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África: arte industrial e música nacionalista

pieces001Dando sequência à série África 2010, na qual Sibila seleciona discos e publica artigos sobre música africana contemporânea, apresentamos aos nossos leitores o disco Pieces of Africa, de 1992, do quarteto de cordas norte-americano Kronos Quartet, formado pelos músicos David Harrington (violino), John Sherba (violino), Hank Dutt (viola) e Joan Jeanrenaud (violoncelo).

Como se sabe, o quarteto de cordas é um gênero e uma formação instrumental tradicional da música clássica ocidental. Foi amplamente explorado por mestres europeus como Ludwig van Beethoven, Béla Bartók e Anton Webern. Sua estrutura original segue o esquema formal sinfônico – a forma sonata –, que foi ao longo dos séculos XIX e XX discutido e transfigurado por compositores do romantismo e dos modernismos.

É por essa via que seguem os músicos do Kronos Quartet. Sua proposta consiste em utilizar esse gênero como plataforma de experimentação e transgressão das convenções estéticas do “sinfonismo” tradicional. Transportam o quarteto de cordas para territórios sonoros não ocidentais, como a música do Vietnã, da Ásia, da África, além de transitar entre música erudita e popular, sobretudo a norte-americana, de onde extraem técnicas e parâmetros de composição e execução musical não convencionais à música dita culta do Ocidente – de onde seu gênero e formação instrumental são oriundos.

Esse quarteto é, geralmente, associado à minimal music, que tem como principais representantes, se é que seja possível agrupá-los em um movimento, os compositores Terry Riley, Philip Glass, Steve Reich, La Monte Young, Arvo Pärt e Kevin Volans. As obras desses compositores têm em comum o uso de técnicas de isoritimia, repetição e não sincronismo no tratamento de motivos musicais muito simples e geralmente executados por instrumentos industrializados, como sintetizadores e órgãos eletrônicos.

Além disso, há, em todos eles, uma procura constante por técnicas e princípios de organização estrutural nos universos musicais não ocidentais. A música hindu, por exemplo, foi uma enorme fonte de pesquisa para Riley, Young e Glass, enquanto Pärt e Volans, não sendo norte-americanos, se utilizaram das músicas modais tradicionais de seus países – Estônia e África do Sul, respectivamente – para criar seus ambientes sonoros.

Assim, Kronos Quartet, que vem desde a década de 1980 trabalhando em parceria com alguns desses compositores – como Glass, Riley, Reich e Volans –, desenvolveu, no campo da execução e da performance musicais, um trabalho que por um lado é pop e transita nos ambientes da chamada world music – termo que designa a indústria fonográfica dos gêneros de música folclórica e regional – e, por outro, se liga ao universo das performances audiovisuais e sonoras da vanguarda norte-americana dos anos 1960, posterior à geração de John Cage e Robert Rauschenberg.

Tendo isso em conta, pode-se dizer que Pieces of Africa, ao reunir sete compositores de diversas regiões do continente africano – que escreveram peças especialmente para o quarteto –, é clara consequência desse projeto que agrupa, sob a tarja de música nova, uma reinvenção, com ares etnomusicais, da música tradicional africana. Transporta-a, assim, para o campo da escrita para quarteto de cordas e dos experimentos “semirradicais”, eu diria, da minimal music.

O disco se divide em duas partes, a primeira, que vai da primeira à sexta faixa, reúne obras dos compositores Dumisani Maraire (Zimbábue), Hassan Hakmoun (Marrocos), Foday Musa Suso (Gâmbia), Justinian Tamusuza (Uganda), Hamza el Din (Egito) e Obo Addy (Gana). É nessa parte que se ouvem as várias formas de modalismo e os coloridos típicos dos folclores das regiões de cada um desses compositores.

