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Sobre Cinco peças e uma farsa

1.

A literatura dramática não é exatamente popular no Brasil. Além de a menos lida, também é a menos praticada, se comparada a todos os demais gêneros, da poesia ao romance, passando pelo conto. Para piorar, em tempos recentes, houve certa hipertrofia “tardomodernista” da figura do diretor, que passou à condição de autor sem texto, criando suas peças diretamente nos ensaios (com resultados, como regra, pouco exuberantes). É em tal cenário que a recente publicação de Otavio Frias Filho (Cosac Naif, 2013), reunindo textos produzidos ao longo de quase duas décadas, merece o registro de uma boa notícia.

O volume reúne seis peças bastante diferentes entre si (com exceção de Típico romântico e Sonho de núpcias, que compartilham o tema das relações amorosas e o cenário marítimo e são, de fato, tratadas como um par pelo autor). Mas que compartilham muitas características comuns. A primeira é a qualidade do texto, evidente desde a peça de abertura, Tutankáton, uma tragédia na acepção da palavra. Ou seja, o contrário do que se imagina, em parte pelas tragédias shakespearianas, cheias de “som e fúria”, amor e morte etc. Aqui, a referência são as tragédias clássicas em que importava a dimensão política, relativa à pólis, à sociedade, ao Estado. Destaca-se, desde a primeira linha, o domínio da dicção: “Os insetos têm sido o meu pão e as poças de lama o meu vinho. Há três anos eu vago pelas colinas da Cananeia, disfarçado nestas roupas de mendigo que não mostram o miserável que de fato eu sou” (p. 14). Junto com esse domínio, surpreende o não estranhamento. Explico: costuma-se ler (quando se leem) as tragédias clássicas em traduções, que, por melhor que sejam, sabem a traduções. E aqui se trata de uma tragédia com sabor clássico escrita em português. Para piorar, a cena se passa no Egito da 18ª. dinastia. Tudo somado, não deveria funcionar. Mas funciona. Inclusive para um leitor das tragédias clássicas no original, como meu caso. A tal ponto que o grande defeito de Tutankáton é ser muito curta (pp. 11-49). Parte disso se deve, provavelmente, ao risco assumido pelo incomum da situação dramática. É daí que decorre, por exemplo, a retomada de situações clássicas não ter absolutamente nada de clichê, ao contrário. Há algo de inusitado já na cena inicial, quando um ex-alto funcionário de um regime deposto se encontra com o general inimigo cujas tropas agora cercam o reino, oferecendo seus serviços em vingança por sua queda: e a surpresa se apoia no fato de o funcionário ser um sacerdote de Amon, e o general, o chefe do exército hitita.

Tutankáton faz referência à queda da URSS em 1989, como explicitado em nota, pondo em cena os momentos finais da primeira grande revolução conhecida, a de Akhenáton, o faraó que pretendeu revolucionar a cultura, a política e a sociedade egípcias pela eliminação da antiga religião politeísta e a instituição do monoteísmo “racional” do culto a Aton, o deus-sol. Para resumir brutalmente o enredo, durante o curto reinado de seu sucessor, Tutankáton (depois Tutankâmon), problemas de toda ordem alimentam as resistências políticas dentro do Egito, que por sua vez atiçam seus inimigos externos. Há muitos ecos históricos rondando o texto, como a França do Diretório (ou seja, da Revolução), ameaçada pela reação realista e por exércitos estrangeiros (e salva pelo jovem Napoleão); a mesma França no governo dos Cem Dias, às vésperas de Waterloo; os EUA de 1812, quando a antiga potência colonial, a Inglaterra, tenta reverter a revolução americana, chegando a queimar a capital da nova república, Washington; e a URSS de 1989. Neste caso em particular, a situação de um indivíduo (Gorbatchev) se mescla mais aguda e, sim, tragicamente, ao momento histórico em que tudo parece se desfazer e/ou se refazer, envolvendo a sociedade, o Estado, a cultura, o passado, o presente e o futuro. Daí o paralelo com a situação de Tutankáton às voltas com o fim da revolução monoteísta. Se na primeira cena o sacerdote de Amon convence o general hitita a avançar sobre o Egito para restaurar a antiga religião (e a antiga classe sacerdotal), na segunda e nas seguintes, é o próprio Tutankáton que aparece em seu palácio, recebendo as notícias da crescente resistência interna à nova ordem e da ameaça externa, e discutindo com seus auxiliares tanto a situação e as opções atuais como as decisões anteriores que levaram a tal estado de coisas, incluindo questões político-religiosas e ideológico-existenciais, os poderes do poder e os limites do indivíduo, o arbítrio, a sorte, a história, o destino. A inquirição torna-se um embate no diálogo entre a rainha Ankesen e uma vidente, em que passado e futuro, tradição e modernidade, cultura e natureza, submissão e liberdade, fé e razão estão em disputa, lembrando, em cápsula, o confronto entre Settembrini e Nafta em A montanha mágica, às vésperas da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, ou seja, do provável fim de uma era (ou de um mundo) e do incógnito início de outra(o).

