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Cartas inéditas de Freud

Gradiva, baixo-relevo Museu doVaticano

Algumas cartas de Correspondência de viagem de Sigmund Freud

Nota e tradução de Solange Rebuzzi

Em Notre coeur tend vers le sud: correspondance de voyage[1], reunião de cartas, bilhetes e cartões-postais que Sigmund Freud escreveu aos familiares entre 1895 e 1923, encontramos um roteiro de viagem marcado por comentários sutis, numa linguagem irônica, às vezes até telegráfica.

Enviadas principalmente da Itália, as missivas são endereçadas a sua mulher, Martha, e aos filhos, e contam sobre as cidades, os monumentos, as paisagens e os museus, as comidas, os passeios realizados e as diferenças observadas no dia a dia.

Essa correspondência revela um Freud muito ligado à família (às vezes, ele escrevia até mais de uma vez ao dia para Martha), crítico e atento a tudo, mantendo uma íntima relação com a escrita, o que o fazia registrar, mesmo durante as férias, notícias de seus hábitos e de suas observações.

Podemos perceber ainda nesse livro muito do interesse de Freud pelas terras do sul da Europa (incluindo aí não só a Itália, como também a Grécia). O roteiro, que era ditado pelo desejo e o ajudava a conhecer e adquirir obras antigas para a sua coleção particular, também o levava para lugares onde podia experimentar um grande entusiasmo diante das cores, dos sabores e dos aromas distintos.

Um observador que testemunha detalhes do que encontra, possibilitando a nós, seus atuais leitores, chegar mais perto do que ele pensava nos momentos em que não estava em seu consultório, mas, ainda assim, escrevendo sobre tudo o que via.

Em suma, como diz Elizabeth Roudinesco no prefácio do livro: “Um Freud anterior ao desastre de entre-duas-guerras, um Freud brilhante, poliglota, cosmopolita, impregnado de helenismo, da cultura latina, da egiptologia, da mitologia, da etimologia, um Freud da Mitteleurope,[…]. Resumindo, um Freud habitado por um desejo ardente de ultrapassar as fronteiras, um Freud que poderia ser Dante, Ulysses ou Lord Jim” (p. 11).

 


CINCO CARTAS DE SIGMUND FREUD

[24 de setembro de 1907
Bilhete endereçado à Martha Freud]

Gradiva, baixo-relevo Museu doVaticanoRoma 24.9.07

Tua carta me deu grande prazer. Imagino muito bem que o pequeno armário foi uma surpresa para você. É o presente que eu desejava te enviar. Uma pequena moldura de espelho também deve ter chegado. Eu, igualmente, tenho muito que viajar e penso partir daqui quinta-feira à noite para chegar sábado de manhã[2], isto só depende de algumas poucas compras que ainda estou negociando. Pense em minha alegria reencontrando hoje no Vaticano, depois de uma longa solidão, o rosto conhecido de um ser querido; mas o reconhecimento foi unilateral, pois se tratava de Gradiva[3] pendurada bem no alto de uma parede. O tempo fica sempre mais magnífico. A cidade sempre mais esplêndida. Dei ontem minha roupa para lavar.

 

Carinhos.

Teu Sigmund

Recomeçarei a trabalhar na segunda-feira dia 30.

 

 


[Em 31 de agosto de 1909
Carta de Nova York (6 páginas) endereçada à família
Papel de carta do hotel Manhattan]

Nova York

Terça-feira, 31 de agosto de 1909

Meus muito queridos

Pouco a pouco, terminamos por nos encontrar, nesta cidade. No espaço de uma semana, nos aclimatamos. Nossa vida não é muito cansativa.

