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Atualidade do Bólide “Cara de Cavalo” de Hélio Oiticica

O “Bólide Cara de Cavalo”, de Hélio Oiticica, de 1966, foi inspirado na perseguição policial e morte do bandido Manoel Moreira, apelidado de Cara de Cavalo no Rio de Janeiro. Oiticica escreveu uma nota a este respeito para uma exposição de seu trabalho em Whitechapel Gallery, Londres, 1969 (ver abaixo). Sibila publica também, autonomamente, um texto inédito de HO sobre as razões de se fazer Cara de Cavalo bem como de se fazer a bandeira “Seja marginal/Seja herói” (1968), esta se referindo a Alcir Figueira da Silva, que, ao ser acossado pela força policial, preferiu o suicídio à beira de um rio à prisão ou ao linchamento; Alcir, o da bandeira, não deve ser confundido com Cara de Cavalo.   Há uma relação direta entre o bólide  Cara de Cavalo e a “criminalidade legal”. Vou falar brevemente sobre esse aspecto.

Segundo especialistas, o jogo do bicho estruturou a entrada e a presença de criminosos no dia a dia de vários bairros da cidade do Rio de Janeiro, embora ele só tenha sido tipificado como uma contravenção em 1941. O “bicho” era visto como simpático e inofensivo. O jogo foi criado em 1892 com o objetivo de manter o bom funcionamento do Zoológico, fundado em 1888 pelo empresário João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, na zona norte da cidade.

Criminalidade. A jornalista Vera Araújo observa em El País (https://elpais.com/america/2024-02-10/el-bicho-la-violenta-mafia-que-ayuda-a-financiar-los-desfiles-del-carnaval-de-rio-de-janeiro.html) que os matadores de aluguel surgiram das figuras de guarda-costas que prestavam serviços aos chefes do jogo do bicho, que passaram a acumular fortunas e precisavam deles para as guerras por territórios. Esses guarda-costas eram, em sua maioria, policiais da ativa ou aposentados. Nos anos 1960 o jogo era feito por mais de um milhão de apostadores.

Polícia? A chamada Scuderie Le Cocq foi lançada em 1965 para vingar a morte do investigador Milton Le Cocq. Le Cocq havia pertencido à guarda de Getúlio Vargas e era primo do general Eduardo Gomes.

Em um tiroteio, no dia 27 de agosto de 1964, “enfrentando” um bandido de baixa patente, chamado Manoel Moreira e apelidado de Cara de Cavalo, Le Cocq acabou morto, com dois tiros, um deles nas costas, pelo que se questiona a autoria de Manoel. Alguns descreviam Le Cocq como policial exemplar; outros, ao contrário, como um algoz, que desprezava investigações, inquéritos policiais e subsequentes processos em juízo.

Scuderie Detetive Le Cocq é um codinome eufemístico para Esquadrão da Morte, no caso oficialmente o primeiro a ser fundado no Brasil, que perseguia bandidos para exterminá-los e não para prendê-los e submetê-los à lei. O crescimento da cidade produzia “delinquentes irrecuperáveis”, argumentavam as autoridades. Não havia tempo a perder. Brasília tinha deixado a cidade do Rio de Janeiro com um sentimento de orfandade.  Os integrantes da Scuderie Le Cocq eram policiais treinados para matar. Matar de bate-pronto. Eram os doze homens de ouro da polícia. Alguns deles passaram a dar proteção a bicheiros e depois se tornaram eles mesmos bicheiros (Mariel Mariscot), entre outras atividades ilícitas.

Os esquadrões da morte se firmaram em todo o Brasil nos anos 1960. Um dos mais letais foi o da cidade de São Paulo, utilizado na repressão pelo regime militar.

Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, 23 anos, morador da antiga Favela do Esqueleto, foi liquidado depois de uma ação policial de cerca de dois mil agentes, com mais de 50 tiros no corpo, e mais de 150 disparados, em Cabo Frio.

A execução fala por si mesma.

O primeiro tiro mata, os outros são mensagens. Estava inaugurada a era da violência brutal como instrumento de imposição de uma ordem excludente, opressiva (palavra usada por Hélio), ameaçadora, que persiste até hoje.

O que fazia Cara de Cavalo?

Em síntese, vendia, quando adolescente, um pouco de maconha na Central do Brasil, atuava depois como um rufião de quinta categoria e roubava dinheiro de apontadores do jogo do bicho na Vila Isabel, zona norte do Rio. Um bicheiro chamou a polícia. Fizeram-lhe espreita. Vieram Milton Le Cocq e mais três policiais. Cara de Cavalo era um pequeno bandido até ser acusado de matar Milton Le Cocq. Há versões que atribuem a morte de Le Cocq a um companheiro de viatura, que estava sentado no banco de trás.

No que consiste o “Bólide Cara de Cavalo”?

Bólide também quer dizer projétil, além de meteorito brilhante e inflamado. A obra “Cara de Cavalo”, de 1966, exposta pela primeira vez na mostra Iconografias de Massas, em 1968, na Escola de Desenho Industrial, consistia numa pequena caixa, rústica, apanhada talvez em feira, talvez um caixote, com materiais como nylon, pigmentos e com uma fotografia de Cara de Cavalo morto em seu interior e ao fundo também a frase: “Aqui está, e ficará! Contemplai o seu silêncio heroico”. A caixa “Cara de Cavalo” evoca, a meu ver, um túmulo. E a frase (poema, verso) é, por assim dizer, sua lápide.

A historiadora Mariana Dias faz um paralelo entre o grupo e a violência atual. “A Scuderie Detetive Le Cocq surge com finalidades ‘filantrópicas’, para amparar a esposa de Milton Le Cocq. No entanto, há indícios de que muitos de seus membros faziam parte do ‘Esquadrão da Morte’, uma espécie de marca que se perenizou na imprensa e na boca da população, tendo suas práticas bem aceitas pela sociedade. Podemos dizer que há uma influência da Scuderie nas atuais milícias, embora sejam outros tempos. Entre elas, mas de forma cautelosa, podemos apontar como similaridades o envolvimento de grupos paramilitares, a proteção de determinados indivíduos em detrimento de outros e execuções de pessoas indesejáveis” (https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2023/12/6753548-filme-relembra-morte-do-bandido-cara-de-cavalo-caso-que-marcou-cobertura-policial-na-decada-de-1960.html). Já Bruno Paes Manso – autor do já clássico República das milícias (Editora Todavia, 2020) é mais direto: estabelece nexos contundentes entre esses agrupamentos de extermínio e as milícias (https://youtu.be/fJ4LAsdGXeY).

Mais do que homenagem ao amigo, Oiticica, a meu ver, capta criticamente, nesse trabalho “Bólide Cara de Cavalo”, o funcionamento do culto da morte, a celebração da morte pelos brasileiros como substitutivo do estado de direito e, muito importante, percebe o início da estruturação das milícias, que advieram da capilaridade do jogo do bicho e da ação das escoltas.  Uma ordem opressora imposta pela violência.

Agradeço a Luciano Figueiredo pelo envio dos escritos e pela troca de ideias. Aqui deixo também (depois do texto de Hélio) a descrição da morte de Cara de Cavalo feita pelo jornalista Luarlindo Ernesto, testemunha presencial do fato:


 

O Bólide CARA DE CAVALO

Hélio Oiticica

 

[…] Gostaria de explicar a outra caixa com fotografias e palavras: não é um poema, mas uma espécie de imagem-poema-homenagem (isto me faz lembrar Milton Lucydas, quando homenageou um amigo que morreu no mar), essa caixa CARA DE CAVALO.

Afora qualquer simpatia subjetiva pela pessoa em si mesma, esse trabalho representou para mim um “momento ético” que se refletiu poderosamente em tudo que fiz depois: revelou para mim mais um problema ético do que qualquer coisa relacionada à estética.

Eu quis aqui homenagear o que penso que seja a revolta individual: a dos chamados marginais. Tal ideia é muito perigosa mas algo necessário para mim: existe um contraste, um aspecto ambivalente no comportamento do homem marginalizado: ao lado de uma grande sensibilidade está um comportamento violento, e muitas vezes, em geral, o crime é uma busca desesperada de felicidade.

Conheci CARA DE CAVALO pessoalmente e posso dizer que era meu amigo, mas para a sociedade ele era um inimigo público número 1, procurado por crimes e assaltos – o que me deixava perplexo era o contraste entre o eu que eu conhecia dele como amigo, alguém com quem eu conversava no contexto cotidiano, tal como fazemos com qualquer pessoa, e a imagem feita pela sociedade, ou a maneira como seu comportamento atuava na sociedade e em todo mundo mais.

Você pode pressupor o que será a “atuação” de uma pessoa na vida social: existe uma diferença de níveis entre sua maneira de ser consigo mesmo e a maneira como age como ser social.

Todos esses estes sentimentos paradoxais tiveram grande impacto em mim.

Esta homenagem é uma atitude anárquica contra todos os tipos de forças armadas: polícia, exército etc.

Eu faço poemas-protestos (em capas e caixas) que têm mais um sentido social, mas este para CARA DE CAVALO reflete um momento ético, decisivo para mim, pois que revela uma revolta individual contra cada tipo de condicionamento social. Em outras palavras: violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como o de opressão. (Hélio Oiticica, London, 1969, para a exposição na Whitechapel Gallery)

 


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.