Uma análise de consumidor um pouquinho mais exigente nos mostra que – nasci há menos de 30 anos – a poesia tem encontrado seu habitat no mercado brasileiro a partir de uma onda de quantificação, com exceções muito bem-vindas, diga-se. Ou seja, enquanto os critérios de estudo e produção de literatura foram se dissolvendo ao longo das últimas décadas, temos verificado uma reação do mercado editorial de forma a suprir essa carência, por assim dizer, com a publicação de um sem-número de novos poetas e novas obras. Quando estou saudoso de modernismos penso que, embora nos falte poesia, não nos faltam poetas e poemas.
No caso da tradução de poesia, o que se verifica é um processo semelhante, embora dentro de um panorama um pouco menos privilegiado: ainda faltam traduções de livros de poesia e de poetas de todos os tempos. Ao mesmo tempo em que encontramos antologias de poesia galega – catalã, francesa, romântica, barroca – ou Shakespeare vertido para o português por um Millôr Fernandes em versões pocket na banca de jornal da esquina, há outros tantos clássicos e/ou contemporâneos carecendo de maior inserção no mercado editorial brasileiro.
Um caso interessante, o do mexicano Octavio Paz, é digno de nota. Dos anos 1980, a versão do poema “Blanco” saída das mãos de Haroldo de Campos é uma aula, não apenas de tradução, mas de vida. “Transblanco” está no cerne de um diálogo marcado tanto pelo experimentalismo concretista como pelas linhas de força da discussão em torno da poesia na América Latina. Mais que isso, ao arejar a visada poundiana de tradução como crítica e fazer uso dessa prática como meio de criação, o grupo de Noigandres presenteou seus leitores com uma abordagem rica e inusitada do ato de traduzir.
Também da segunda metade dos anos 1980 é a versão de Horário Costa para o poema “Piedra de sol”, do mesmo Octavio Paz – publicação meio sumida, pela editora Guanabara –, que retorna em edição bilíngue e tratamento de luxo (capa dura de tecido e letras douradas) pelo selo Demônio Negro, da Annablume. Demônio Negro, conforme se lê no site da editora (com referência a reportagem da Folha de S.Paulo), “é um selo literário que concilia as artes do livro com um catálogo voltado para obras inéditas e para o resgate de autores que não fazem parte de cânones e que continuam com sua obra ocultada”. De fato, a arte do livro é bem resolvida e o resgate, mais que oportuno.
O caminho mais curto
Aparentemente, a versão de Horácio Costa preza mais pela literalidade do original que uma tradução concreta, o que não quer dizer que isso seja melhor ou pior, apenas que o aprendizado com essa tradução será diferente daquele que teríamos com uma experiência do programa concretista. Digo aprendizado, pois o interesse de uma edição bilíngue de um poema, para o leitor casual de poesia, também pode estar mais em identificar e refletir sobre as escolhas da tradução que em apreender o sentido original das palavras contidas naqueles versos. Mas, para não ficarmos apenas na aparência, vale passar diretamente ao que o tradutor nos propõe no livro em questão:
[…] transformei o endecassílabo (sic) castelhano em decassílabo português, […] não obedecendo à regularidade métrica, apenas quando uma mudança na ordem sintática ou uma operação de sinonimização ocasionaria uma distorção rítmica ou um comprometimento irrecuperável no nível semântico vis-à-vis o original. […] algumas inversões sintéticas no texto em português, se a elas não correspondem simetricamente, obedecem a um padrão do original. […] Pelo que foi dito, tornou-se inevitável a substituição de alguma que outra palavra de uso corrente em castelhano por uma equivalente de ressonância mais “culta” em português (p.ex.: “sauce” – salgueiro, chorão – por “sálix”, permutando o nome da árvore pela designação de sua família botânica), para obter resultados, já sejam rítmicos, fônicos ou semânticos, mais condizentes com os do poema. Vale ressaltar, entretanto, que estas transformações foram pontuais: […] pareceu ser de maior importância, a absorção dos valores de respiração e dicção que via impregnarem, como marcas distintivas, o texto de Octavio Paz.
