Da condição humana
Morte certa. Medo certo. Um sentimento partilhado pela comunidade chinesa e ocidental perante uma inevitabilidade. Apenas mudam os rituais.
Como uma sombra. Sempre (in)esperada, a morte é o cerne da condição humana. Independentemente das crenças, etnias e origens, o fim a que o corpo está votado é um medo comum às comunidades chinesa e ocidental. Coveiro durante mais de trinta anos, a morte tem sido a vida de Fu Sok. E o cemitério de São Miguel Arcanjo a sua casa.
Um sítio “limpo e pacífico”. São as palavras de Fu Sok para descrever aquele que foi o seu local de trabalho durante mais de trinta anos. Cavava os buracos onde seriam enterrados os corpos, retirava os ossos do caixão para proceder à limpeza ou reparava lápides danificadas.
Seguiu as pisadas do pai, também coveiro. Enquanto as outras crianças brincavam na rua, Fu Sok divertia-se no cemitério. Ganhou um “grande respeito pelos mortos”. Quase podia dizer que “faziam parte da sua família”. Cedo se apercebeu da inevitabilidade da morte. E da “tristeza” que lhe está associada.
Em trinta anos de profissão, assistiu a diferentes funerais. De pessoas de múltiplas nacionalidades. Ciente da heterogeneidade de rituais, conhece mais os que fazem parte da sua própria cultura. “No funeral, os chineses trazem flores, comida para oferecer aos mortos e queimam papéis em forma de dinheiro para que sirva aos mortos num outro mundo”, conta. A cerimônia está a cargo de monges que “entoam cânticos, queimam incenso junto à lápide, colocam moedas nos seus quatro cantos e finalizam o procedimento lançando terra e flores para o caixão”.
Cremação começa a ser opção
Se o enterro é a opção da generalidade dos cidadãos chineses, começam a ouvir-se vozes a favor da cremação. O próprio governo incentiva a sua adoção. “Se forem queimados os corpos, as pessoas ficam com as cinzas e é mais fácil prestar respeito”, declara Fu Sok.
Pelo cemitério de São Miguel Arcanjo, estão espalhadas inúmeras campas. Pedaços da história. Britânicos, alemães, portugueses, chineses, todos ali estão. “Depende apenas do terreno que está vago”, conta Fu Sok. Desde a primeira mulher de Stanley Ho, passando pelo pai de Edmund Ho ou pelo advogado Carlos d’Assumpção, chegando mesmo a elementos do partido Kuomintang. Numa visita guiada pela “casa” que conhece tão bem, o coveiro reformado vai apontando. “Esta é uma campa conjunta, tem mais de mil ossos. Tem quinze metros de profundidade. Se a família não reclamar os ossos é para aqui que vão”, explica. Perante um monumento com uma inscrição gravada, afirma: “É o ossário dos Bombeiros de Macau”. Quanto mais anda, mais se lembra de histórias. “Edmund Ho vem cá frequentemente para prestar homenagem ao pai e ao avô”, diz, em jeito de confidência, apontando para a campa de Ho Yin. Mais uma vez, a morte como condição humana. Que une todos os homens, do trabalhador das obras ao Chefe do Executivo.
Do convívio com esta realidade, nasceu um grande “respeito” pelos mortos. Se pisa alguma campa, Fu Sok diz logo “desculpe”. Não por medo, mas por educação. Se há espíritos? Não sabe. Nunca ouviu falar disso. “As campas são espaços para os espíritos descansarem”, diz. Mas, confidencia, chegou a receber um ou dois telefonemas estranhos. Do outro lado da linha, alguém lhe dizia que um morto, em sonho, tinha pedido para endireitar a lápide. Desconfiado, Fu Sok procurava averiguar. O espanto era enorme, quando se apercebia de que “a lápide estava realmente torta”. Como homem pragmático, assumia que “a terra tinha deslizado”.