Vidente: Os meus deuses vigoram desde antes de o mundo existir, ao passo que o teu é fruto bastardo da doença que acometeu vosso pai, o Grande Criminoso, a quem o povo inteiro jura vingança. Não existe absolvição para os vossos crimes. O mundo era mágico e completo, os jovens se inclinavam cheios de respeito diante dos velhos, as pedras, o vento e a lua eram a família da humanidade e qualquer um estava aconchegado entre os espíritos que pulsavam no interior de cada coisa. A heresia abriu uma fenda entre o homem e o mundo, a terra se transformou em ferro e os homens trazem agora o peito estéril, salgado pela vertigem do tempo que se descontrolou.

Ankesen: Não nascemos para viver como sonâmbulos. Por toda parte ouço os espíritos fracos lastimarem a nossa época, mas eu sou grata por tomar parte na destruição das ilusões. Ah, que alívio eu sinto nas volúpias da virtude, como é sagrada a tarefa de destruir! Precisamos de artistas inspirados que deformem as linhas e tumultuem os sentidos para melhor expressar o fundo verdadeiro da vida. Que os velhos livros sejam lançados no oceano, que ardam todas as relíquias! Levantemos pirâmides de cabeça para baixo e inventemos mesmo uma nova forma de andar, para que em nossos filhos não reste o menor traço a recordar o passado.

Vidente: Pretendestes fazer dos homens aquilo que eles não são. Sufocastes em vós tudo o que é natural, tudo o que parece humano; nem anjos, nem animais, vos transformastes em monstros e o mundo inteiro aponta para vós dizendo: olhai!, vede a aberração suprema da natureza! Mas quisestes que os homens fossem iguais a vós e, como não cedessem ao modelo de vossas artificialidades, os que eram belos foram desfigurados, os que eram fortes, entorpecidos, os que eram livres, tornados escravos e aqueles que ainda assim murmuravam os nomes dos deuses, esses vós matastes.

Ankesen: Eu os teria matado com as minhas próprias mãos para livrar a humanidade de abutres como tu, feiticeira abjeta! Maior esforço foi preciso para que a raça do Nilo se arrastasse dos pântanos e se erguesse sobre as pernas. Não podes fazer que os homens voltem a grunhir como porcos e apagar o que já está cumprido: não há mais milagres, nem comércio promíscuo entre o homem e a divindade, nem o fervilhar de deuses como vermes sobre um cadáver! Morreram todos os ídolos, egípcios e asiáticos, cretenses e babilônios, e o mundo inteiro se inflama de luz! Geramos uma divindade que já não depende de nós. Estamos livres. Não pode haver contato entre nós, criaturas vis, e o novo deus: que cada um responda por seus atos no tribunal da morte! (pp. 38-9)

Mas talvez os objetivos do autor não tenham se concretizado, afinal. Pois sua pequena tragédia político-religiosa em um ato não se resigna a ser alegoria ou comentário de nenhum evento histórico contemporâneo. A peça funciona por mérito próprio, pela propriedade do texto, pelo desenho das personagens e pela tessitura dos diálogos, para afinal terminar quando tudo está pronto para que um novo ato do velho drama da historia se desenrole.

2.

Muito diferente é Rancor, sátira realista do pequeno mundo das grandes vaidades literárias provincianas. E realista porque, neste caso, a realidade já parece uma sátira, uma caricatura. A peça põe em movimento um microcosmo desse microcosmo, centrado no trio formado pelo velho crítico consagrado, o jovem crítico ascendente e o jovem poeta seu protegido, acrescidos da herdeira “interessada em arte” e do jornalista “mefistofélico”, cuja seção se chama “Intelligentsia”, mas pensa e age como um colunista social. A arte, a crítica, a literatura, a poesia, a cultura são palavras esvaziadas numa disputa paranoica de vida e morte pela fama, travada em bases pessoais. Alguém já disse que poetas contemporâneos discutindo poesia são como lobos magros uivando em torno de um poço seco. O que significa muita salivação, rosnados incessantes e eventuais dentadas. Importa quem disse o que de quem, o quanto se fala, falou ou falará desse ou daquele, que livro foi mais resenhado, quem está “de um lado” e quem está, então, “do outro”, quem tem mais “influência” do que flatulência e vice-versa etc. Não as eventuais pequenezas da grandeza, mas as grandes vaidades da pequenez: “Quem se omitiu? Quem foi mau-caráter? Quem estava na máfia dos concursos? Quem incide exatamente em qual desvio na variada flora das aberrações sexuais?” (pp. 76-7). Quem é amigo de quem? Quem é amigo do “rei”? Quem vai derrubá-lo? Tudo pretensamente em nome de uma arte e de um pensamento sobre a arte que deveriam estar no centro de algum propósito civilizatório, mas não estão no centro de nada, seja porque o país e sua criação são atrasados e periféricos, seja porque o tempo, a “sociedade do espetáculo”, o capitalismo tardio, o “pós-vanguardismo” e o que mais seja tornaram seus esforços, crenças e opiniões obsoletos. Mas também ou principalmente porque estão metidos em um pequeno canto obscuro do mundo e do tempo que habitam, disputando rodas vazias como ratos numa gaiola de laboratório, em vez de procurar alguma saída. Uma sátira não poderia ser realista se a realidade que satiriza não fosse por si só caricatural. Como resultado, a sátira parece derreter face a tal realidade, como uma máscara teatral de cera que, ao se desfazer pela proximidade com o calor da pele, revelasse por baixo o mesmíssimo rosto que recobria.