Ou seja, entendo que o vetor dessa tradução são os “valores de respiração e dicção”, concorda? Vamos ver se e como isso se comprova nos versos traduzidos, mas, antes, faz-se necessária uma prévia sobre a leitura desse poema. Desde o início de “Piedra de sol”, o que temos é uma configuração do tempo em imagem – imagem, não espaço – a partir da estrutura rítmica do poema. O “caminhar tranquilo” do tempo pelas imagens que permeiam os versos pode ser ouvido na constância acentuada na sexta sílaba poética do hendecassílabo paziano – este, sim, um valor de respiração do poema.
Por vezes, algumas quebras, como a do sexto verso, atravessam o curso do poema como um arquear de um salgueiro pelo vento, ou como a curva de um rio, mas, no geral, é essa tentativa de abarcar a “dualidade essencial do universo” a partir de uma perspectiva temporal que estabelece a configuração sensorial do poema. Não à toa, a capa do livro traz, em maia, o número de dias do ciclo venusiano. Mais temporal impossível. Da mesma forma, o poema abre com um signo de movimento (Dia 4 Olín) e fecha com outro, de transitoriedade, o vento (Dia 4 Ehécatl). A leitura do tempo por meio da imagem é o que põe o poema em pé.
Por outro lado, a música se faz sentir nas rimas internas, assonâncias, aliterações que intensificam certas ondulações sonoras e estão presentes em todo o poema, às vezes de forma intraduzível, é verdade. Nos versos abaixo (pp. 6 e 7), por exemplo, o paralelismo vai além do artigo indefinido, fazendo com que, como duas notas a comporem uma sequência, tenhamos nos primeiros versos uma toante entre “u” e “a”: “un sauce”, “un alto”, “un árbol”, “un caminar”, “avanza”.
Sustentando as variações, estão dedilhadas as rimas de “viento”, “bien” e “siempre” e outro movimento nos ecos entre “mas danzante”, “avanza”, “retrocede” e “llega siempre”. Assim, não é apenas o virtuosismo imagético que produz “um caminar tranquilo que se curva”, é o próprio poema/tempo, em toda a sua transparência mineral, que avança.
Assim sendo, vamos à comparação (a coluna da esquerda é o original e a da direta, a versão de Horácio Costa, sempre):
p. 6: un sauce de cristal, un chopo de agua, un alto surtidor que el viento arquea, un árbol bien plantado mas danzante, un caminar de río que se curva, avanza, retrocede, da un rodeo y llega siempre: un caminar tranquilo de estrella o primavera sin premura, agua que con los párpados cerrados mana toda la noche profecías, unánime presencia en oleaje, ola tras ola hasta cubrirlo todo, verde soberanía sin ocaso como el deslumbramiento de las alas cuando se abren en mitad del cielo, |
p. 7: um sálix de cristal, um choupo de água, um alto repuxo que o vento arqueia, uma árvore firme, porém dançante, um caminhar de rio que se curva, avança, retrocede, dá uma volta e chega sempre: um caminhar tranquilo de estrela ou primavera sem urgência, água que com as pálpebras fechadas profecias emana a noite inteira, unânime presença marulhante, onda pós onda que a tudo oculta, verde soberania sem ocaso como o deslumbramento destas asas em pleno abertas no meio do céu, |
Nos versos “unánime presencia en oleaje,/ ola tras ola hasta cubrirlo todo,”, “en oleaje” foi expandida em seu sentido por Horácio Costa, ganhando outra conotação com a imagem de “mar” presente no termo “marulhante”, embora essa acepção não esteja no poema. Para evitar isso, o mesmo termo pode ser vertido em “ondulante”, assim como “hasta cubrirlo todo” pode virar “até encobrir tudo” com um resultado melhor no ritmo e sem prejuízo da imagem. De brinde, recupera-se a relação semântica entre os versos por meio da raiz “ond”, presente no vocábulo “ondulante”.
No fim da estrofe, temos uma bela imagem de um pássaro voando, cujo último verso possui uma rima toante com “y llega siempre”. Nesse caso, “como o deslumbramento quando as asas/ estão abertas no meio do céu” é uma forma de conseguir uma música mais interessante.
Se pensarmos em concisão, “como asas abertas em meio ao céu” daria um bom decassílabo (em substituição a dois hendecassílabos pazianos), mas que não respeita o acento na sexta sílaba poética nem o número de versos do poema. Número que intencionalmente representa o ciclo venusiano praticado pelos antigos mexicanos.
