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A ARTE SE TORNOU DECORATIVA[1]1

Entrevista com o jornalista Otavio Frias Filho [1957-2018] sobre seu livro

Seleção Natural: ensaios sobre cultura e política[2]2

Numa época de especialização militante, na contracorrente da máxima de que a cada um está reservado um nicho próprio de atuação (com o corolário de que é impróprio atuar fora dele), Otavio Frias Filho, ex-diretor de redação da Folha de S. Paulo, recém-falecido, mantinha uma fértil produção intelectual, na qual, fazendo jus ao adjetivo, transitava com lucidez informada da crítica de cultura ao comentário político. Era também dramaturgo, autor de Tutankaton[3]3 e Típico Romântico, entre outros. Seleção natural: ensaios de cultura e política reúne 25 textos escritos ao longo de 23 anos, que tratam de cinema (Abel Gance, Coppola e Truffaut), teatro (Heiner Müller, Nelson Rodrigues e Hamlet), literatura (Dostoiévski, Orwell, Monteiro Lobato) e filosofia política (Tocqueville). O autor também enfoca fenômenos midiáticos contemporâneos, como o da princesa Diana, e debates centrais na atualidade, como sobre a teoria da evolução e o fim da história. No conjunto, os textos revelam um olhar intelectual preocupado com o presente, numa época que não valoriza exatamente essa forma de inquietação. O autor também reflete, nesta entrevista, sobre o jornalismo atual, que para ele conserva, entre suas funções primordiais, a de “oxigenar a vida mental pública por meio da controvérsia e do debate”. Observação que se revelou premonitória, tendo em vista as recentes eleições presidenciais. No conjunto, a surpreendente atualidade da estrevista, feita há quase uma década, indica duas coisas: a percuciência do entrevistado; que o mundo não mudou tanto assim nos últimos anos, apesar do que sugerem as últimas versões de smartphones. (Sibila)

Começo pelo último ensaio do livro, “A descendência de Darwin”. Nele, à medida que você expõe a teoria evolucionista, o que fica como interrogação é: no comportamento humano, qual seria a fronteira entre o que é natural e o que é adquirido?

Otavio Frias Filho: Acho que não existe, provavelmente, uma fronteira, mas uma superposição de elementos inatos e adquiridos. Também penso ser provável que em última análise os elementos adquiridos atuem no sentido de reforçar os inatos.


Com esse artigo, que dá título ao livro, você quis sugerir que optou pela “seleção” de seus textos do passado que não ficaram premidos pela urgência e pelas contingências do momento em que foram escritos? A respeito do publicista português Victor Cunha Rego, você pondera que seus escritos sofrem as vicissitudes do texto jornalístico: premido entre a véspera e o dia seguinte, acabam presos às contingências.

Frias Filho: Quando escrevo textos como estes, coletados em Seleção Natural, penso que o tema ostensivo é um pretexto para discorrer sobre outro tema subjacente. Por exemplo, a pretexto de comentar o filme Peggy Sue, de Coppola, abordo a sensação de que o tempo emocional não é mais capaz de fluir. Ou, a pretexto de falar sobre o jornalista Victor Cunha Rego, escrevo sobre uma geração de intelectuais que se viu dividida entre a esperança de reforma social e o horror ao totalitarismo de esquerda. E assim por diante. O título, bela ideia do editor Arthur Nestrovski, faz um trocadilho, pois além de o livro terminar com o texto alusivo ao darwinismo, do volume constam textos que a meu ver sobreviveram à passagem dos anos.


Ao tratar de “seleção natural”, como você vê o embate entre o discurso da ciência e o da moral, presente em debates recentes, como o da proibição do fumo em ambientes fechados? O que a discussão sobre “seleção natural” nos ensinaria a respeito do hábito de fumar?

Frias Filho: Para além da dependência química, que é um fato objetivo, concordo com os que pensam que fumar corresponde ao impulso de morte, presente em todo ser vivo, de que fala a psicanálise. O que está ocorrendo em nossa época, na minha opinião, é que a longevidade média alcançada pelo ser humano ao longo do século XX torna irracionais hábitos que tinham sua lógica numa sociedade em que a expectativa de vida era pouca. Em outras palavras, se você está numa trincheira na guerra, fume muito. Se vive num ambiente em que provavelmente chegará aos 90 ou mais, fumar implica uma espécie de suicídio por câncer. Ora, há formas menos dolorosas de se matar.


Ainda no ensaio sobre a descendência darwinista, como fica o mito da neutralidade científica? Penso que dessa questão se possa derivar a da autonomia jornalística.

Frias Filho: Penso que não existe neutralidade científica como um valor absoluto, mas que fazer ciência é buscar aproximar-se desse horizonte, que recua conforme avançamos rumo a ele. Algo semelhante, de fato, poderia ser dito sobre a neutralidade jornalística.