Todos eles, de algum modo, fazem parte de um projeto de modernismo nacional que ocorreu na África após os anos 1960. Esse projeto inclui, em termos gerais, do mesmo modo que ocorreu, em outro período, com as artes sul-americanas, a necessidade de introduzir ao universo da escrita as linguagens tradicionais locais e, daí, discuti-las com o intuito de afirmar uma cultura nacional com traços de identidade bem definidos e em oposição clara à cultura europeia, cultura de colonizadores.

Em “Saade”, de Hakmoun, por exemplo, ouve-se a imponente música vocal de ascendência marroquina emergir de um fundo de cordas (de afinação ocidental, entretanto, arranjadas com caracteres orientais e típicos) e percussão tradicional. Aos poucos, desse ambiente, vão aparecendo interferências instrumentais, principalmente provindas dos violinos e da viola, que diferem dos sons típicos e, assim, relativizam a paisagem modal.

“Wawshishijay”, de Obo Addy – dançarino e percussionista conhecido por ser um dos primeiros músicos tradicionais africanos a fazer uma música fusion entre elementos tradicionais e o pop ocidental –, segue a mesma linha, embora soe um pouco menos tradicional. Nessa faixa, cujo nome significa literalmente “nosso começo”, os instrumentos de corda ocidentais são explorados como tambores e corpos dançantes.

As melodiosas linhas do primeiro violino são contrapostas aos toques dançantes e percussivos emitidos em pizzicato – técnica de dedilhado em instrumentos de corda, muito comum na musica ocidental, utilizada em instrumentos como o violão, a guitarra elétrica e os instrumentos de cordas orquestrais – pela viola e pelo cello. Nessa linha, de pizzicatos e contratempos, opera também “Tilliboyo”, “pôr do sol”, de Musa Suso, quem declara ser o pôr do sol o momento em que a gente de sua cultura se reúne em torno do fogo para cantar e dançar, o momento em que “coisas acontecem”.

A primeira faixa, “Mai Nozipo”, de Dumisani Maraire, remonta aos sons típicos dos cantos e paisagens acústicas africanas e segue, bem de perto, aquele projeto nacionalista de notação e desenvolvimento escrito de sua cultura tradicional: Maraire teve, inclusive, como um de seus principais projetos de vida, difundir a música de seu país no meio acadêmico ocidental, tendo, na década de 1960, se mudado para os Estados Unidos para lecionar e se apresentar e, ao retornar ao Zimbábue, na década seguinte, inaugurou um importante centro de etnomusicologia na Universidade do Zimbábue.

A segunda parte do disco é dedicada ao trabalho “White Man Sleeps”, do compositor sul-africano Kevin Volans. A obra, cuja primeira versão data de 2001, é composta de cinco movimentos e, segundo seu autor, pretende, por meio do cruzamento entre a técnica ocidental e o pensamento tradicional africano, sonorizar o meio ambiente desse continente em sua riqueza e complexidade, revelando, por intermédio dos sons, as diferenças essenciais que há entre este e a natureza e a cultura da Europa.

Volans, pertencente à elite branca da África do Sul, e tendo, assim, estudado na Alemanha com Karlheinz Stockhousen, se coloca como representante musical de seu continente e, assim como Maraire − entretanto, à diferença de fazer uso da técnica de ponta da música de vanguarda ocidental −, acaba por se enquadrar no projeto nacionalista que se deu de forma mais ou menos generalizada na África pós-colonial dos anos 1960.

Assim como os minimalistas dos Estados Unidos, Volans também se coloca contra as prerrogativas estéticas do pensamento serial, representado por compositores da segunda geração serialista como Pierre Boulez e Karlheinz Stockhousen, para operar uma busca nos ambientes modais e nas técnicas ancestrais de isoritmia como meio para lidar com as questões da música contemporânea. Diferente deles, o faz em um ambiente menos industrializado e mais atento à recuperação de instrumentos tradicionais africanos e da música antiga europeia do que em operar sintetizadores e máquinas do ambiente hiperurbano dos Estados Unidos.

pieces002Essa tendência à utilização de formas simples, mínimas, aplicadas aos recursos industriais, é comum não apenas na música minimalista dos norte-americanos Glass e, sobretudo, Reich, como também, no campo das artes visuais, nas obras de artistas como Frank Stella, Sol LeWitt, Dan Flavin e Carl Andre, que fizeram uso de “objetos no espaço” para transcender o espaço interior das obras e, assim, deslocar o próprio espaço no qual essas obras estavam inseridas.

