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Aonde ir e o que fazer?

Se nos perguntassem, por todo o tempo transcorrido desde a Revolta de Dezembro até hoje: O que é um revolucionário russo?, seríamos obrigados a responder: um homem na maioria das vezes jovem, que tem constantemente ímpetos e quer agir, mas que nunca chega a nada, um arrazoador que não cessa de pontificar, que evolui como em seu jardim, entre todas as teorias, sociais ou não, possíveis e imagináveis, mas que não consegue aplicar uma única dentre elas; em resumo, um homem sempre meditando e empreendendo algo, mas que nada sabe conduzir, não digamos ao fim, mas, inclusive, até o esboço de um ato real.

Nessas condições, dir-se-á, um homem excessivamente cândido! Sim, com efeito, cândido, mas perseguido por nosso governo com tal encarniçamento que lhe seria até mesmo impensável se se tratasse de um vulgar malfeitor. Sem a mínima razão aparente, o governo aprisiona esses singulares revolucionários, às dezenas, às centenas; sem o menor indício de culpabilidade e sem a mínima prova ele os guarda por meses, anos inteiros na prisão e, em seguida, envia-os, na maioria das vezes por medida administrativa, para ficar tranquilo, ao exílio, à morte lenta, na vizinhança do círculo polar. E se encontram um infeliz papel comprometedor, isto é, em substância uma brochura das mais anódinas ou proibidas, isso significa anos de prisão na Sibéria.

Dito de outra maneira, mártires? Sim, mártires, mas ao mesmo tempo inativos, no sentido que, com raras, raríssimas exceções, um deles começou a empreender, ou mesmo ousou ou soube conceber uma autêntica ação revolucionária.

Esse sentimento de sua inação ou, para falar mais civilizadamente, de sua candura, deve tornar insuportáveis aos nossos mártires as pesadas aflições da prisão, do exílio e da colônia penal. Ora, o número desses mártires cresce a cada dia. O governo tem, portanto, razão: nossos jovens entregam-se a um jogo que nada tem de inocente. Os jogos desse tipo jamais duram, por sinal, muito tempo; logo se cansam disso e não poderiam resistir a tais perseguições. A candura das iniciativas de nossa juventude revolucionária inexperiente oculta, portanto, uma paixão que vai amplificando-se. — E lá onde existe tal paixão, também haverá a ação.

O mártir passivo, digno apenas de fanáticos religiosos, acabou por desencorajar nossos jovens revolucionários. Perguntam-se se é necessário desperdiçar sua vida por bagatelas, expondo-a às perseguições governamentais. Não é preferível renunciar à vulgar verborragia revolucionária, à agitação insensata e sem objetivo e consagrar seu tempo a organizar o melhor possível sua própria existência, tomando como ponto de partida a ordem atual das coisas, mas de modo algum com o objetivo de aboli-la?

Decerto não faltarão simpatizantes dessa solução. Um importante número de jovens tornou-se, ou melhor, diz-se revolucionário sem se dar conta de como e por que — a maioria, deixando-se levar pela corrente, pela moda ou por sua vaidade, bem como pelas deduções que, arrazoadores, que extraíram de princípios abstratos que geralmente têm tanta influência sobre a juventude: por força de palavrear — eles abraçaram a causa da revolução e, por simples incômodo ante seus companheiros, continuam a chamar-se revolucionários, esforçam-se, melhor dizendo, fazem-se passar por tais e, inclusive, buscam superar os outros pelo brilho e pela veemência extrema de suas convicções. Mas eles não resistem muito tempo à prova, e assim que têm a possibilidade de dar marcha a ré, retornam infalivelmente ao campo dos exploradores universais e felizes do gênero humano.

Mas falta muito para que essa possibilidade seja acessível a todos. E, na Rússia, pode-se dizer — e estimamos que essa é uma circunstância extremamente feliz… [faltam duas páginas do manuscrito].

Era preciso, num esforço desesperado, saltar esse abismo, e foi então que nossa juventude, suficientemente convencida por experiência da vaidade de suas tentativas e de seus meios, resolveu ir ao povo.

Dizemos que este é um ato de coragem salutar, mas, ao mesmo tempo, extremamente difícil. Já não é mais um capricho, uma brincadeira infantil ou uma maneira bizantina de raciocinar, assim como, também, não é uma dissertação teórica, mas um fato real e, além do mais, de uma importância tal que se pode considerá-lo histórico. É pelo menos o começo da ação prática, o primeiro passo decisivo rumo a uma autêntica ação revolucionária.

Dissemos que esse ato de coragem é extremamente difícil; sim, com efeito, difícil sob um duplo ponto de vista: do ponto de vista daquilo de que se resolveu separar-se tanto daquilo de que se quer ligar-se.

Tendo em vista que entre a sociedade e o povo há um abismo, não se pode ir ao povo senão renunciando completamente, e de uma vez por todas, à sociedade, a todos os laços, a todas as afinidades morais, a todos os sentimentos, a todas as ideias ou hábitos e a todas as vantagens materiais dessa sociedade; renunciando a todas as formas sociais da vida civilizada, por mais doces, cativantes, sedutoras, embora estejam impregnadas de mentira e ocultem na maioria das vezes um egoísmo cínico e a negação mais grosseira de tudo o que pode ser qualificado de humano, nobre e magnífico. Mas os indivíduos nascidos nessa sociedade privilegiada, tendo recebido sua educação ou vivido alguns anos em seu contato, impregnam-se a tal ponto do refinamento deletério das relações e da vida mundanas, familiarizam-se tão intimamente com elas que, para eles, rejeitar esse mundo para mergulhar irremediavelmente no mundo grosseiro da existência miserável — incessantemente e em toda parte oprimida — do povo, constitui uma autêntica proeza. Em pensamento, essa proeza pode parecer fácil, na realidade, é extremamente difícil.

Mas essa dificuldade negativa, inerente ao completo repúdio da sociedade, não é em nada comparável à outra dificuldade positiva, decorrente da fusão real com o povo.

Como ir ao povo? De que maneira aproximar-se dele, ganhar sua confiança e o que fazer no meio dele?

Alguns — constatemos, por sinal, para nossa satisfação, que não é pequena, que seu número diminui notavelmente — ainda se creem chamados a instruir o povo e dispõem-se de verdade a partilhar com ele seus conhecimentos, ensinando-lhe todas as disciplinas. Esses senhores, mesmo de livro à mão, são verdadeiramente incorrigíveis; interessam-se sempre muito mais por eles do que pela ciência; só conhecem e ouvem a si próprios, contentam-se com sua sombra, uniforme e solitária, e não veem nem compreendem nada no meio que que os cerca; publicam um jornal intitulado Vpered [Avante] enquanto recuam com toda sua energia, consolando-se como crianças velhas.

Que eles se consolem, os pobres, e consolem todos os seus semelhantes; que convençam o povo que ele deve necessariamente aprender todas as ciências, do abecedário à aritmética, da aritmética aos cálculos diferenciais, dos cálculos diferenciais à sociologia para tornar-se um povo feliz e livre; e que, enquanto não tiver aprendido tudo isso, deverá permanecer bem tranquilo nos bancos escolares sem pensar absolutamente em revoltar-se. Pregar tais insanidades, a isso chamam “revolver os espíritos”. É de morrer de rir!

Mas deixemos os pedantes e sapientes vaidosos, bem como os charlatães com falta de conhecimentos. Dirijamo-nos aos homens de boa-fé que permanecem persuadidos de que é preciso instruir o povo antes de falar-lhe de liberdade. Façamo-los observar que ainda não saltaram o abismo que separa, como vimos mais acima, o povo da sociedade, e que continuam a viver, pensar e agir deste lado do abismo, na sociedade, imbuídos de todos os preconceitos arrogantes e orgulhosos que ela nutre contra o povo.

Depois disso, perguntemo-lhes o que tencionam, e por quais meios, ensinar ao povo. Querem ensinar-lhe apenas o abecedário, isto é, escrever e contar, acrescentando a isso um pouco de instrução geral e um pouco menos ainda de história fictícia da Rússia? Em resumo, o que se aprende em nossas escolas primárias lá onde existem. É verdade, saber ler e escrever é uma coisa das mais úteis, e, inclusive, indispensável ao povo; mas constatemos o seguinte: primeiramente, ainda que permita, por sinal muito fracamente, desenvolver de maneira rudimentar as faculdades mentais do povo, o alfabeto considerado separadamente ainda não é a ciência, mas apenas uma porta aberta para a ciência; em segundo lugar, para ensinar a ler e escrever a setenta milhões de indivíduos, os meios e as forças de que dispõem esses homens de boa-fé estão longe de ser suficientes. Para que esse objetivo possa ser alcançado com sucesso seria necessário, nas circunstâncias presentes, sob o regime atual, político e econômico, do Império da Rússia, empregar uma notável parte da totalidade dos recursos públicos e, além do mais, obter a opinião favorável do governo, pois tão vasta empresa como esta, que consiste em dar o ensino primário a todo um povo, não pode ser conduzida a bom termo em segredo. Mas todo mundo sabe que os recursos do Estado russo vão para empresas e interesses que nada têm a ver com a instrução do povo, e que o governo não apenas não manifesta opinião favorável, como, ao contrário, promulgou os decretos mais severos e continua a tomar as medidas mais diligentes e mais eficientes para proibir as pessoas que não estão habilitadas a isso, isto é, que não são funcionários ou não estão encarregadas pelas autoridades de instruir o povo, toda imisção no ensino.

E, por sinal, somos obrigados a reconhecer que, de seu ponto de vista, o governo tem razão. Cabe a ele desejar que o povo permaneça nesse estado crônico de obediência e continue a carregar sem reagir todos os fardos que lhe apraz colocar sobre os ombros do povo. É preciso, pois, que o povo jamais possa conhecer seus direitos e sua força e que ele permaneça eternamente oprimido pelo sentimento de sua impotência e por sua crença no direito único e no poder invencível do czar. Mas a maioria dos jovens que ofereceram gratuitamente seus serviços para instruir o povo fixou-se, como sabemos — e toda honta lhes cabe — um primeiro objetivo: libertar o povo dos preconceitos de Estado. Ao mesmo tempo que o alfabeto, puseram-se a ensinar-lhe seu direito e demonstrar-lhe que a força real não reside no Estado, mas nele mesmo, e que lhe bastaria querer, melhor ainda, sublevar-se como um só, para que esses torturadores, opressores, bebedores de sangue, fossem enviados ao diabo. Eis uma verdade indubitável, mas uma verdade que nenhum governo pode digerir e, assim, é completamente natural e, inclusive, do ponto de vista do Estado, legítimo e louvável que nosso governo tenha começado por decretar o fechamento das escolas dominicais, e que tenha tomado, em seguida, medidas rigorosas e eficazes para pôr fim a uma propaganda tão perigosa para a existência do Estado.

O que fazer, então? Alguns dirão, talvez, que se deveria, nos primeiros momentos, limitar-se a ensinar ao povo estritamente a ler e escrever, abstendo-se de toda propaganda revolucionária. Assim sendo, o governo, dando-se conta das boas intenções e da inocuidade desse ensino, cessaria de colocar-lhe entraves. Isso ainda é bem duvidoso, mas admitamos que tudo se passe dessa maneira; e depois? “E depois”, responder-nos-ão os reformadores pacíficos e bem-intencionados, “o povo, tendo evoluído um pouco graças ao ensino recebido, acabaria por tomar pouco a pouco consciência de seus direitos e de sua força.”

Esses senhores creem que o fato de saber ler e escrever pode dar ao povo uma orientação revolucionária. Se assim fosse, os alemães, sem qualquer dúvida o povo mais instruído da Europa, seriam ao mesmo tempo o mais livre. Mas quem ainda não se deu conta de que as amargas palavras de Boerne, pronunciadas em 1830, permaneceram até o presente mais verdadeiras do que nunca? “Os outros povos são às vezes escravos, mas nós, alemães, somos sempre servis”, isto é, escravos voluntários, escravos por convicções; parece-nos que este exemplo seja suficiente para que se cesse de dissertar sobre a força revolucionária secreta que encerrariam pretensamente noções elementares de leitura e escrita.

Repitamo-lo, a instrução é algo precioso e absolutamente necessário a toda nação. Mas é ao mais elevado grau absurdo crer que os milhões de indivíduos que formam a massa do povo russo possam, atualmente, em sua situação presente, adquirir essa instrução ou que esse povo, tendo subitamente aprendido, por não sei qual milagre, a ler e escrever, não seria preciso ainda mais para dar-lhe a capacidade, o desejo e a força para realizar a revolução que o salvaria.

E se isso é correto no que concerne às noções elementares, o que dizer em relação à ciência? Por quais meios, onde e quando ensinareis ao nosso povo, miserável, oprimido, esfomeado, esmagado, a geometria, a trigonometria, a álgebra, os cálculos diferenciais, a mecânica, a astronomia, a física, a química, a fisiologia? Basta, segundo parece, colocar esta questão para mostrar a inanidade da empresa. E ainda a maioria de vós, daqueles que querem instruir o povo, e pode-se dizer, os melhores, ao menos sob o aspecto revolucionário, conhecendo apenas superficialmente todas essas ciências, como as ensinarão? E se eles próprios devem completar seus conhecimentos antes de ir ao povo, com toda certeza pode-se dizer que eles jamais irão.

Que não se creia que condenamos ou desprezamos a ciência. Sabemos tanto quanto os outros que a capacidade e a aspiração a adquiri-la, quer dizer, fazer-se uma ideia sistemática do mundo existente, são precisamente as principais qualidades que diferenciam o homem dos outros animais. Mas dizemos que aquele que sente uma vocação particular para a ciência ou, levado irresistivelmente a ela, deve a ela consagrar-se inteiramente e renunciar à atividade revolucionária. Não recusaremos nossa estima mais profunda a esse homem — e homens desse tipo, autênticos homens de ciência, produtivos, abrindo novos campos à ciência, há sempre muito poucos; reconhecemos, com efeito, os benefícios que tal homem traz à humanidade, mas pedimos que ele não se intrometa de modo algum em nossa causa revolucionária pela qual nada pode fazer, senão besteiras ou coisas prejudiciais. Se é um homem justo e honesto, que lhe bata um coração generoso e que suas ocupações científicas não tenham sufocado sua compaixão pela condição humilhante das massas laboriosas, ele pode simpatizar com o movimento revolucionário, como fazia Kant ao mesmo tempo em que ensinava filosofia e matemática em Koenigsberg, mas para o bem da revolução e para o seu próprio, que ele não se intrometa na ação revolucionária.

A ciência exige que o homem entregue-se por inteiro a ela, a ação revolucionária igualmente; esses dois mundos, um teórico, o outro prático, são igualmente vastos e não podem partilhar um único e mesmo indivíduo. Além disso, seus métodos são muito diferentes. Na ciência devem reinar e primar a crítica e a dúvida. Mas na ação revolucionária, ao mesmo tempo que uma fria análise dos homens e das situações, são evidentemente necessárias a vontade e a fé ardentes sem as quais nada é possível. Essa diferença de métodos e os hábitos que elas engendram explicam-nos a razão pela qual cada vez que os homens de ciência participaram da revolução, eles foram lamentáveis revolucionários e, para concluir, tornaram-se na maior parte do tempo rematados reacionários.

Falamos aqui dos verdadeiros homens de ciência e não dos charlatães da ciência que, a exemplo do honorável editor de Vpered, espírito comparador e colecionador prolixo e laborioso de fatos e ideias, a maioria contraditória, estranhas umas às outras e sem uma única que lhe seja própria, são tão estéreis para a causa revolucionária quanto para a ciência.

“O quê”, perguntar-nos-ão, “aconselhais aos nossos jovens revolucionários não aprender absolutamente nada e, inclusive, esquecendo tudo o que sabem, tornar-se completos ignorantes para estar mais ao nível do povo?” Absolutamente não, não damos esse conselho. Dizemos, ao contrário, lede, instruí-vos a todo minuto que vos permite a ação revolucionária à qual deveis, evidentemente, consagrar a maior parte de vosso tempo; desenvolvei tanto quanto possível vossos conhecimentos e, ao mesmo tempo, ampliai e fortalecei vossas faculdades intelectuais; esforçai-vos para aumentar essa coisa preciosa que é a aptidão a generalizar os problemas e os fatos sociais, aptidão que precisamente faz falta ao povo e que deveis conceder-lhe em troca do que ele vos dá. Sede homens instruídos, tendo bons e inúmeros conhecimentos, mas não homens de ciência. Estes estudam a ciência pela ciência. Ora, deveis estudar pela revolução e ter sempre em vista extrair de cada conhecimento recém-adquirido o máximo de proveito para a causa revolucionária. Por exemplo, se sois mecânico, engenheiro, físico ou químico, buscai descobrir novos procedimentos de destruição que deem ao povo o meio de lutar contra as forças do Estado superiormente organizadas. Em resumo, o que nossos politécnicos fazem no interesse da indústria, deveis fazê-lo no interesse da causa revolucionária.

E agora o que diremos das ciências que têm por objeto desenvolver o indivíduo na sociedade e que os franceses denominam “ciências morais” por oposição às ciências físicas? O que diremos da filologia, da estética, da estatística, da história e, enfim, da nova ciência dita social? Quais benefícios podem elas, atualmente, proporcionar ao povo? A filologia, evidentemente, não trará nenhum; e depois, é o momento de falar de filologia quando o povo não tem nem o meio nem o lazer de aprender, nem sequer ler e escrever? O mesmo se pode dizer da estética, e exclamar com Proudhon: “Dai antes pão ao povo, e em seguida podeis falar-lhe da beleza.” A metafísica é a irmã cadete e a herdeira da teologia; ela tem por objeto matérias irreais, fictícias, criadas pela imaginação e pelo pensamento abstrato do homem: abstrações, sombras, fantasmas em nome dos quais perturbaram até aqui os espíritos e apavoraram o povo para melhor subjugá-lo. Assim, nada é mais contrário à liberdade e ao bem-estar do povo do que a metafísica; quanto à verdadeira, à autêntica filosofia que se funda sobre o estudo concreto e tanto quanto possível exaustivo de todos os fenômenos naturais e sociais, e que reconstitui no pensamento a evolução efetiva do mundo real — a ciência das ciências, a rainha das ciências — essa filosofia encontra-se ainda na primeira fase de sua gestação. Desde logo, ela é completamente inacessível ao povo e não lhe pode ser de nenhuma utilidade. A economia política, tal como é ensinada nas universidades e exposta nas obras de certos economistas burgueses de ontem e de hoje, tomando por base o estatuto codificado do direito de propriedade e emprestando da teologia e da metafísica o que uma e outra dizem tão falsamente da aversão instintiva e pretensamente intransponível do homem pelo trabalho qualquer que seja e da miséria — ou do bastão — necessária para obrigá-lo a trabalhar, chega naturalmente à conclusão que a situação atual das massas populares é perfeitamente normal e legítima e que todos os Estados da Europa, ao menos os mais civilizados deles, avançam rapidamente na via do bem-estar e do progresso dos povos.

De resto, não se pode negar que a economia política é, ao menos pela metade, uma ciência muito positiva e, como tal, que ela seja enormemente útil. Seu objeto é dos mais positivos: a produção e a repartição das riquezas; ela mostra-nos, com efeito, com uma rigorosa exatidão, uma maravilhosa clareza e uma precisão por assim dizer matemática, partindo de uma grande quantidade de fatos econômicos de ontem e de hoje, como desenvolveu-se e desenvolve-se em nossos dias a riqueza dita nacional dos Estados; indicando-nos ao mesmo tempo as causas que favorecem esse desenvolvimento ou que o contrariam. Seu erro, mas erro considerável e pode-se até mesmo dizer fatal, reside em que, sob o império da teologia, da metafísica e da jurisprudência que buscam naturalmente deificar tudo o que existiu e existe, ela extraiu falsas deduções do passado e do presente contra o futuro. Em vez de contentar-se em estudar de maneira mais modesta, mas infinitamente mais útil, a história crítica do desenvolvimento da produção e da distribuição das riquezas até os nossos dias, ela quis ser uma ciência absoluta, em razão do que ela decidiu que tudo o que existiu e existe, existirá sempre ou deverá existir.

Assim, ela condenou eternamente à miséria, à humilhação ou aos trabalhos forçados inumeráveis milhões de proletários. E ela os condenou em conhecimento de causa, pois, por uma argumentação matemática, ela própria chegou à terrível conclusão de que a pretensa prosperidade do Estado e a multiplicação da fortuna pública tem e deve ter necessariamente por efeito uma concentração cada vez maior dessa fortuna nas mãos de um número em constante diminuição de privilegiados em detrimento de milhões e milhões de indivíduos. Isso significa: riqueza monstruosa para algumas centenas de indivíduos, de um lado; por outro, vida de galés para milhões de outros; e, no meio, algumas dezenas, talvez mesmo algumas centenas de milhares de vis criaturas vendidas e devotadas de corpo e alma às oligarquias financeiras que os nutrem com migalhas que caem de suas mesas suntuosas e os utilizam para tosquiar e conduzir o rebanho popular. Eis a última palavra da economia política, e essa palavra é hoje transformada em realidade por grandes homens de Estado do tipo do príncipe Bismarck e outros; ela explica todo o sentido do Estado moderno, protetor onipotente e ao mesmo tempo servidor dos monopólios econômicos.

Não há dúvida que os homens que abraçam a causa do povo devem ter o maior interesse em conhecer essas últimas deduções da ciência econômica, pelo menos porque esses conhecimentos poupar-lhes-ão os erros decepcionantes nos quais caem bem amiúde espíritos bem-intencionados que ainda hoje pensam que se pode, por meio de associações cooperativas de produção e consumo, de bancos populares ou de sociedades de socorros mútuos, chegar sem revolução e sem abolição dos regimes atuais, a uma solução pacífica da questão social.

Todavia, para familiarizar-se com essas deduções, não é necessário ser um sapiente economista. Basta ler uma ou duas recentes obras de economia ou até mesmo, simplesmente, alguns dos principais discursos e brochuras de Lassalle, o vulgarizador mais feliz e consciencioso da ciência econômica desses últimos anos e, melhor ainda, acompanhar com um pouco de atenção os acontecimentos que ocorrem a cada dia sob nossos olhos para convencer-se sobre a incontestável verdade das deduções acima mencionadas, e isso com não menos razão legítima e inatacável que o comum dos mortais, que ignora a astronomia, está hoje certo de que não é o sol que gira ao redor da terra, mas a terra que gira ao redor do sol. Se, para verificar todos os sistemas que, por hábito, tornaram-se para nós axiomas, tivéssemos de refazer o enorme trabalho realizado pelos espíritos que os descobriram, ou desenvolveram posteriormente, pode-se estar certo de que, esmagados pela enormidade dessa tarefa simplesmente impossível, nós não chegaríamos nem mesmo à mais simples dessas verdades.

Não é evidente que hoje a ciência econômica não existe para o povo? Este, por sinal, não necessita absolutamente dela, ao menos por enquanto. Sem o auxílio de qualquer ciência que seja, nosso povo sabe por uma amarga experiência que suas condições de existência são muito ruins e que tal é sua situação que, conquanto trabalhasse dez vezes mais, ele não seria nem mais rico, nem mais feliz, nem mais livre, exceção feita, talvez, para alguns sortudos, camponeses abastados ou proprietários rurais pequeno-burgueses, que conseguiram, por expedientes lícitos e sobretudo ilícitos, passar das camadas infelizes da multidão subjugada àquelas de seus exploradores e opressores. Tudo isso nosso povo o sabe sem conhecer a economia política; assim, ele não precisa absolutamente dessa ciência.

O mesmo se pode dizer da estatística, tão estreitamente ligada à economia política, e que está para esta o que a anatomia e a patologia estão para a fisiologia. Assim como a economia política, a estatística, em sua forma atual, é uma ciência para as classes privilegiadas, à riqueza, à evolução e ao bem-estar das quais ela se interessa, concedendo pouca atenção ao destino das massas laboriosas. Seu principal objeto é o Estado: relações das forças militares, marítimas e terrestres dos diferentes países, situação de suas finanças, dívidas públicas, receitas e despesas orçamentárias, balanço das importações e exportações, movimento do comércio interior e exterior, tendência da produção manufatureira e agrícola, meios de comunicação de toda natureza, número de fábricas, universidades e outros estabelecimentos de ensino, inclusive escolas primárias, repartição da população por nacionalidade e por religião, taxa de crescimento demográfico, duração média da vida, taxa e importância relativa da criminalidade etc., eis os principais materiais que a estatística utiliza para preencher seus gráficos. Quanto à condição real dos milhões de proletários que, sobre seus ombros sobrecarregados, que sustentam a glória, a grandeza, a força e a riqueza desses Estados, bem como todo o peso do progresso moral e material das classes privilegiadas, quanto à miséria sem saída das massas, quanto à sua vida de galé, à sua ignorância involuntária sistematicamente mantida pelos ministérios da Educação, às privações inumeráveis que a doença e a morte precoce engendram, não encontrareis quase nada de tudo isso nas melhores obras de estatística; e se, após longas e minuciosas pesquisas, acabais por descobrir, perdidos numa obra de vários volumes, alguns fatos que, até um certo ponto, desnudam, por assim dizer, contra a vontade de seu sapiente autor, o estado miserável das massas populares, isso ainda não seria suficiente para extrair conclusões definitivas. É claro que os senhores estatísticos desviam deliberadamente sua atenção e aquela de seus leitores desses fatos. Num único país estes fatos foram ressaltados com toda a consciência e amplitude desejadas, precisamente na Inglaterra; lá, graças às comissões parlamentares desempenhando honestamente tarefas que lhes são confiadas, é enfim revelada, em relatórios publicados por ordem do Parlamento, a pavorosa miséria do proletariado. Isso contribuiu em muito para fortalecer o movimento operário na Inglaterra.

Qualificaremos de benfeitor da humanidade e de autêntico amigo do povo o sapiente estatístico que, rejeitando a publicidade insuportável e estéril feita em torno dos grandes Estados e de seus ganhos oficiais e privilegiados, dedicar-se-ia ao estudo do estado real, sob todos os aspectos, das massas populares, e que, numa obra escrita em linguagem simples e tornada acessível a todos por seu baixo preço, seu estilo, sua clareza e sua lógica, exibiria essa pavorosa situação sob os olhos do mundo civilizado.

Desnecessário dizer que uma obra desse tipo deveria ser escrita menos para o povo, que, em sua imensa maioria, não poderia lê-la, do que para uma multidão de espíritos indecisos ou ainda não determinados, embora honestos, das classes privilegiadas; parece-nos que a leitura desse livro bastaria para incitá-los a ir ao povo não apenas para partilhar com ele um destino amargo, mas para levá-lo à revolta, única tábua de salvação.

Por sinal, o surgimento de tal livro poderia ter sobre o próprio povo se não uma influência direta e imediata, ao menos um efeito em cadeia. Um de nossos conhecidos italianos, meio homem de ciência, espírito relativamente justo, mas extremamente moderado e que se ocupou muito dessas questões, declarou-nos que ao comparar a duração média da vida do proletariado das cidades, e sobretudo do proletariado rural, com aquela das classes privilegiadas da Lombardia, ele havia chegado a resultados tão assustadores que teve medo de publicá-los; ao perguntarmos por que motivo, respondeu: “O povo teria certamente se revoltado.”

Seria vão esperar encontrar em seguida um estatístico desse tipo, ao mesmo tempo benfeitor e homem de ciência, cujo espírito genial seria capaz de abranger a situação real de todo um povo e ter a coragem, a vontade, a honestidade de mostrá-la em toda a sua nudez. De resto, por que esperar esse homem de ciência? Pode-se substituir uma grande obra por uma quantidade de pequenas monografias, das quais cada uma retraçaria e explicaria em seus mínimos detalhes a vida de uma localidade de nosso imenso país, de uma província, de um distrito, de um cantão, de um burgo, de uma vila, e, inclusive, de uma isbá, certamente, tendo sempre e sobretudo em vista os sofrimentos, as privações, o labor, o medo, a esperança e o pensamento íntimo ou a fantasia da população laboriosa das cidades e do campo. Isso forneceria preciosos materiais para a estatística revolucionária da terra russa e seria de fato o começo de uma ciência inteiramente nova, viva e verdadeiramente popular.

Atualmente, graças à solicitude paternal de nosso governo, uma multidão de jovens capazes e devotados à nossa causa está dispersa em todas as partes e em todos os cantos e recantos da Rússia. — “… Da província de Perm àquela da Táurida. / Dos frios recifes da Finlândia à ardente Colchide. / Do Kremlin estremecido à grande muralha da imóvel China” — inclusive, evidentemente, o conjunto da Sibéria — vivem, num pesado isolamento e num ócio forçado ainda mais deplorável, nossos amigos, separados de seu mundo de origem e jogados num mundo estrangeiro, desprovidos de todos os meios de existência e entregues ao arbítrio de seus tutores de polícia e de seus carcereiros, eles não sabem o que empreender, como empreendê-lo e o que fazer. Assim, por que nos primeiros tempos, por falta de qualquer outra atividade, cada um deles não se encarregaria de estudar até em seus mínimos detalhes, tanto do ponto de vista mental e moral como do ponto de vista material, o lugar onde está acorrentado? Dessa maneira, como dissemos, a atenção se voltará principalmente para a vida dos trabalhadores, mas também não perderemos de vista as outras classes do universo burocrático que têm uma influência tão direta sobre o destino do proletariado.

Nesse estudo, não negligenciai nenhum detalhe. Os detalhes que se repetem cotidianamente são bem amiúde mais importantes e mais dignos de observação do que fatos proeminentes dos quais, evidentemente, nenhum escapará à vossa atenção. Estudando minuciosamente a vida material das pessoas simples que vos cercam, buscai penetrar o fundo de sua alma, seus hábitos coletivos no plano mental e moral, suas diversas relações na família e na sociedade, bem como a razão secreta de sua atitude em relação aos outros corpos sociais e às autoridades. O que pensam eles de seus direitos e de suas humilhações que, evidentemente, não faltam em nenhum lugar na Rússia? O que querem, a que aspiram e esperam algo? E de quem? O que se diz e o que se pensa do czar em relação ao qual a atitude de nosso povo teria indubitavelmente se modificado para melhor desde que nosso Imperador Alexandre , que reina com satisfação, pôs-se a libertá-lo? Estamos convictos de que a fé no czar, nestes últimos tempos, tem-se enfraquecido consideravelmente no povo.

Conhecemos de bastante perto a vida e o modo de pensar dos outros corpos sociais para adivinhar aproximadamente o que o indivíduo, considerado num determinado meio, pensará, dirá e fará em certas condições. Não podemos dizer o mesmo de nossas populações urbanas, e sobretudo rurais, porque o segredo de seu pensamento, de suas representações e de seus sentimentos escapam-nos. Descobrir a fonte secreta de sua vida mental e moral, compreender o processo do pensamento popular, saber o que pensa, de que maneira pensa, a que aspira, o que espera e quer o povo russo, eis o principal e, digamo-lo, o único objeto da ciência viva, revolucionária, de nossa época. Quando tivermos tomado consciência disso, seremos incomparavelmente mais fortes.

[O manuscrito é aqui interrompido]

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