Nos primeiros textos do livro, você comenta alguns filmes marcantes dos anos 1980: Blade Runner, Peggy Sue – seu passado a espera, filmes sobre a Guerra do Vietnã… A se tomar o cinema por referência, como você vê a percepção do presente para cada geração?

Frias Filho: O cinema funcionou como uma forma de esperanto na minha geração. Por isso, ao abordar temas como presente, passado, história, mercadoria, psicanálise etc., tomei como pretexto certos filmes que me agradavam ou interessavam na juventude. Adotei essa linguagem, que era a minha e de meus amigos.


Você acredita que para a geração atual assistir a um filme sobre a Guerra do Vietnã – Apocalipse Now, Platoon ou Nascido para matar – tem o mesmo sentido de apreensão histórica que assistir a um sobre a Segunda Guerra Mundial?

Frias Filho: Não saberia responder. De toda forma, me parece que o cinema sobre a Guerra do Vietnã é mais crítico, analítico etc. do que o cinema americano sobre a Segunda Guerra Mundial. Este ainda é um cinema ingênuo, quando não publicitário.


Um filme com inquietações futurísticas atiça a curiosidade sobre o crivo do tempo. Hoje, ao olhar para um filme como Blade Runner, você acredita que nele estão implícitas questões que nos possibilitam compreender melhor o presente?

Frias Filho: Para mim, o que Blade Runner e outros filmes comentados no livro atestam é uma percepção inconsciente de que o tempo presente se eternizou, o que é uma forma diversa de dizer que a História provavelmente acabou. Claro que continua a haver guerras, revoltas, 11 de Setembro etc. Dizer que a História acabou significa apenas dizer que não existe no horizonte disponível nenhum modelo alternativo ao capitalismo democrático que pareça capaz de transcendê-lo.


No texto sobre Peggy Sue, você fala do encanto que os anos 1950 exerceram sobre as pessoas que viviam nos anos 1980. Você cita outros filmes dos anos 1980 que têm referências no imaginário dos anos 1950: Veludo Azul, de David Lynch, O Selvagem da Motocicleta, de Coppola. Quando olhamos esses filmes hoje, que sentimentos, ou espírito de época dos anos 1980, estariam latentes neles e que nos permitiriam vê-los como imagens dos anos 1980 e não dos 1950?

Frias Filho: Na minha mitologia pessoal, os anos 1950 foram os “últimos” da História. Desde então as representações do real são paródias, pastiche, simulacro (para usar um termo típico dos anos 1980). O que existe de novo, a meu ver, nos anos 1980, é que talvez eles configurem pela primeira vez uma década que é feita da mistura indiscriminada e deliberada de estilos das décadas anteriores. Isso, aliás, apenas se prolongou nos anos 1990 e se propaga ainda mais hoje. A internet é o veículo por excelência da simultaneidade, do cancelamento do tempo.


Napoléon, de Abel Gance, filmes sobre a Guerra do Vietnã, Todos os Homens do Presidente e mesmo Cidadão Kane têm no horizonte a “ficcionalização” de acontecimentos reais. Em que medida, para você, o cinema distorce ou mitifica a realidade?

Frias Filho: Eu diria que sempre, de todas as maneiras, em qualquer caso, até mesmo e sobretudo o cinema documental.


Num mundo em que as pessoas se habituaram à cultura da imagem a impressão de realidade em um filme é mais forte que a realidade tátil exibida numa peça de teatro?

Frias Filho: Diria que sim. E iria até o ponto de dizer que o cinema, como apelo às faculdades sensíveis, é em si superior ao teatro e a todas as outras formas de arte. O cinema é a “arte total” que Wagner via na ópera. Não quer dizer que seja “melhor” em termos artísticos do que o teatro ou a literatura, claro. Aí, cada obra é uma obra, com seu valor intrínseco.


Você observa que, embora a composição de obras de arte seja infinita, a partir de certo momento observa-se escassez no efeito que uma específica expressão artística possa suscitar. Em que medida, no mundo em que vivemos, há necessidade de fruição de uma obra de arte no mesmo sentido que para gerações passadas?

Frias Filho: Na minha opinião, a obra de arte passou a ter uma dimensão cada vez mais ornamental, por um lado (fica “bem” gostar de arte contemporânea, fica “bem” ter uma tela abstrata cara etc.), e recreativa, por outro (música pop, cinema comercial etc.) É provável que uma verdadeira “fruição” artística seja menor ou mais rara hoje, mas é também provável que sempre tenha sido uma minoria de pessoas, nesta como em outras épocas, as que se dedicam a perseguir algo assim. Comparo o sentimento artístico ao religioso e concordo com quem pensa que a modernidade está matando ambos.


Você afirma que poucos suportam ler Virgílio ou assistir a Racine. Ao mesmo tempo, grande parte do público moderno é refratária ao modernismo. Mas não é o caso de pensar que, com a indústria cultural, o que se mantém é o divórcio entre arte erudita e popular?

