Em começos de 1965 quando germinava a ideia de uma homenagem a Cara de Cavalo, que veio a se concretizar numa obra em meio de 66 (Bólide-caixa nº18 – B33), o meu modo de ver, ou melhor a vivência que me levou a isso foi a que define numa carta ao crítico inglês Guy Brett (12/abril/67) como um momento ético. Como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou-se um símbolo de opressão social sobre aquele que é “marginal” – marginal a tudo nessa sociedade; o marginal. Mais ainda: a imprensa, a polícia, os políticos (Carlos Lacerda pessoalmente chefiou uma “blitz” ao mesmo, aliás como já fizera em relação a outros anteriormente) – a sujeira opressiva, em síntese, elegeu Cara de Cavalo como bode expiatório, como inimigo público nº 1 (já em 62 haviam feito o mesmo com Mineirinho e logo depois com Micuçu, tudo isto já no governo Lacerda, que tornou símbolo da opressão social policial, inclusive com o trágico caso dos mendigos afogados, etc.). Cara de Cavalo foi de certo modo vítima desse processo – não quero, aqui, isentá-lo de erros, não quero dizer que tudo seja contingência – não, em absoluto! Pelo contrário, sei que de certo modo foi ele próprio o construtor de seu fim, o principal responsável pelos seus atos. O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda a possibilidade de sua sobrevivência, como se fora ele uma lepra, um mal incurável – imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboram para torná-lo símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente, com todo requinte canibalesco (o motive chave para isso foi o assassinato, numa luta, do detetive Le Cocq, do Esquadrão da Morte, organização policial que envergonharia qualquer sociedade de caráter, composta de policiais assassinos e degradados, que até hoje milita por aí com outras pessoas e nomes). Há como que um gozo social nisto, mesmo nos que se dizem chocados ou sentem ‘pena’. Neste caso, a homenagem, longe do romantismo que a muitos faz parecer, seria um modo de objetivar o problema, mais do que lamentar um crime sociedade x marginal. Qual oportunidade que têm os que são, pela sua neurose autodestrutiva, levados a matar, ou roubar etc. Pouca, ou seja, a sua vitalidade, a sua defesa interior, a sobrevivência que lhes resta, porque a sociedade mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, minada em todos os sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado.
Já outra vivência, sobrevém a do ídolo anti-herói, ou seja a do anti-herói anônimo, aquele que, ao contrário do Cara de Cavalo, morre guardando no anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, as suas experiências, seus recalques, sua frustração (claro que o herói anti-heróis, ou anônimo anti-herói, são fundamentalmente a mesma coisa; essas definições são a forma com seus casos aparecem no contexto social, como uma resultante) – o seu exemplo, o seu sacrifício, tudo cai no esquecimento como um feto parido. Numa outra obra (Bólide-caixa nº 21 – B44 – 1966/67), quis que através de imagens plásticas e verbais exprimir essa vivência da tragédia do anonimato, ou melhor da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer comunicar-se (o caso que levou à vivência foi o do marginal Alcir Figueira da Silva, que ao sentir-se alcançado pela polícia depois de assaltar um banco, ao meio dia, jogou fora o banco e suicidou-se). Porque o suicídio? Que diabólica neurose (aliás tão shakespeariana) o teria levado preferir a morte à prisão? Uma esperança perdida, o desespero dessa perda, mas qual perda? Uma ideia, sei lá se certa ou não, me veio: seria isto a busca da felicidade (aqui entendida como segurança, afeto, tudo o que envolveria a falta que ocasionou essa neurose) ??? Mas, deixemos esse problema para o nosso querido Hélio Pellegrino.
O certo é que tanto o ídolo, inimigo público nº 1, quanto o anônimo são a mesma coisa: revolta visceral, auto-destrutiva, suicida contra o contexto social fixo (“status quo” social). Esta revolta assume, para nós, a qualidade de um exemplo – este exemplo é a adversidade em relação a um estado social: a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos. Aqui isto aparece no plano visceral e imediato. Num outro plano, mais geral e com outras conotações estariam as mais heroicas experiências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heroico que é o de Guevara. O problema do marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e primário, o da denúncia pelo comportamento cotidiano, o exemplo de é necessária uma reforma social completa, até que surja algo, o dia em que não precise essa sociedade sacrificar tão cruelmente um Mineirinho, um Micuçu, um Cara de Cavalo. Aí então seremos homens e antes de mais nada gente.
HELIO OITICICA
Março 1968, para exposição “ Iconografias de Massas” em 1968 na Escola de Desenho Industrial