Aos 58 anos despiu a veste de coveiro. Mas passados quatro anos do dia da reforma, Fu Sok continua ali perto, não se conseguindo desligar. É por isso que ainda hoje as pessoas lhe ligam a pedir conselhos sobre rituais.
Um antropólogo curioso
Os chineses mantêm uma “relação pessoal com os vivos e os mortos”, o que os distingue dos ocidentais. É a conclusão de Bill Guthrie, um norte-americano antropólogo de formação, um curioso do que se passa no interior dos cemitérios de Macau e um “discípulo” de Fu Sok.
O primeiro contato com o “ambiente cultural que envolve a morte” deu-se há doze anos, quando assistiu, pela primeira vez, à “queima de papéis”. Mais tarde, viria a conhecer Fu Sok, o seu “paciente” mestre.
Para os que praticam a religião popular da China, depois da morte cultiva-se a “conversa com os antepassados”. Mas, se para uns é “uma conversa privada”, para outros é “apenas algo que se faz nos festivais”, sem significado. “Um mundo espiritual em que a família mantém contacto com o morto”, diz. É por isso que existem tantas festividades, em que se celebra o culto aos antepassados. É o caso do Festival Qingming, dia em que os chineses se deslocam em massa aos cemitérios, limpam os túmulos, oferecem comida, chá e vinho aos mortos, queimam incenso e papéis. Ou mesmo o Festival dos Espíritos Esfomeados, altura em que se colocam ofertas à porta de casa e nos cemitérios, especialmente destinadas aos espíritos que não estão em paz.
“Repare nas mãos de Fu Sok”, diz apontando para uma fotografia. “Veja as cicatrizes – resulta do contacto com terra contaminada”, salienta. Mãos que estão a preparar os ossos para aquilo que se chama “levantar-se da cama”. Uma prática que tem lugar sete anos depois do funeral, que implica a transferência dos restos mortais do caixão para uma gaveta. E que só pode ter lugar num “dia auspicioso”, seguindo os ditames do almanaque Tong Seng.
Queimam-se carros e casas
Para Bill Guthrie, a maioria da comunidade chinesa de Macau segue a religião popular. Onde não tem lugar a crença, mas a prática. “Independentemente de acreditarem ou não, fazem e pronto”, diz.
Antes de escolher o formato dos papéis que irão queimar, dirigem-se a videntes. “Se falar com um jovem de vinte anos, dificilmente conhecerá isto – só acontece nas práticas mais conservadoras”, contrapõe. “Só os mais velhos sabem, a não ser que se tenham tornado adultos no Continente”, diz. Resquícios da política maoísta, recorda.
Seguindo os rituais à risca, podem ser necessários sapatos, equipamento de cozinha, um meio qualquer de transporte, uma casa, uma ponte para transportar a alma do morto deste mundo para o outro. E os papéis – queimados para “quebrar o contacto com a terra” – têm estes formatos. E não só. “Entrevistei uma série de pessoas que me disseram que os membros das seitas queimam réplicas de armas”, acrescenta. Aliás, numa conversa com um líder espiritual, perguntou: “Se uma pessoa tiver pertencido a uma seita ou se fez algo que possa causar problemas numa outra vida, poderá tratar do julgamento?” A resposta surgiu num ápice: “Sim, faço isso numa base regular.”
Por tradição, os chineses preferem o enterro para “preservar a ressurreição da carne”. Mas, tendo em conta que “uma grande percentagem da população de Macau vem do Continente, onde a cremação é regra há 49 anos – por força da política maoísta – e o Governo de Macau é “a favor”, começa a ser uma opção.
