A situação da arte, da crítica e da cultura em geral no modo de produção capitalista é objeto de discussão da teoria política desde ao menos Marx e Engels – e também, obviamente, da própria crítica. Foi ainda tema de todas as vanguardas artísticas do século XX, para não falar da sociologia. Longe de esgotada, no entanto, a discussão revela-se hoje reatualizada pela própria persistência histórica do capitalismo, e ganha novo fôlego com o fim da “alternativa socialista”, depois da implosão da URSS e da conversão da China ao mercado. Além disso, a discussão geral não substitui o questionamento particular. Por exemplo, sobre a situação atual da crítica no Brasil.
Não há mais objetos, mas produtos, porque não há relações outras entre sujeitos e “objetos” que não as de consumo. Portanto, não há mais indivíduos, cidadãos ou mesmo “sujeitos”, mas consumidores. Mas como no caso da longa duração da discussão, suas conclusões gerais tampouco eliminam a possibilidade ou a necessidade de análises particulares. Caso contrário, bastaria aplicar automaticamente o geral ao particular e dizer, por exemplo, que não há mais crítica literária, mas publicidade textual de livros, assim como não há mais leitores, mas consumidores de livros. De algum modo, isto deve ser verdadeiro. Mas exatamente de que modo, hoje, no Brasil?
A resposta, como sugere a scholar canadense Linda Hutcheon,1 talvez passe pelo caso particular da resenha “crítica”dos jornais, que pode, quiçá, revelar-se um caso exemplar – além de clarificador
Se o jornal é uma empresa e a informação um serviço, além de o leitor ser um consumidor, a relação entre o primeiro e o último é mediada por uma nova gama de direitos, que vem se firmando desde o segundo pós-guerra, em paralelo aos direitos civis fundamentais: os direitos do consumidor.
Dos direitos civis aos direitos do consumidor, passa-se das relações políticas para as relações de mercado, e os jornais deixam de ser, notadamente quanto a outros “produtos” (ficando por ora de lado as notícias), o “quarto poder” para se tornar um serviço de informação. Neste contexto, no caso específico da resenha, abandonar-se-ia seu escopo artístico-literário e, portanto, crítico, em nome da prestação de um serviço. Serviço que não é e não pode ser a crítica.
O conceito de serviço vem de servir para algo, de cumprir uma utilidade. Além disso, é inseparável da relação de consumo. Uma vez que um serviço é pago porque serve a uma utilidade (incluindo a satisfação de um desejo), é o bom cumprimento dessa utilidade que justifica sua cobrança – tornando, por outro lado, o serviço mal prestado um crime de lesa-consumidor, passível de acionamento jurídico e de compensações.
Mesmo serviços prestados sem cobrança direta ou aparente, e ainda sem demanda originária do consumidor, como a publicidade, não escapam a essa lógica. Se ninguém sai de casa para consumir uma propaganda (ao contrário de um filme ou de uma refeição em um restaurante), e se ninguém pede por qualquer publicidade, paradoxalmente, paga-se por ela, cujos custos são embutidos no produto anunciado. Daí a publicidade viver numa corda-bamba ou limbo ético: ela é um serviço que serve tão somente para levar o consumidor a adquirir um produto, pagando a posterioripor esse serviço não pedido na própria aquisição do produto induzida por aquele. Mas um serviço paradoxal é ainda um serviço, e por isso regulado pelos direitos do consumidor: o consumo involuntário de um serviço não demandado não é proibido, mas ao menos o consumidor involuntário, se não é protegido do consumo indesejado de tal serviço, é protegido da má qualidade dele.
A crítica, diferentemente, não é um serviço, demandado ou não, porque não serve a uma relação de consumo. Ainda que seu suporte, o jornal, seja um produto, e como tal adquirido, e ainda que trate de outro produto, um livro (no caso da crítica literária), a crítica em si não está à venda, nem tem ela por objetivo, como a publicidade, a venda de qualquer produto. Isto fica evidente no caso da crítica negativa, que destaca defeitos e não qualidades da obra analisada. A publicidade sempre aponta qualidades no produto, a despeito dos fatos (e da regulação publicitária e dos direitos do consumidor…), porque ela não existe para considerar fatos, mas tão somente induzir o consumo. A crítica, ao contrário, apenas aponta qualidades se e quando elas parecem existir segundo o próprio crivo do crítico. Daí a crítica não estar à venda (deixando de lado circunstâncias particulares, como a troca de favores ou a obtenção de alguma vantagem). Não poder ser, então, um serviço: não está a serviço do consumidor nem do produtor (a editora), mas da consciência e do arbítrio do crítico (que fica sujeito, portanto, apenas a outra crítica, à metacrítica, ao debate de ideias, enfim, não a qualquer código legal – ou a qualquer relação de consumo).
