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Brasil à venda

Preâmbulo I

O Brasil é o país que transformou a mediocridade numa arte, e acreditou poder transformar a infâmia numa virtude.

Sua participação característica na moderna história ocidental pode ser sintetizada pelo pequeno exemplo dos grandes edifícios.

O moderno “arranha-céu” é uma conquista norte-americana. Primeiro um engenheiro, mr. Ottis, inventou o elevador. Depois, outros aprimoraram o aço estrutural inglês, e a junção de ambos permitiu não somente que erguessem edifícios altíssimos, como também que os fizessem facilmente frequentáveis.

O Brasil, então, deu afinal a sua contribuição, criando o “elevador de serviço” – leia-se, elevador de pretos e de pobres; que, além disso, seria seu único mecanismo de ascenção.

 

Preâmbulo II

“Órfãos brasileiros ganham vida nova nos EUA – Abandonados, com doenças graves, lá eles encontram novos pais e a chance de um futuro. […] Famílias do exterior acolhem ‘rejeitados’ do país: estrangeiros costumam adotar negros, mulatos, maiores de 7 anos e deficientes físicos. […] Para que uma criança brasileira seja adotada no exterior, é necessária ordem judicial especial assegurando que ninguém a quer no Brasil. Abandonadas pelos pais e pelo país…” (O Estado de S. Paulo).

  

Preâmbulo III: Redefinindo os três estados da matéria

Na realidade pragmática da vida, esses estados são: o limpo, o sujo e o encardido.

As grandes implicações dessa revisão empírico-epistemológica se tornam claras imediatamente (ou não se justificaria).

O limpo: se algo está nesse estado, nada há de ser feito, porque nada há a ser feito. Pois o que haveria de sê-lo já o foi, resultando, ou por não sujamento ou por limpeza ativa, nesse estado ideal por definição.

O sujo: se algo está nesse estado, algo há de ser feito, porque algo há a ser feito. Pois sua característica essencial é não estar limpo, ao mesmo tempo em que se mantém no campo de possibilidades da lavagem. O sujo, intermediário e ambíguo, pode passar a ser, ou limpo, ou encardido. Na verdade, o sujo representa a própria necessidade (além da necessária possibilidade) de lavagem, para evitar o encardimento e restaurar a limpeza.

O encardido: se algo está nesse estado, nada há de ser feito, porque nada há a ser feito. Pois ele representa a transcendência do sujo por sua impregnação à matéria daquilo que o encarde. A imanência assim atingida, transfigurando a coisa em questão, anula a possibilidade de limpeza. O destino do encardido resulta único e inexorável: o lixo.

As implicações não poderiam ser mais graves, além de agravadas por sua abrangência. Pois vão do mais ínfimo, tanto em tamanho quanto em relevância, ao mais vasto (idem). Ou de um sapato a um país, passando por todas as coisas e instituições intermediárias.

Um sapato limpo simplesmente se calça, realizando a plenitude de sua razão de ser. Um sapato sujo se limpa, devolvendo-o à sua condição primeira. Um sapato encardido se joga fora. Mas quando se trata, não de um sapato, mas de algo que embasa toda uma vida, e, na verdade, todas as vidas, como um país, as consequências, as possibilidades e os resultados mudam.

Um país limpo, ou seja, em que a imensa maior parte de sua população tem a imensa maior parte de suas necessidades materiais e existenciais atendidas, não demanda nada além da manutençõ, nos dois sentidos, de suas condições gerais. Um país sujo, isto é, em que parte importante de sua população não tem parte importante de suas necessidades materiais e existenciais atendidas, enquanto outra parte, ainda que menor, mas ainda significativa, sim, demanda mudanças a fim de diminuir a primeira pelo aumento da segunda: ou seja, um redimensionamento das marcas de seu tecido social, mal distribuídas como as manchas em um pano sujo. Com a diferença de que, neste caso, a mudança do tamanho relativo das nódoas resulta, na prática, na sua limpeza.

Por fim, um país encardido, em que, historicamente, a imensa maior parte de sua população não tem a imensa maior parte de suas necessidades materiais e existenciais atendidas, não possui, por esta mesma condição, condições de alterá-la, pois tal alteração teria de ser obra dessa mesma população destituída de meios e condições. O problema não pode ser a solução. Nem pode o encardido ser limpo. Mas como, apesar disso, pode tampouco um país ser atirado no lixo (ainda que seja ele próprio uma espécie de nação-lixo), resta somente viver e conviver, histórica e indefinidamente, com seu encardimento.