A opção do tradutor é a de acrescentar palavras – que em nada acrescentam para o sentido, é preciso dizer – e de manter o decassílabo em detrimento da acentuação silábica, que acaba caindo às vezes na sexta; outras, na sétima: “como o deslumbramento destas asas/ em pleno abertas no meio do céu”. Grifos nossos.
Esse recurso é constante (sempre grifos nossos):
p. 8: entre las ramas que se desvanecen, |
p. 9: entre ramos bastos que se evaporam, |
p. 32: en Christopher Street, hace diez años, |
p. 33: em Christopher Street, há mais de dez anos, |
p. 42 con el agua bendita y toma clases |
p. 43 na água benta do altar e toma aulas |
p. 44 en las espaldas del esclavo, el mundo |
p. 45 no torso curvo de um escravo, o mundo |
p. 46 que exprime la substancia de la vida, |
p. 47 que bem expressa a substância da vida, |
p. 54 y el grito de la víctima… |
p. 55 e os mil gritos da vítima… |
p. 40 y las leyes comidas de ratones, |
p. 41 e as velhas leis roídas pelos ratos, |
Neste último exemplo, ao invés de eliminar a referência abstrata ao tempo e trocar o conceito pela imagem, como ocorre no poema (tempo em imagem), o tradutor soma um adjetivo desnecessário cujo significado redunda no conceito do tempo: “velhas”.
Prosseguindo na leitura, deparamo-nos com outros dois recursos bastante utilizados pelo tradutor, as substituições léxicas e as inversões (de palavras, versos ou mesmo da ordem sintática das orações). Eis um exemplo que abrange ambos os casos (substituição e inversão), seguido de outros, de substituição sem motivo aparente:
p. 10: los corredores de un otoño diáfano, |
p. 11: os corredores de um ligeiro outono, |
p. 26: son de piedra, tu boca sabe a polvo, tu boca sabe a tiempo empozoñado, |
p. 27: são de pedra, e a pó sabe tua boca, tua boca sabe a pó envenenado, |
p. 58: ajena y no vivida, apenas nuestra, |
p. 59: não vivida e alheia, nossa por átimos, |
p. 54: del criminal, el santo, el pobre diablo, |
p. 55: do criminoso, místico ou mendigo, |
Aqui temos, não apenas uma inversão, como uma perda na tensão entre tempo e imagem dos termos “otoño” e “diáfano”, ao terem sido transpostos para o português por meio de dois vocábulos relacionados ao tempo: “outono” e “ligeiro”. A imagem de “diáfano” se perde com a substituição do termo por “ligeiro”. E, logo abaixo (pp. 24 e 25), há outra substituição, dessa vez, de uma imagem por um clichê:
p. 24: mis pensamientos sólo son sus pájaros, |
p. 25: meus pensamentos voam com seus pássaros, |
Em outro momento (pp. 32 e 33), encontramos um ponto em que essa inversão dos termos do original chega a provocar vertigem em nosso raciocínio:
p. 32: que ve en el hijo grande un padre joven, |
p. 33: que vê no adulto jovem o filho pai, |
A seguir (pp. 10 e 11), há outro caso interessante, no qual o tradutor consegue alguma aliteração e produz outro acento na quinta e sétima sílabas poéticas – em detrimento do decassílabo heroico, que, sabemos, remete a um viés específico da tradição do verso, assim como o hendecassílabo praticado por Paz.
O interesse aqui está justamente na dificuldade da tradução, mas esta ganha flexibilidade se agirmos de forma não tão ipsis litteris. Assim, com pouco esforço, podemos alcançar uma boa imagem a partir do mesmo excerto: “teus peitos duas igrejas onde o sangue/ chancela seus mistérios paralelos”.
p. 10: tus pechos dos iglesias donde oficia la sangre sus misterios paralelos, |
p. 11: teus peitos dois templos onde oficia o sangue a seus paralelos mistérios, |
Repare que, novamente, o acento na sexta sílaba poética desaparece em detrimento da facilidade de uma versão mais literal. Como se vê, a adoção de termos mais ou menos próximos do original não está condicionada ao ritmo do poema, dificultando o acesso aos critérios para as escolhas do tradutor.