Frias Filho: Não sei se há divórcio entre arte erudita e popular, mas talvez a canibalização da arte erudita pela única vertente de arte popular que sobreviveu – e que, além de sobreviver, dominou o mundo: a arte pop integrada ao consumo de massa.


Monteiro Lobato e Nelson Rodrigues são destacados em seu livro porque as obras deles sofreram incompreensões em consequência de posições políticas e ideológicas que tiveram. Como você vê a valorização de uma obra de arte em função do comprometimento político do artista?

Frias Filho: Estou entre os que pensam que arte e política são domínios autônomos. Pode até haver um grande artista que escreve autênticas obras de arte em obediência cega ao Partido: Brecht, por exemplo. Pode haver um cidadão fascista e detestável que tenha sido um grande escritor: Céline, por exemplo (não gosto dele, mas aceito o cânone). Na maioria das vezes, no entanto, a política piora o artista, até porque os artistas quase sempre não entendem nada de política, simplesmente não está em seu repertório. Mas ainda aqui há exceções: Arthur Miller, talvez.


Sobre Alexis de Tocqueville, você ressalta que para ele, na sociedade democrática, os indivíduos estão “aprisionados na vida privada”, imersos na busca de “prazeres materiais” e submetidos à “tirania da maioria”. Essa afirmação diz algo a respeito das constantes crises recentes no Senado Nacional?

Frias Filho: (Risos) Acho que a conexão seria longínqua demais… Mas Tocqueville foi um dos que previram o hedonismo peculiar da nossa época, voltado à maximização dos prazeres e confortos individuais, sim, mas de forma calculista, cultivada a longo prazo, na sombra de uma longevidade estendida.


No artigo sobre o PSDB, você realça que em nossa história o empreendimento eleitoral de FHC não veio como uma onda irresistível, de fora para dentro do Estado, como nas eleições de Getúlio Vargas, Juscelino, Jânio e Collor.[4]4 As condições que levaram aos anos FHC e o temperamento ambíguo do PSDB dificultam o retorno deste partido ao Planalto?

Frias Filho: Penso que governar nas circunstâncias de hoje significa duas coisas. Uma, obedecer ao núcleo dinâmico da economia (que é o setor minoritário da sociedade integrado de fato ao mundo e que financia as campanhas eleitorais). Outra, destinar uma parcela dos impostos a subsidiar um mínimo de condições de vida no estrato mais pobre. Essa é a fórmula, aliás, do que foi chamado de Consenso de Washington. Para se eleger, cada candidato terá de fazer promessas não apenas de manter, mas de ampliar esse colchão social.


Em 1991, em carta aberta a Collor, você escreveu que o governo do então presidente da República seria tragado pelo turbilhão do tempo. Você entende que o atual governo Lula, que se mantém intacto com as crises que o cercam, com o exemplo do passado aprendeu a lidar melhor com a imprensa? Ou há condicionantes específicos do governo Collor que elucidam sua derrocada?

Frias Filho: O governo Collor era bonapartista, tentou pairar sobre a sociedade e até confrontar todos os grupos de influência ao mesmo tempo (Congresso, Judiciário, sindicatos, entidades empresariais, imprensa). Caiu, provavelmente, por isso. Deixou como legado a “agenda”, que continua sendo a do país hoje, dito de forma simplista, da modernização da economia por meio de sua exposição à competição interna e externa.


Para você, a vida da cantora Madonna tem presença e efeitos tão públicos quanto decisões do Banco Central. Com isso, a espetacularização a que fenômenos de mídia estão expostos seria uma patologia de nossos dias e ao jornalismo caberia configurar o retrato de uma época tal como percebido pelos contemporâneos?

Frias Filho: Não sei se a espetacularização é uma patologia, gostaria de acreditar que sim, mas talvez ela seja apenas uma expressão, multiplicada pelos meios técnicos de nossa época, do narcisismo próprio de todo ser humano, de todo ser vivo. Configurar um retrato da época tal como percebida pelos contemporâneos é um dos propósitos legítimos do jornalismo, mas há outros. Oxigenar a vida mental pública por meio da controvérsia e do debate seria um deles. Municiar o cidadão com um repertório de informação e opinião que lhe permita exercer melhor a cidadania, conforme queria Jefferson, seria outro.

Fonte: extinto website Trópico.


[1]             Entrevista a Humberto Pereira da Silva (professor de filosofia e sociologia e crítico de cinema, autor de Ir ao cinema: um olhar sobre filmes [Musa Editora]).

[2]             São Paulo, 2009, Publifolha, 218 pp. (posfácio Marcelo Coelho).

[3]     Ver crítica de Luis Dolhnikoff em “Sobre Cinco peças e uma farsa

[https://sibila.com.br/cultura/sobre-cinco-pecas-e-uma-farsa/9992]

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[4]     E igualmente de Lula e Bolsonaro, poder-se-ia hoje acrescentar [nota de Sibila].