 

Descrição e defesa                                           

Durante os longos séculos em que a constituição de um moderno Estado-nação foi o objetivo geopolítico maior dos povos do Ocidente, o Brasil constituiu-se em um Estado-antinação. Ou seja, um Estado que, desde seus primórdios, visava, primordialmente, não a inclusão político-social de parte importante da população (vulgo cidadania), como no modelo original anglo-franco-norte-americano, mas, ao contrário, um Estado que tinha por objetivo fundante e fundamental manter no país independente os equivalentes dos poderes e privilégios escravistas da antiga elite colonial. Com as sujeições e os prejuízos também equivalentes do restante da população: citando Tomaso de Lampedusa sobre a época da unificação italiana e do fim dos regalias feudais das aristocracias locais, “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”. O Brasil, de fato, nunca parou de mudar, para que tudo pudesse se manter como sempre esteve. Aos ricos, tudo. Aos pobres, toda a infâmia.

Agora que o tempo áureo do Estado-nação é história, que a infame história do inâmine Estado-nação brasileiro, enfim (Libertas quae sera tamem), seja enterrada no passado – onde, afinal, ele sempre esteve.

Deitado eternamente em berço esplendidamente podre, o país do futuro do atraso é um grande e gordo nó górdio, cercado de moscas, parasitas animais e humanos e infindáveis doenças tristemente tropicais, embalado numa rede de inesgotáveis esgotos a céu aberto mais rápidos do que suas impraticáveis estradas de lama (ditas “de merda”). A solução, portanto, é rasgar o pano. Cortar o nó. Sem eufemismos nem metáforas. Ou delongas.

Cortá-lo, enfim, como o original: fisicamente. Mas à falta de heróis e mesmo de terremotos, fazê-lo, modernissimamente, com moedas e comerciantes.

Países, impérios, reinos e nações muito mais relevantes, cultural, política, militar, em suma, historicamente, como a antiga Grécia, o Império Romano, o Império Britânico, desapareceram sem que isso significasse o fim do mundo ou sequer da história. Por que, então, a medíocre manutenção de uma unidade geopolítica infinitamente mais insignificante deveria ser uma necessidade, uma inevitabilidade, ou mesmo ter muita importância?

Propomos, portanto, sua extinção pacífica por divisão geográfica – com a concomitante solução de seus insolúveis, profundos e profundamente abjetos problemas socioeconômicos e institucionais.

Pois se tratando de uma gigantesca área, entre devoluta, degradada (as matas e os cursos d´agua) e degradante (as cidades) de 8.500.000 km2 (oito milhões e meio de quilômetros quadrados), ela poderia ser facilmente dividida em dez significativos lotes com área ideal de 850.000 km2 (oitocentos e cinquenta mil quilômetros quadrados), equivalente ou maior à dos países médios (Paquistão, Namíbia, Moçambique, Turquia, Chile, Zâmbia, Myanmar, Afeganistão, França, Somália, República Centro-Africana e Espanha). Tais lotes seriam, então, leiloados, visando a obtenção de preços máximos de venda.

O lance mínimo para cada lote, por outro lado, seria o décimo do valor total do território da atual unidade política.

Tal valor será arbitrado tomando-se por base o PIB do ano em questão, sua taxa média recente de crescimento, a balança comercial, a dívida externa, a dívida interna, a produção e o consumo de energia, a produção e a produtividade industrial e agrícola, o consumo de bens e serviços, a infraestrutura urbana, a infraestrutura de transportes e os demais dados econômicos estatísticos pertinentes.

Os interessados deverão, como pré-requisito mínimo, ser países integrantes das Nações Unidas – isto é, serem entidades reconhecidas internacionalmente.

Para uma pré-qualificação específica, os interessados serão, então, analisados, pelas próprias Nações Unidas, quanto à estabilidade e à qualidade (representatividade e liberdades civis) de suas instituições e práticas políticas nas últimas décadas (a ser definido) e quanto à qualidade e robustez de seus parâmetros socioeconômicos (como distribuição de renda efetiva, apesar dos dados macroeconômicos médios, como renda per capita), além de taxa de alfabetização, expectativa de vida, mortalidade infantil e todos os demais itens que compõem o IDH.

Serão desqualificados, portanto, países endinheirados porém tão ou mais desqualificados quanto o Brasil, como os países petrolíferos árabes e quaisquer países não-árabes com superávits econômicos longos ou circunstanciais e crônicos e hediondos déficits político-sociais (tendo aqui por referência os direitos humanos universais – que, sendo humanos e universais, incluem necessariamente todos os gêneros que compõem o gênero humano).

A lista final de países considerados aptos deverá ser aprovada em plebiscito pela população da atual unidade política.

As mesmas Nações Unidas ficariam a cargo da realização do leilão, sendo estabelecido como fórum adequado e suficiente para dirimir dúvidas e solucionar querelas o Tribunal Internacional de Haia.

Cada comprador, visando o equilíbrio geopolítico regional e internacional, terá direito idealmente a apenas um lote – abrindo-se exceções no caso de o número de pré-qualificados não suprir a quota mínima de dez participantes.

 Os contratos de compra e os termos de posse determinarão – entre outras disposições obrigatórias a serem futuramente detalhadas – que consumado o leilão, as dez parcelas serão imediatamente integralizadas.

O valor total final da venda do conjunto dos lotes será, então, entregue diretamente ao conjunto dos indivíduos pertencentes à população da antiga unidade geopolítica, dividida perfeitamente per capita, a despeito de sexo, idade ou qualquer outra característica que não a de haver nascido ou vivido há um tempo determinado no país em dissolução.

Tal medida, a despeito das eventuais diferenças de preços finais dos lotes por efeito do leilão, de um lado, amenizará a hedionda e insanável concentração de renda que aflige, historicamente, todo o território, e de outro, significará um desconto real e imediato no preço nominal final de cada lote, uma vez que parte significativa do valor pago acabaria alocada no próprio lote, na forma de uma nova e real poupança dos novos cidadãos.

Novos cidadãos que seriam incorporados, se não geograficamente, jurídica e politicamente, à população do país comprador. Sanando-se, assim, simultânea e definitivamente, a crônica anemia da cidadania dos habitantes do atual território (que se reflete no falência estrutural, não meramente conjuntural, pois crônica e histórica, de todas as funções constitucionais fundamentais do Estado, como saúde pública, educação pública, segurança pública, justiça universal etc.).

Ao mesmo tempo, e por expressa obrigação contratual, instituir-se-á o bilinguismo em todos os novos estados, regiões ou províncias destarte constituídos, na forma da introdução obrigatória do ensino da nova língua oficial – ou das novas línguas oficiais – nas escolas públicas e privadas de cada lote, ao lado da manutenção – ou da implantação real – do ensino do português.

Seria assim preservada a única riqueza cultural verdadeiramente inquestionável da desimportante ex-unidade política. Enquanto se eliminaria o atávico e notório provincianismo de seus habitantes, que abandonariam tanto seu monolinguismo sistêmico quanto seu analfabetismo endêmico.

O mesmo leilão será ainda, concomitantemente, em caráter inadiável e irrevogável, o ato de fundação do Mercado Comum dos Territórios Ex-Brasileiros (Mercotexbra), baseado no livre trânsito de pessoas, bens, informações e serviços.

 Caberá ao Mercotexbra a implementação imediata de um acordo de unificação monetária, além do rápido desenvolvimento do ex-mercado interno – bem como, necessariamente, de sua infraestrutura, notadamente a de transportes (duas outras questões fundamentais jamais enfrentadas de modo minimamente satisfatório no atual território).

Sem embargo, tais medidas ainda dariam conta da manutenção da unidade das famílias, além de incrementar o turismo na área do Mercotexbra e de extinguir a necessidade de manutenção de múltiplas forças armadas para defender as fronteiras de cada nova unidade geoplítica.