É o que ocorre, por exemplo, nas páginas 44 e 45, nas quais fica difícil discernir qual o critério para a substituição de um léxico mais culto por outro mais coloquial, e vice-versa, afinal, o nosso idioma possui o termo “olvidado”, embora esteja um tanto empoeirado:
p. 44: el olvidado asombro de estar vivos; |
p. 45: o esquecido assombro de vivermos |
Note-se como a escolha contrária à anterior – sendo “apaixonados” um termo mais usual que “enamorados” – aparece nestes versos, das páginas 46 e 47:
p. 46: enamorados de su semejanza, |
p. 47: de sua semelhança enamorados |
Da mesma maneira, esse recurso prejudica o verso em outro momento do poema, no qual a substituição dos termos provoca uma abstração de uma imagem forte e clara, nas páginas 12 e 13:
p. 12: voy por tu talle como por un río, |
p. 13: vou por teu corpo como por um rio, |
Talhe não traz apenas o corpo, traz de forma bem mais concreta também a superfície ondulada, as curvas por onde se pode deslizar as mãos, como um corte de tecido, e com uma presença muito marcante de erotismo. Um corpo, aí, é apenas um corpo com sua carga orgânica ou fisiológica.
Igualmente são bastante comuns as omissões de termos, de forma a manter a estrutura decassilábica, como ocorre também nas páginas 12 e 13:
p. 12: hunde raíces de agua un árbol líquido, |
p. 13: cria raízes uma árvore líquida, |
Mais substituições, acréscimos, inversões:
p. 28: he olvidado mi nombre, mis amigos gruñen entre los cerdos o se pudren comidos por el sol en un barranco,no hay nada en mí sino una larga herida, |
p. 29: esqueci meu nome, já meus amigos grunhem entre porcos ou apodrecem pelo sol carcomidos num barranco,nada há em mim além desta ferida, |
p. 36: los dos se desnudaron y besaron porque las desnudeces enlazadas saltan el tiempo y son invulnerables, |
p. 37: os dois se desnudaram e se amaram porque os desnudos corpos enlaçados o tempo anulam, são invulneráveis, |
p. 62: sobre mi ser, entiérrame em tu tierra, tu silencio dé paz al pensamiento |
p. 63: sobre meu ser, tem-me em tua terra, teu silêncio paz dê ao meu pensamento |
Não caberia “comidos pelo sol em um barranco,”? Por que não verter “besaron” por “beijaram”? Ou, ainda, por que acrescentar a palavra “corpos” ao verso se o termo “desnudamentos” traduziria “desnudeces” com mais precisão e ocasionaria um verso mais bem realizado e próximo da ambiguidade usada por Octavio Paz?
Os quitutes da cesta para a vovozinha
No meio de toda essa carga de sentido, o poema de Octavio Paz nos presenteia com algumas passagens que são um deleite à parte para o interessado por poesia. A cena do sol sendo absorvido pela parede de barro vulcânico das casas (pp. 16 e 17) produz uma transferência da tarde e da temperatura do poente para o interior das casas mexicanas, com um tom raro:
p. 16: busco el sol de las cinco de la tarde templado por los muros de tezontle: la hora maduraba sus racimos |
p. 17: busco o sol da cinco da tarde em ponto pelos muros de tezontle amornado: a hora sazonava seus racimos |
O tradutor opta por acrescentar palavras visando a suprir o “espaço” vago na contagem silábica que, no castelhano, tem uma separação entre a preposição e o artigo. Mantém o decassílabo com uma imagem que dura oito sílabas poéticas e transfere o acento da sexta para a quinta sílaba poética.
No próximo verso, o desafio provocado pelo termo “templado” poderia – assim como, no primeiro verso do poema, Horácio usa o termo culto “sálix” no lugar de “salgueiro” para traduzir “sauce” – ser vertido na – também culta – palavra “temblado”. Também causa espanto o abandono da aliteração em “r” com a opção por “sazonava” em detrimento de “maturava” ou “madurava”.
