a ver com condições socioeconômicas que com uma adequada atitude perante a Arte. Aliás, diria mesmo que a boa situação econômica dos indivíduos conta menos do que se pensa, na medida em que, muitos deles, quando se interessam pelo fenômeno artístico, são geralmente muito mais atraídos por modas e por outros ditames propiciados pela sociedade, ligados à superficialidade do culto das aparências e da publicidade, do que propriamente por um apelo interior derivado da sua condição humana de sujeitos detentores de capacidade estética ligada à sensibilidade e ao intelecto.
Dito isto, deve ser salientado que todo descobridor e inovador é a princípio pouco compreendido. Consideremos alguns exemplos: El Greco foi considerado louco e autor de borrões; Ingres foi acusado de fazer retrogradar a pintura francesa; Renoir foi tido por um “verdadeiro malfeitor que corrompeu a juventude”; Géricault foi violentamente atacado devido ao seu conhecido quadro A jangada do “Medusa” − isto para nos mantermos no campo da pintura. Daí que com razão tenha dito o grande poeta espanhol Federico García Lorca, em carta dirigida a Carlos Morla, que “na vida, aquele que caminha à frente, revestido de esplendor, é aquele que leva consigo um pequeno vaso de lágrimas, e não aquele que aperta na mão um punhado de diamantes”.
Todos os pintores atrás referidos nos parecem agora clássicos, na medida em que fazem parte do que de mais rico possui o patrimônio artístico da Humanidade. Atualmente, só um espírito verdadeiramente tacanho − ou apenas insensível e ignorante − é que ainda pode achar ridículas as figuras femininas de Renoir, distorcidas as naturezas-mortas de Cézanne, ou absurdos os retratos pintados por Picasso. Quero com isto dizer que a incompreensão a que o artista inovador tem sido votado decorre inúmeras vezes do fato de as pessoas não terem ainda aprendido a ler os seus trabalhos, condenando imediatamente aquilo que, para elas, é invulgar, porque apenas diferente do que lhes é habitual. E esta rejeição tanto pode derivar do fato de o espectador se sentir inferiorizado ante aquilo que é diferente e que ainda não consegue decifrar, como pode ser consequência de um néscio sentimento de altaneira e vaidosa superioridade perante o inesperado, optando a pessoa, neste caso, por − de forma deliberada − não procurar compreender a novidade. Existe um tipo de público para quem a sua experiência no contato com a Arte fossilizou a dada altura, impossibilitando a análise e a interpretação da obra que ainda não faz parte − e poderá nunca fazer − do seu espaço mental e das suas vivências, razão por que aquela criação é rejeitada ou, na melhor das hipóteses, olhada com desconfiança.
Mas desde que se faculte, através da instrução e da educação, a iniciação nas concepções do artista reveladas pela forma de expressão por que este opte, a breve trecho estaremos na posse dos instrumentos culturais que poderão possibilitar o entendimento das suas propostas. O consequente gostar, gostar menos ou não gostar já dependerá, então, da inclinação esclarecida e não somente da inculta impressão imediata, a qual em geral determina aceitações ou rejeições irracionais e levianas. Aquilo que pode ser, à partida, uma proposta confusa e enigmática, através da conjugação de esforços da educação, da inteligência e da sensibilidade é passível de tornar-se um todo ordenado e profundamente enriquecedor, que o espectador poderá entender, não é demais repeti-lo, caso se deixe absorver na contemplação da obra e se fizer um esforço verdadeiro para a compreender. Olhar é diferente de ver; ouvir não é o mesmo que escutar. Ver e escutar exigem simultaneamente tempo, concentração e reflexão. A Arte necessita de ser lida, de maneira a não captarmos apenas a sua forma mas também a sua ideia, isto é, toda a estrutura ideativa subjacente à forma por nós imediatamente perceptível. Saber ver é muito diferente do apenas limitarmo-nos a olhar, exige mais esforço mas é, igualmente, bem mais gratificante. Da mesma maneira que uma criança, através da leitura continuada, mais facilmente aprenderá a ler e, especialmente, a compreender aquilo que lê, assim o observador terá que treinar a visão, a sensibilidade e a inteligência para poder, de forma profícua, aceder à magnificência transmitida por uma excelsa obra de arte. Como referiu o escritor Mário Dionísio, “uma obra dificilmente acessível não tem que ser necessariamente detestável”. O importante é aceitar ou rejeitar com conhecimento de causa e não por mero capricho ou provincianismo. E, de acordo com esta perspectiva, facilmente se compreenderá que o papel desempenhado pelos educadores poderá ser absolutamente decisivo na formação artística dos sujeitos e, logo, na construção de uma cidadania completa que, por isso mesmo, rejeite preconceitos e acredite na possibilidade do aperfeiçoamento dos indivíduos e das sociedades.
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O nosso tempo já foi referenciado como sendo o “tempo das imagens”, tão imensa e rápida é a sua difusão e tão grande é a sua influência. Julgo que a denominação “tempo das publi-imagens” (ou “imagens de substituição”, ou, ainda, “sucedâneos da Imagem”) será mais correta porque mais consentânea com este fato, uma vez que frequentemente se procura promover, por razões econômicas e de marketing, uma recepção passiva, rápida e quase irrefletida desse tipo de “imagens”, quando não mesmo a anulação da margem reflexiva do receptor, o qual é desta forma mergulhado − e logo diluído − em uma massa anônima. Ora, a verdadeira imagem é sempre artística e, nesta conformidade, libertadora. E é libertadora porque expressa a Realidade traduzida em sentimentos e ideias tornados significativos da plenitude da Existência. Por isso mesmo é que uma das características da obra de Arte é a permanência no Tempo, como já referi. Aponta, pois, para a Eternidade − que é a Vida no seu máximo grau. E assim entende-se por que é que uma obra de propaganda ou de publicidade não será Arte autêntica, visto que o seu objetivo tem a ver com o efêmero da difusão de uma ideologia ou de um produto. Assinale-se que determinadas mensagens publicitárias entram por vezes no campo da arte; e isto porque os seus autores, na circunstância, não se deixaram ficar pelo utilitarismo estrito da mensagem encomendada.
No que diz respeito ao artista, a verdadeira imagem expressa o seu poder de criação de mundos; quanto ao espectador, há a considerar que ela necessita, para ser decodificada, de tempo, cultivo da sensibilidade e da inteligência, reflexão autônoma e tolerância, como se depreende daquilo que atrás disse. Verifique-se que o bombardeamento dessas tais imagens de substituição a que hoje em dia se submetem os indivíduos, longe de propiciar a capacidade de leitura das Imagens, provoca exatamente o efeito contrário, inibindo-a e distorcendo-a. Potenciais receptores passivos logo desde a infância, o nosso contato com a Arte é frequentemente dificultado. Há que responder, pois, com um maior dinamismo na criação de instrumentos educacionais e culturais que possibilitem o contrariar desta tendência. As escolas e os educadores desempenham, repito, uma função indispensável no aprofundamento de um válido cenário de salutar sociabilidade, que a Arte incrementa e estimula − tal como o exprimi no decorrer da exposição que efetuei.