Um misto de religiões numa só prática
Rituais que se repetem no seio de uma comunidade em que há uma multiplicidade de religiões. “A maior parte das pessoas afirma que é budista, mas pode atravessar o país e se fizer uma pergunta sobre o budismo, não irá encontrar um único”, diz. O que praticam, ao invés, é a religião popular da China que “inclui o budismo”. Mas não na forma purista. “Acreditam que há uma vida num outro mundo e que só passado um período de tempo é que as pessoas são recicladas”, explica. À partida, todos “os mortos irão para o mesmo sítio, mas pode comprar-se uma casa melhor”. É por isso que os vivos “enviam os presentes”, na esperança de que eles “a adquiram”. Nesse mundo, acreditam os chineses, “também há um tribunal”. E os magistrados estão representados nos vários templos de Macau, garante. “São famosos juízes da antiguidade chinesa”, salienta.
Bill Guthrie interessa-se, em particular, por cemitérios. “Quando estou a passar por um, entro sempre”, diz. Porque ali depara com várias situações curiosas. “Uma vez vi um homem muito bem vestido em frente a uma campa. Tinha uma garrafa de vinho na mão. Serviu um copo e colocou na campa. Serviu outro, brindou e bebeu-o. Tirou dois cigarros do maço, fumou um e deixou outro na campa”, conta. Intrigado, o antropólogo quis saber os motivos. “Aquele homem era polícia e estava a celebrar o aniversário do amigo que tinha morrido numa sessão de treino”, recorda.
São Miguel Arcanjo é o seu cemitério favorito. Porque ali se veem chineses a praticar a religião popular, junto a católicos ou protestantes. Porque todos, apesar das origens e crenças, acabam por comungar de alguns rituais. “Veja, são católicos a decorar uma campa, enquanto os chineses e macaenses estão a queimar papéis”, explica, exibindo uma fotografia tirada no festival Qingming.
Rituais da despedida
É possível dizer adeus?
O imperador, quando assumia o trono, tinha duas preocupações centrais: uma era a busca da imortalidade; a outra era a construção do túmulo. Um pedaço da história que ilustra o “respeito e homenagem ao morto” cultivados então e que persistem na cultura chinesa, declarou a acadêmica da Universidade de Macau Márcia Schmaltz. Professora de português em Macau – e que foi docente de mandarim em Taiwan – , Márcia Schmaltz é uma curiosa da cultura chinesa e tem investigado vários assuntos. A morte é um deles. Existem mais de duzentas designações e vários tabus. “Os números quatro e sete, em chinês, têm o mesmo som que os verbos morte e ir”, diz a título de curiosidade. “Os chineses quando nascem reconhecem os ancestrais, pais e parentes, procuram inserir-se na sociedade, através das suas organizações, e serem amparados quando necessário”, explica. Por isso, o imperador temia ficar só na morte. “Tinha de ser enterrado junto aos familiares”, conta. O túmulo seria o sinal da sua “estabilidade”. Já a busca da imortalidade, fazia-se através da riqueza. “A vida estende-se após a morte e a riqueza estende-se ao túmulo”, explica. O culto da morte era também uma imposição. “A moralidade confucionista diz que a relação dos vivos com o mundo é limitada, por isso o governante tinha de continuar a exercer o seu domínio sobre os súditos e fortificá-lo mesmo depois de sua morte, como se ainda estivesse vivo”, diz.
No chamado período feudal, impunha-se a necessidade de manutenção do sistema clã-patriarcal. “Um instrumento de manipulação eficaz para proteger a ordem feudal que, até na morte, tem de manifestar as relações hierárquicas”, explica. Os rituais fúnebres eram uma forma de os vivos expressarem “riqueza, poder e redes de relações interpessoais”.
Para a etnia Han, o enterro seria a forma tradicional de assinalar a morte. “Os de hierarquia e status social superior seriam enterrados ao alto, podendo, inclusivamente, construir-se uma colina artificial, como é o caso do túmulo do imperador Qin Shihuang, de Confúcio ou do imperador Yu em Shandong”, conta.
