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A leitura segundo Steiner

“Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total (…). É assumir responsabilidade pelo texto (…): é um processo de exames que testam a compreensão do essencial apreendido. Essa palavra pode ser usada para sintetizar estágios complexos de leitura representados pela tela de Chardin.

É com o lápis que se fazem anotações à margem do texto. Essa marginália é a prova imediata da resposta do leitor ao que ele lê, do diálogo que se dá entre livro e leitor. Costumamos sublinhar trechos (principalmente se somos estudantes ou escrevemos críticas literárias premidos pelo tempo). Às vezes rabiscamos algumas anotações nas margens. Porém quão poucos de nós redigimos marginálias no sentido das que eram produzidas por Erasmo ou por Coleridge. Quão poucos de nós anotamos profusamente com rigor. Hoje em dia apenas o epigrafista especializado, o bibliógrafo ou o estudioso de textos específicos corrige, revê, repara, acrescenta, isto é, somente essas categorias de leitor encontram no texto uma presença viva cuja contínua vitalidade, cujo intenso esplendor depende do envolvimento efetivo do leitor.

Quantos de nós temos o preparo suficiente para corrigir até mesmo o mais crasso equívoco na citação de um clássico, identificar e emendar o mais pueril dos erros de inflexão e de métrica (…)?  A memória é, naturalmente, o ponto crucial. A capacidade de reagir ao texto, a compreensão e a resposta crítica à ‘auctoritas’ pertinentes ao ato clássico da leitura representado por Chardin dependem estritamente das artes da memória. ‘Le Philosophe lisant’, como os homens cultos com que ele se associa (…), sabem textos de cor (…). A capacidade de citar de memória as Escrituras, de recitar de cor longos trechos de Homero, Virgílio, Horácio ou Ovídio, de ter sempre uma citação apropriada de Shakespeare, Milton (…) gerou uma tessitura compartilhada de ecos, de identificações e reciprocidades intelectuais e emocionais sobre a quais fundamentou-se a linguagem da política, das leis e das letras britânicas (…).

O leitor clássico, o ‘lisant’ de Chardin, situa o texto que está lendo em um espaço cheio de ressonâncias. Um eco responde a outro, a analogia é precisa e imediata, as correções e as emendas são justificadas por precedentes evocados com precisão. O leitor reage ao texto com toda a densidade articulada de seu próprio repertório de referências e associações (…).  A atrofia da memória é a característica principal da educação e da cultura a partir da metade do século vinte. A grande maioria de nós já não sabe mais identificar – e muito menos citar – até mesmo as passagens bíblicas mais importantes, tampouco os textos clássicos que constituem não apenas a escritura subjacente à leitura ocidental (…) como também constituem o próprio alfabeto com o qual são codificadas nossas leis e instituições públicas.

As mais elementares alusões à mitologia grega, ao Antigo e Novo Testamento, ao clássico, à história antiga e à europeia tornaram-se herméticas (…). Já não mais aprendemos de cor. Os interstícios do nosso saber não comportam ecos, pois estão entulhados de trivialidades estridentes. O fólio, a biblioteca particular (…), as artes de exercitar a memória pertencerão, cada vez mais, a umas poucas pessoas especializadas. O preço do silêncio e da privacidade será cada vez mais alto.”

 

(STEINER, George. “O leitor incomum”. In: “Nenhuma paixão desperdiçada”. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 18, 26-28)