3.

Semelhante ao caso da caricatura de uma realidade caricatural em Rancor é a figura do pai de santo em Utilidades domésticas. Todas as religiões americanas de origem africana, como o candomblé, a umbanda, a santería e o vodu, compartilham um sincretismo e uma teatralidade nada sutis que, nesta peça, geram um efeito cômico, já a partir da mera descrição do lugar:

Um consultório de pai de santo na periferia da cidade. Duas cadeiras separadas por uma mesinha, um vaso de flores, telefone e um livro de anotações sobre ela. No fundo, de um lado, uma estante onde se veem a Bíblia, o I Ching e livros de Jung, Reich, Foucault e Pierre Verger. Do outro lado, instrumentos como atabaques etc. No fundo, ao centro, imagens de São Jorge e os assentamentos do santo: vasos, potes, frascos, ramos de palma, braceletes de metal, colares de contas, espelhos, facões, um chocalho, paramentos de seda e de palha etc., arrumados em perfeita, obsessiva ordem. No meio dos objetos, abaixo da imagem de São Jorge, um porta-retratos com a foto de Grace Kelly. (p. 195)

O efeito é retomado e escancarado nas falas do pai de santo: “Tá pensando que casaco de couro é estola? Tô completamente full na semana que vem! Fui feito no santo em Salvador, com o Pierre Verger! Fiz curso de iorubá na universidade e tudo, minha filha!” (p. 197). O fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger é aqui “sequestrado” como uma espécie de grande sacerdote, levando às últimas consequências, e à confusão farsesca, o uso e o abuso habituais de seu nome como “avalista” de famosos terreiros baianos (à sua inteira revelia, diga-se, pois Verger, um francês das tradições cartesiana e iluminista, era ateu e tinha pelas “entidades” africanas um respeito antropológico, não qualquer adesão crente, conforme explicitava sempre que perguntado explicitamente). A figura do pai de santo, enfim, talvez não seja das mais “politicamente corretas”. Em compensação as duas lésbicas, as personagens centrais de Utilidades domésticas, ainda às voltas com um momento de transição sociológica de quase-aceitação nos anos 1980, e com todas as peripécias daí advindas, são de um humanismo à toda prova, além de instrumento de modernização da comédia clássica e seus elementos de fábula (como uma fada ex-machina).

4.

A farsa que completa o volume, Breve história de uma perversão sexual (escrita em parceria com Marcelo Coelho), é uma paródia em quadros temporalmente sucessivos da história, tendo como leitmotiv a submissão sexual. Seis episódios cobrem e percorrem a história, a partir de “A aurora da humanidade”, que parece uma mistura crua e cômica da cena inicial de Uma odisseia no espaço com estudos de Freud e pesquisas de paleoantropologia, em que os machos Alfa, Beta e Gama disputam na porrada as fêmeas ditas “Matriarca”, “Disponível” e “Arisca”, fazendo daí surgir o comércio (na forma de prostituição, quando a força é trocada pela oferta de um cacho de bananas), além da ciência e da linguagem (ou seja, a civilização), respectivamente, na forma do fogo que Beta e Gama usam para afinal derrotar Alfa, e da primeira palavra jamais dita: um sonoro “Não!” gritado aos dois usurpadores pelas fêmeas. Seguem-se curtos episódios “de época”, passados na Roma do fim do império e do início da cristianização (“Os mártires dos últimos dias”, em que num mercado de escravos as cativas cristãs são as preferidas, porque mais submissas, entregando a “outra face” e ainda gritando “aleluia”), no século XVI das grandes navegações e dos grandes saques (“Os piratas do Caribe”, com sua donzela sequestrada, currada e resgatada, para se revelar, à Nelson Rodrigues, cativa de seus desejos oceânicos), na França libertina da pré-Revolução (“Angélique ou A pedagogia do oprimido”, com direito a um politicamente incorretíssimo e acorrentado índio amazônico balbuciante chamado Missubós), na Viena do século XIX (“A emancipação da mulher ou Um outro mundo é possível”, com suas sufragistas hiperfeministas e dominatrixes) e, por fim, no pós-Segunda Guerra, na caretice paranoica dos EUA dos anos 1950 (“Mamãe é uma bomba [Mommy Boom]”, com direito a referências a tudo ou quase tudo, do baby boom à bomba atômica, de nazistas incorporados à pesquisa militar americana a secretárias prestes a explodir de desejo reprimido, passando por ataques armados a escolas praticados pelas próprias mães, como em um estranho Doctor Strangelove concentrado e paroxístico).

Uma obra sozinha, por maior que seja sua vitalidade, não mantém viva uma dramaturgia nacional. Mas Cinco peças e uma farsa indica fortemente que ela ainda não está morta.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).