Em música, as propostas diferem um pouco daquelas das artes visuais, mas correspondem a elas no sentido em que se procura estabelecer um continuum sonoro, por meio da repetição de motivos simples, deslocando as condições de audição – e, portanto, do espaço acústico – pela criação de um extenso fundo musical que se desdobra mais em termos de espaço que em termos de discurso retórico (que, sendo discurso, opera no campo das ideias e das imagens).

Essa música da “nova simplicidade” de Volans acaba resultando em um espaço imenso e colorido, como as paisagens africanas. As criaturas sonoras que, assim, se formam, vão aos poucos se revelando e colocando-se sob diferentes perspectivas diante do ouvinte. É uma música cuja extrema simplicidade acaba se desdobrando em inteligência espacial, no sentido de que manipula seus objetos de forma surpreendente e transformadora.

Por outro lado, essa música gera momentos de grande tédio por soar, em certas vezes, demasiado óbvia e de muito fácil fruição pelo ouvinte. Não apresenta muitos desafios à atenção, estende-se “mantricamente” pelo espaço acústico, podendo ser tranquilamente esquecida e ignorada pelo ouvinte que pode, assim, escolher quando quer dedicar a ela a sua atenção. Não se impõe, não tem aquele intenso poder de atração e choque sobre o ouvinte que caracteriza as propostas de obras como as de Olivier Messiaen, Samuel Becket, John Cage ou Marcel Duchamp.

pieces003Logo após a execução de “White Man Sleeps”, o quarteto encerra o álbum com uma coda, a faixa “Kutambarara”, de Dumisani Maraire, que funciona como uma alegre despedida, repleta de melodias cantadas em coro tradicional, percussões típicas e belos arranjos para cordas. Conclui-se, portanto, que se trata de um álbum pensado como peça, que tem um desenvolvimento implícito, sendo a obra de Volans posta como ápice precedido pelos compositores mais ligados à tradição nacional, o que demonstra, para além da audição, a preocupação do quarteto em realizar um trabalho de pesquisa que ouve, executa, registra e desenvolve ideias e categorias sobre o que foi executado.

Nesse sentido podemos entendê-los, levando em conta suas performances audiovisuais – em que se projetam partituras, imagens, cores e formas nas paredes da sala de concerto –, como um grupo de músicos comprometidos com o questionamento dos valores e a inovação das formas de escolha de repertórios, técnicas de execução e modelos de apresentação musical. Levam sua música para os territórios da música folclórica, da música pop, do rock e para onde mais puderem experimentar a transfiguração do quarteto de cordas.

Assim, esse trabalho do Kronos Quartet acaba por revelar também sintomas curiosos do nosso tempo. Parece demonstrar um grande anseio pela transvaloração, entretanto, esse anseio não se motiva por nada mais que a simples necessidade de misturar e diluir a enorme quantidade de técnicas e informações sonoras a que se tem acesso hoje. É em um momento de confusão entre modelos tradicionais e novas visões de mundo que justamente, pelo trabalho de execução, podem-se encontrar alternativas e construir modelos novos e capazes de comunicar a vida de hoje, o que justifica a pesquisa desses intérpretes que, em seu transquartet, recriam e dão a conhecer.

Alguns vídeos:

Kronos Quartet – String Quartet (Philip Glass)

Kronos Quartet – Meltdown (Live 2008)

Terry Riley – In C


Steve Reich – Violin Phase


Kevin Volans – White Man Sleeps (2nd mov.)

Obo Addy and Kwaku Obeng at Jazz GAllery


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 Sobre Marcelo Flores

Marcelo Flores é compositor, com mestrado na Paris 8. Rege um coral na cidade de Angets.