A criação de forças armadas é um processo relativamente lento, além de oneroso. Seriam, portanto, naturais as tentativas de reaproveitamento das respectivas partes das atuais forças armadas do território. Partes que passariam, na ausência do Mercotexbra, a se constituir nas forças de defesa de cada nova subunidade territorial. Ocorre que as forças atuais são inoperantes para combates externos, além de historicamente especializadas em golpes. Apesar de, portanto, aptas a agir internamente no atual território, não seriam aproveitáveis para uma eventual defesa, agora externa, de uma nova subunidade. Por outro lado, por não poderem, pelos mesmos motivos, serem aproveitadas para a defesa externa do conjunto das fronteiras do Mercotexbra, serão simplesmente extintas, com todo seu passado tão ineficiente quanto inglório.

As novas unidades geopolíticas criarão, em seu lugar, uma Força de Defesa Mútua do Ex-território Brasileiro (FDMETB), baseada no princípio de que um ataque a qualquer unidade seria um ataque a todas elas.

O mesmo se aplica às instituições políticas da entidade atual – que também serão extintas. Para serem substituídas, em cada nova unidade, por órgãos locais de representação e institucionalização políticas, que estarão integrados a um governo federal. Naturalmente, não se trata de um governo federal que represente o conjunto das novas unidades geopolíticas, o que seria uma forma de renascimento do país que se deseja extinguir. Como todos os cidadãos de cada nova unidade geopolítica serão cidadãos plenos e de pleno direito da nação adquirente (conforme determinado acima), cada nova unidade geopolítica formará, com a mesma nação adquirente, uma federação, na qual, além da harmonização jurídica geral entre as duas unidades da federação, o novo membro terá seu próprio Parlamento e direitos soberanos (notadamente sobre arrecadação e aplicação de impostos), com exceção de questões de interesse comum, como defesa e política externa.

Em consequência, pela primeira vez em sua extensa e profundamente cruel história (ao contrário do que muitos habitantes do país acreditam, ele é antigo, pelo único parâmetro objetivo: é mais antigo do que a imensa maioria dos Estados atuais, surgidos no final do século xix e ao longo do século xx), o Brasil seria, a um só tempo, criativo e ousado, além de razoavelmente justo: numa palavra, moderno. Para, então, depois de ter existido tão medíocre e infamemente, sair do mapa e entrar, afinal, na história.

 

 

Adendo: Da toponímia

 

O presente Projeto, ao lado da solução definitiva dos problemas fundamentais citados e de outros correlatos, mas não menos fundamentais, referentes ao passado, ao presente e ao futuro até aqui inexorável da atual unidade política, extinguiria também, necessariamente, seu nome – o que, se não é um móvel crucial do Projeto, tampouco se constitui numa sua conquista adicional de todo desdenhável.

Pois tal nome é, fundamentalmente, um equívoco: República Federativa do Brasil. O que significa que, se em vez do interesse circunstancial da Europa pela tintura extraída de tal pau, houvera então um interesse maior, como ocorreu depois, por outras madeiras, seu nome poderia ser, por exemplo, República Federativa da Peroba. Sendo seus cidadãos chamados, portanto, não de brasileiros, mas de perobeiros. Muito mais “poético”, sem dúvida, seria a República Federativa do Ipê. Mas ipeiros? Estados Unidos da Mangueira? República Federal do Mandacaru? Do Mogno? Do Pau-Rosa? Do Cajueiro? Da Jaqueira? Do Jacarandá?

“Povo jacarandeiro!” “Porque o trabalhador jacarandeiro…” “As estatísticas jacarandeiras indicam que…” “O Produto Interno Bruto jacarandeiro sofreu…” “A seleção jacarandeira de futebol entra em campo!” “A MPJ, a popular música popular jacarandeira…” “O presidente do Jacarandá negou ontem…” “No Congresso jacarandeiro as denúncias…” “Os pracinhas da FEJ, Força Expedicionária Jacarandeira…” “Depois da intensa campanha que mobilizou todo o país, foi hoje oficialmente criada a Petrojaca…” “A Telejaca aumentou ontem suas tarifas em…” “Em Jacarandília, 19 horas. Esta é mais uma transmissão da Voz do Jacarandá, numa produção da Radiojaca!” “Jacarandá, ame-o ou deixe-o!” “Deus é jacarandeiro!” “Calma que o Jacarandá é nosso!” “Jacarandá, meu Jacarandá jacarandeiro…” “Jacarandá de um sonho eterno seja símbolo…” “Viva o Jacarandá!”

 

[1] Este texto faz parte do romance inédito “A quarentena”.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).