Uma tradução mais preocupada com os elementos que citei acima pode revelar um haiku escondido no ciclo sem fim deste poema:
busco no entardecer das cinco o sol temblado pelos muros de tezontle: a hora maturava seus racimos |
Nas páginas 42 e 43, vemos que Horácio Costa não conseguiu escapar do hendecassílabo, e era só tirar a preposição…
p. 42: del Club Vegetariano y la Cruz Roja, |
p. 43: do Club Vegetariano, da Cruz Vermelha, |
O curioso nas páginas 46 e 47 é que comer um pão envenenado pode significar uma coisa bem mais radioativa, embora os versos estejam falando de traição e não de uma guerra nuclear…
p. 46: mejor comer el pan envenenado, |
p. 47: melhor comer um resto de pão tóxico, |
Mais curiosa ainda é a amizade forçada com a nossa prática diária com a língua nos versos das páginas 56 e 57:
p. 56: y no pueden morirse de otra muerte, |
p. 57: e sem poder morrerem de outra morte |
Por fim, um combo de operações desconexas e sem sentido no fim do poema, que, é preciso que se lembre, repete os versos do início. Também lá no começo, é preciso lembrar que “un árbol bien plantado mas danzante,” foi traduzido para “uma árvore firme porém dançante”; então, as páginas 66 e 67:
p. 66: y su magia de espejos revivía un sauce de cristal, un chopo de agua, un alto surtidor que el viento arquea, un árbol bien plantado mas danzante, |
p. 67: e seu brilhar mágico revivia um sálix de cristal, um choupo de água, um alto repuxo que o vento arqueia, uma árvore bem plantada mas dançante, |
Aí, o tradutor trocou a palavra “espelhos” pelo conceito abstrato de “brilhar”, trocou o sentido literal de “sauce” pelo termo de cientista maluco “sálix”, trocou o acento na sexta sílaba poética pelo sentido literal de “surtidor”, trocou o verso de dez sílabas (adotado no restante da versão) pelo de onze, trocou o mesmo verso do original por dois diferentes (essa, talvez a mais incoerente de todas as opções citadas).
Chapeuzinho e o Lobo
Depois de olhar mais de perto as técnicas adotadas nessa versão e revendo os comentários imanentes produzidos por Horácio Costa, não consegui tirar outra conclusão sobre as escolhas do tradutor além desta: o fato de que meus pés afundam sobre um terreno pantanoso.
Ou seja, falta clareza a respeito dos critérios de tradução. Quando nos colocamos diante de uma versão concretista, por exemplo, podemos não gostar ou não concordar com as escolhas do Haroldo ou do Augusto de Campos, mas somos obrigados a convir que há uma motivação coerente permeando cada desvio ou aproximação do original.
No caso de Horácio Costa, por exemplo, não entendo como é possível investir nos valores de respiração do poema sem obedecer à regularidade métrica. Da mesma maneira, conforme verificamos, não há padrão para as inversões sintáticas, nem em obediência ao original nem a qualquer outro critério, diferentemente do que afirma o tradutor.
As substituições de termos mais coloquiais por outros mais “cultos” (e vice-versa), justificados em função dos resultados “rítmicos, fônicos ou semânticos”, como vimos, também não atende a algum critério específico, por vezes até mesmo prejudicando o acesso à música ou algum outro elemento do original.
Fora isso, há o extenso rol de omissões e acréscimos léxicos e semânticos que ofuscam a clareza do original, geralmente criando abstrações desnecessárias (e que nada têm a ver com Octavio Paz), ocasionados – vamos ser honestos com o leitor – por um aprisionamento desnecessário a uma medida (o decassílabo) transposta de forma assumidamente irregular.
Com isso, a música escorrega, perde-se o movimento circular e constante estimulado logo de início, nas imagens dos primeiros versos, e que condiz com a proposta da leitura do tempo por meio da imagem presente no poema.
Moral da história: é na encruzilhada de um bom verso que o tradutor, às vezes, prefere seguir pelo caminho mais rápido e aparentemente mais fácil, na contramão do poema. É quando o Lobo surge repentinamente e engole toda a capacidade dos versos de intervir no leitor (e vice-versa), de realizar alguma transferência, de causar estranhamento, seja pelas suas imagens, pela sua música, pelas valências lógicas da palavra, seja pela forma como tudo isso se combina.
O bom caminhante sabe a hora de seguir a trilha e a hora de desviar, como um rio que se curva, avança, retrocede, rodopia e chega sempre…
Paga-se por isso, mas é tudo muito gratuito.