Mas isto talvez não seja mais verdade – ou não seja mais toda a verdade. Porque a imprensa, sendo cada vez mais uma prestadora de serviço, o da informação, cada vez mais se porta como… uma prestadora de serviço. Trata-se, de fato, de uma situação ambígua. A informação jornalística, materialização da liberdade de informação e de expressão, não é juridicamente um serviço, mas um direito, e um dos mais fundamentais da democracia. Em suma, não existe democracia sem liberdade de expressão e de informação. Mas a lógica de outros direitos que não os civis, os direitos do consumidor, cada vez mais influencia os jornais. Daí estes se verem cada vez menos como agentes políticos (no sentido lato) e mais como agentes do mercado. Ou vice-versa: por se verem cada vez mais como agentes do mercado do que agentes políticos, são cada vez mais sensíveis aos direitos do consumidor. De qualquer modo, o resultado é uma crescente “sensibilidade” ou tendência para respeitar tais direitos, e de se incluir, portanto, numa relação mercadológica de serviço, se não em detrimento de uma relação política de informação fundamental, ao lado dela. E em nenhum lugar essa tendência se manifesta de modo mais determinante do que na informação cultural. Sem voltar a Adorno e ao conceito de indústria cultural, de cultura de massa etc., a produção e o consumo culturais tornaram-se parte (importante) do mercado.
Há fortes evidências nesse sentido, no caso particular da resenha. Nenhuma matéria jornalística quantifica a qualidade do fato tratado, assim como as resenhas não o faziam quanto ao objeto abordado, no passado. Mas hoje o fazem. Assim, enquanto um jornal dá notas entre “ótimo” e “ruim”, passando por “bom” e “regular”, à obra analisada, outro aplica, ainda mais significativamente, classificação semelhante à usada para as ações empresariais: “AAA (Excepcional) / AA+ (Alta qualidade) / BBB (Acima da média) / BB+ (Moderado) / CCC (Baixa qualidade) / C (Alto risco)”. Depreende-se que alguma obra de arte ainda possa ser de “alto risco”. Seria bom se o pudesse, pois estaríamos então no tempo em que a arte, como na época das primeiras vanguardas, tinha o poder ou ao menos a crença de atingir as consciências e reeducar os sentidos. Mas não tem: afinal, ela hoje se insere numa relação de consumo, de serviço – e não um serviço vital. Se um hospital não funciona bem, há de fato altos riscos envolvidos. Mas ninguém morre por ler um livro ruim. O risco aqui envolvido, portanto, é apenas financeiro: o de comprar gato por lebre, de ser enganado. E é de um engano que, talvez, enfim se trate.
Pois a ideia do direito do consumidor invade claramente a resenha crítica, como demonstrado pelas classificações que a concluem, e que são dela diretamente derivadas: o consumidor do produto analisado tem direito, ao fim e acima de tudo, à informação direta, clara e confiável sobre sua qualidade. Sem a moldura do direito do consumidor, as resenhas não trariam tais avaliações. Elas perdem, portanto, seu caráter estritamentecrítico para se inserir na órbita de um direito, o do consumidor. A resenha torna-se, de fato, um serviço.
As implicações são grandes e talvez relevantes. Se a resenha é um serviço (ao servir de avaliadora – e, portanto, de avalizadora – das qualidades de um produto [“ótimo”, “bom”, “regular”, “AAA”, “AA+” etc.]), passa a ficar sujeita, ou deveria ficar sujeita, ao Código de Defesa do Consumidor: “Todo fornecedor de produtos e serviços no mercado de consumo deve obediência às disposições do Código de Defesa do Consumidor” (“Atualização do CDC”).
Particularmente, um serviço de avaliação não deve ficar livre de normas e regulações. Avaliações significam, elas sim, riscos. O risco, por exemplo, de a avaliação ser enviesada, como acontece com ações empresariais, ou de ser inepta, como ocorre com resenhas “de serviço”. Afinal, que garantia tem o consumidor da qualidade do próprio avaliador, no caso do resenhista “de serviço”? Se a resenha se torna um serviço, mas nenhuma garantia é dada ou auferida sobre a qualidade do avaliador, o consumidor é, a priori, desrespeitado.
Para não falar de um aspecto que envolve diretamente o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
Se a resenha é um serviço, o de avaliação das qualidades de um produto, mas não é apresentada como tal, por pretender manter, tacitamente, sua antiga condição de análise não submetida às regras e relações do mercado (mas àquelas do debate intelectual) – daí sua nova condição ou natureza não ser reconhecida ou assumida –, o leitor-consumidor está, de fato, sendo enganado. Se não bastasse, fica ainda impossibilitado de se defender de eventuais serviços ruins.
Notas
- “Penso que este é o momento certo para estudar a ética, a política e a economia da ‘resenha crítica’” (LINDA HUTCHEON: a economia da “resenha crítica”).