Ontem à tarde, eu passei na casa dos Lustgarten[4]. [O lugar estava] muito diferente. Eu entrei, acendi a luz, vi gravuras em couro penduradas nas paredes, mas nenhum sinal de vida. Finalmente, cheguei a tocar a campainha para uma arrumadeira que, estranhamente, se parecia muito com a senhora L(ustgarten). How did you come in? Foram suas primeiras palavras. Evidentemente, se ela deixa a porta do apartamento aberta, isto não tem nada de surpreendente. Eu deixei uma carta. Os L(ustgarten) só retornarão em outubro. Em seguida, me dirigi de carro (preço fora dos padrões) à rua 119, diante do número 121. Modesta casa de três janelas. Na rua estava tudo muito bem fechado, desta vez, mesmo a porta de entrada. Eu os verei talvez na volta. Não quero dar um passo em direção a Eli, que talvez esteja na cidade[5]. Em seguida, me encontrei com Jung no Central Park, uma paisagem infinita no estilo dos parques ingleses, mas com partes em pedra muito belas, cheio de crianças, de mulheres e de esquilos domesticados de caldas cinzas (e não vermelhas) que se comportam como proprietários.

Os cartazes são redigidos em inglês, mas também na língua alemã, italiana e em iídiche, com os caracteres hebreus. Há um turbilhão de crianças judias, pequenas e grandes, e com frequência me pareceu ver Martha e Hella[6], mas elas deveriam estar maiores agora. Em seguida, tomamos chá, delicioso, no pequeno restaurante que parecia muito com aquele das margens de Wien na Stadtpark de Viena, mas certamente estávamos entre outros senhores que tinham negócios lá, e tudo acompanhado pela música americana. À noite, fomos convidados à casa de Brill, e conhecemos uma mulher charmosa, maior que ele, muito americana, que não era judia, mas elegante e magra como todas as american ladies,embora elas não tenham a sorte de ser tão belas. Ela participa dos trabalhos sobre a psicanálise, se mostrou muito atenciosa, imediatamente interessada em Jung e assinou com seu nome de solteira a carta destinada à Martha, pedindo a indulgência da análise. O jantar foi excelente e ofereceu algumas especialidades americanas como, por exemplo, uma salada de frutas feita de maçãs, nozes, aipo etc., que me pareceu algo como um ritual. O serviço foi firmado por uma senhora amarela como uma cidra de rosto muito inteligente. Já estamos habituados a todos os graus de cor, do negro carvão ao chocolate passando por todas as nuances do café. Depois tomamos um dos carros que faz dia e noite as visitas guiadas de Nova York, e pudemos ver a cidade chinesa, onde cruzamos com uma bela ralé branca, assim como a polícia montada, a maioria, em relação aos legítimos habitantes. Mas esses não carregam mais tranças, suas semelhanças com as múmias egípcias reais frequentemente escapam. O dono de uma boutique chinesa notou imediatamente que meu traje era de seda chinesa, ele me mostrou seu preço e parecia muito satisfeito. Eu teria comprado, de boa vontade, toda espécie de coisas, mas o tempo corria. Vimos um lugar de culto e restaurantes, provamos chá em pequenas taças, não tocamos em um recipiente cujo conteúdo estranho parecia vermes, mas que era feito de fato de batatas, cebolas, pedaços de carne etc., cortadas bem finas, e que deveríamos comer com a ajuda de duas baguetes negras. Em seguida, voltamos ao hotel depois de 11h30 passando pelo gueto, que estava lotado de gente, mal sentada, enormes quantidades de papéis cobrindo as ruas.

Esta manhã, Metropolitan Museum,com suas antiguidades, almoço em um restaurante húngaro, Café Abbazia, onde nos serviram enfim o bom café. Esta noite devemos nos encontrar em Coney Island, considerado como uma espécie de Prater. Nossos outros projetos dependem da resposta de Worcester; talvez nos verão antes em Washington[7].

Geralmente, depois do almoço, das 16 às 18h, descansamos. Brill aproveita para fazer correções na tradução que ele me mostrou ontem. Minha fotografia, evidentemente, está exposta em seu consultório.

Envio para todos meus sentimentos afetuosos.

Quando terei notícias de vocês?

Pai

 

Cartão-postal de Nova York enviado a Martha em 1909.
Cartão-postal de Nova York enviado a Martha em 1909.

 


 

[Em 13 de setembro de 1910
Cartão-postal de Alcamo-Calatafimi endereçado à Martha Freud]

Alcamo-Calatafimi[8]

13 set. 10. 6h

Estação na qual chegamos por engano muito cedo e esperamos o trem de Castelvetrano onde passaremos a noite; amanhã, permaneceremos em Selinunte e retornaremos a Palermo à tarde.

Aqui é a Sicília mais antiga, com localidades que não têm mais nomes árabes, tudo é sisudo e sujo, mas o café estava muito bom. O templo de Segesta[9], ao qual nós retornamos, foi um espetáculo magnífico nesta terra isolada e perdida. Para isso valia certamente a pena fazer duas horas e meia de trajeto, e o mesmo tanto para a volta, em uma abominável carruagem[10]. Os outros templos não serão certamente tão cansativos. Uma outra carta parte ao mesmo tempo de Wittebrug.

Sentimentos afet.

Papai


 

 

[Em 22 de setembro de 1913
Cartão-postal de Roma enviado a Sophie e Max Halberstadt]

22.9.13

Queridos filhos

Fomos a Tivoli hoje, obrigado pela charmosa carta de vocês. Sua tia é muito gentil, o tempo esplêndido.

Sentimentos, Papai

 

 


 

[Em 16 de setembro de 1923]

Roma, 16.9.23

Meus muito queridos,

São os últimos dias. Para facilitar a partida, o sirocco começou a soprar e as reações de minha mandíbula[11] me fazem sofrer mais do que nunca. Anna está muito alegre, ela até tentou uma opereta. Teirich escreve que o processo contra Ernst H. aconteceu no dia 19[12]. Espero que vocês todos estejam bem.

Afetuosamente,

Papai

 

 


  1. Sigmund Freud, Notre coeur tend vers le sud: correspondance de voyage, 1895-1923, trad. Jean-Claude Capèle, pref. Elizabeth Roudinesco, Paris, Fayard, 2005.
  2. Partida de Roma em 26 de setembro às 23h10; chegada em Viena, estação Oeste, às 7h50.
  3. Delírio e sonhos na Gradiva de Jensen [de Freud] acabava de sair. Na narrativa de Jensen, o herói fica apaixonado por esta obra exposta nos museus do Vaticano. Karl Abraham oferecerá a Freud uma cópia deste quadro no Natal de 1908.
  4. Sigmund Lustgarten (1857-1911), colega de estudos e antigo companheiro de Freud.
  5. As relações de Freud com seu cunhado Eli Bernays estavam esfriadas desde as discussões que eles tinham tido a propósito do dote de Martha em 1886.
  6. Martha Bernays (1894-1979) e Hella Bernays (1893-1923), as mais jovens sobrinhas de Freud, filhas de sua irmã Anna. Freud as tinha visto pela última vez em 1900, durante uma viagem que elas tinham feito à Europa.
  7. Esse projeto não teve seguimento.
  8. Estação situada entre as duas cidades de Alcamo e Calatafimi.
  9. Um dos templos gregos mais conservados da Sicília. Sua construção foi iniciada próxima ao ano 430 a.C., mas nunca foi terminada.
  10. Viaturas a cavalo permitiam ir da estação de Alcamo-Calatafimi até as ruínas.
  11. Suas dores estão ligadas ao início de seu câncer na mandíbula.
  12. O advogado Valentin Teirich fora encarregado por Freud de defender o filho de uma de suas antigas empregadas por ter atirado em seu pai no momento em que este tentava violentar sua meia-irmã. Freud pagou os honorários do advogado.

 Sobre Solange Rebuzzi

Escritora e psicanalista. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Passou a infância em Manaus, e a adolescência em Ipanema. Estudou psicologia, filosofia e literatura. Escreve poesia e prosa. Traduziu Francis Ponge em Nioque antes da primavera durante um Posdoc na UFF, Lumme editor. Publicou o romance A bordo do Clementina e depois. E os diários escritos durante a pandemia: Diário de um tempo indeterminado e Caligrafias. Todos pela 7Letras entre muitos outros.