Quanto aos serviços fúnebres, antigamente era colocada uma pena sobre o nariz do corpo para confirmar a morte, hábito que se perdeu com a introdução dos métodos científicos. Na antiguidade, também fazia parte da tradição um familiar subir ao telhado sacudindo uma peça de roupa muito utilizada pelo morto. “Estava a chamar a alma, devido à crença de que ocorria a morte apenas quando a alma se desprendia do corpo”, explica. Uma tradição que também deixou de existir.
Atualmente, feito o anúncio fúnebre, os familiares “fecham-lhe os olhos, tapam a boca, cobrem-lhe a cara com um papel ou um pano para preservar a sua face, distinguir a morte da vida e, caso volte a respirar, ser detectado”. Em seguida, é realizada a limpeza do corpo com álcool. Colocam-se oferendas nas mãos e na boca, para que “não parta de mãos e barriga vazia”, sendo amarradas as suas pernas e braços “para evitar espasmos”. O corpo é colocado dentro do caixão que se mantém aberto “por ainda existir uma última esperança de retorno à vida”.
O que diz Confúcio
Dá-se então o velório, onde é prestada homenagem ao morto. “A altura em que este tem lugar depende de vários fatores como as condições financeiras e a afetividade em relação ao morto”, diz Márcia. Primeiro “monta-se uma tenda em frente ao caixão ou a uma tabuleta de madeira com o nome e a foto do morto”, onde estão as cadeiras que servirão para os visitantes, preparando-se ainda uma refeição. Apresentam-se as condolências através de vênias. “Há rituais específicos para os filhos homenagearem os pais”, acrescenta.
Os rituais taoistas são “mais alegres, por se tratar do fim do sofrimento terreno”, enquanto as práticas confucionistas e budistas “são tristes por ser a perda de um ente querido”, podendo incluir a contratação de carpideiras.
Por último, o cortejo. Consulta-se o almanaque Tong Seng para apurar se a data é boa. “O lugar da cova, a sua abertura e a hora de descida do caixão à terra são determinados pelo mestre de Fengshui”, conta. Rígidos códigos ritualistas determinam o modo de fechar o caixão e as palavras que devem ser proferidas na hora da despedida. Reza ainda a tradição que os “trabalhos são encerrados” ao fim de 35 dias.
No Livro dos Rituais, Confúcio afirma que o “maior de todos os lutos” é o dos filhos. Nesse caso, o período de luto é de três anos. “Devem vestir roupas de cores apropriadas”, diz. Para os netos, o período de luto é de um ano e geralmente vestem roupas pretas, amarelas ou brancas. A cor do luto é, regra geral, branca. Tradições que, no entanto, ao longo dos anos, e dada a dimensão da China, têm sofrido variações.
Conheça o Cemitério de São Miguel Arcanjo em Macau: http://oriente-adicta.blogspot.com/2013/05/o-cemiterio-de-s-miguel-arcanjo-e.html
Sobre Marcia Schmaltz 修安琪
Tradutora e intérprete de chinês-português, é professora do Mestrado em Estudos da Tradução da Faculdade de Letras da Universidade de Macau. Possui mestrado e doutorado em Linguística. 汉葡翻译兼澳门大学人文学院葡汉翻译硕士学位任教。 Além de traduções comerciais, científicas e jurídicas, também incursionou no universo da tradução literária: com Janete Schmaltz (1999, 2000) Histórias da mitologia chinesa. Xerox e Da Casa. Yu, Hua (2007) Viver 《活着》. São Paulo: Companhia das Letras. com Sérgio Capparelli (2007) 50 Fábulas da China Fabulosa e (2010) Contos Sobrenaturais Chineses, ambos pela L&PM de Porto Alegre. Lu, Xun (no prelo) Contos completos de Lu Xun. 《鲁迅小说全集》. Porto Alegre: L&&PM. O garoto do riquixá 《骆驼祥子》. São Paulo: Estação Editorial (2017). Márcia morreu em setembro de 2018 de câncer no pulmão. Ela havia retornado ao Brasil e estudava na UFMG. Foi a mais importante e profícua tradutora do português ao chinês e vice-versa. Ver: