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CURDOS: CORPO ESTRANHO

CURDOS: UM CORPO ESTRANHO NA GEOPOLÍTICA MODERNA

 

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Os curdos, um antigo e grande povo (cuja população é de cerca de 35 milhões), são um corpo estranho – em bem mais de um sentido. Primeiro, porque grandes minorias deles estão incrustadas em quatro países, Turquia, Síria, Iraque e Irã, sem que eles sejam turcos, árabes ou iranianos (mas curdos). Segundo, porque não sendo nada disso, pouco gente sabe o que sejam. Terceiro, porque apesar de serem um dos povos mais antigos do mundo, são um dos mais desconhecidos. Quarto, porque são o maior povo sem seu próprio Estado do mundo contemporâneo.

Seguindo a máxima de Brecht, “Triste do país que precisa de heróis” (aqueles com problemas que põem em risco sua existência, por exemplo): a nação curda seria, então, tristíssima – pois precisa muito de heróis. Mas de heróis os curdos, infelizmente (porque afinal os têm, e os têm porque deles precisa) não carecem, como Abdulah Ocalan, fundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, preso há 20 anos na Turquia, como parte de uma pena de morte comutada para prisão perpétua. Ou como os milhares de combatentes anônimos do Peshmerga (“Aqueles que enfrentam a morte”, em curdo), sua grande milícia integrada também por mulheres, que recentemente foi o fator determinante na derrota do Estado Islâmico no norte da Síria (região curda do país).

Os EUA os apoiaram com armas e inteligência militar. Uma vez feito o trabalho mortal no terreno, Trump, o sociopata funcional que separa crianças dos pais nas fronteiras, se retirou da Síria, justamente na área onde atuava a milícia curda no combate ao Estado Islâmico, e onde o esfacelado governo sírio não penetra. Mas a Turquia do filofascista islâmico Erdogan, aproveitando a saída americana, sim. Eis que os curdos voltam, outra vez, a ser alvo de massacres, desta vez pelas forças turcas, que recém invadiram o norte da Síria desmembrada pela guerra civil para caçá-los.

Dias depois de milhares de curdos terem sido deslocados e expulsos de suas casas e de um número indeterminado haver morrido por ataques que incluíram bombardeios aéreos, foi anunciado, em 27/10, um “cessar fogo”, negociado pela Turquia e pela… Rússia. Haverá uma “zona tampão” entre o norte da Síria e o sul da Turquia, a ser garantido por forças… turcas e russas. O fato de se tratar de duas regiões de maioria curda, e de a Turquia e a Rússia não terem exatamente um registro histórico notável por seu respeito aos direitos humanos, torna esse “cessar fogo” o fato consumado de que os curdos dos dois lados da fronteira terão garantidos por tempo indeterminado ficar à mercê do exército turco. A chamada comunidade internacional, impotente, indiferente e indigna, reage do modo habitual: o silêncio tingido de sangue.

 

Os soldados, em veículos militares turcos e russos, seguiram para o leste de Dirbassiyeh para vigiar uma zona de dezenas de quilômetros, de acordo com fontes militares de Ancara. O acordo anunciado em 22 de outubro pelos presidentes turco, Recep Tayyip Erdogan, e russo, Vladimir Putin, determinava que a milícia curda Unidades de Proteção Popular (YPG) tinha até terça-feira passada para abandonar esta zona de fronteira. A Turquia deseja instalar nesta fronteira uma “zona de segurança” de 30 quilômetros para separar seu território da área de presença das YPG, que considera “terroristas”. Este grupo foi, no entanto, um aliado crucial dos países ocidentais na luta contra o grupo extremista Estado Islâmico (EI). Fontes russas afirmaram esta semana que as milícias curdas abandonaram a região, mas Erdogan declarou que as tropas turcas se reservavam o direito de comprovar a informação após o início das patrulhas conjuntas com a Rússia.[1]

 

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Depois da Primeira Guerra Mundial, que destruiu o multissecular Império Otomano, aliado da Alemanha e da Áustria, o centro do império (que se estendia da Mesopotâmia [Iraque] ao Marrocos, incluindo a Europa Oriental [Bálcãs e Grécia]), ou seja, a Anatólia, foi escolhido pelo novo governo turco para a criação, nos anos 1920, da atual República da Turquia – e esta deveria ser “turca e anatoliana”. Virando do avesso, trata-se de uma afirmação oficial, constitucional, que traz no verso, oculta, a limpeza étnica – pois a Anatólia era habitada, no oeste, não por turcos, mas por milhões de armênios e curdos. Daí o primeiro genocídio da história moderna, antes daquele perpetrado por Hitler, ter sido o de 1,5 milhões de armênios que ali viviam. Os armênios são cristãos. Os curdos, muçulmanos, ainda que adotem uma de suas versões menos ortodoxas. Daí o extermínio dos armênios anatolianos pelos turcos e a não perseguição inicial dos curdos. Mas isto não duraria, nem poderia durar. Pois se a Turquia seria “uma república turca e anatoliana”, e se o os curdos não são turcos, estes teriam de ser, e foram, “turquizados”. Daí a política inicial turca de negar a existência dos curdos, hoje mudada em negar “apenas” sua cultura. Até recentemente, eles não podiam falar sua própria língua, nem ensinar essa língua e sua história nas escolas. Agora, a Turquia invade a área curda da Síria, com ataques brutais por terra e ar, atacando não somente os combatentes curdos, mas também os civis. Primeiro, porque os combatentes curdos não são um exército regular, mas uma milícia, ou seja, parte da população que se engaja voluntariamente (incluindo mulheres, como dito acima). Segundo, porque os objetivos turcos são matar curdos, espalhar sua população, enfraquecer sua milícia e assustar os curdos do outro lado da fronteira, isto é, os que vivem na própria Turquia.

Por outro lado, nenhum curdo vive no Curdistão: pois este não existe. Não existe, ao menos como unidade geopolítica, apesar de existir como entidade étnica.

 

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Nas conferências preparatórias do Tratado de Versalhes, que após a Primeira Guerra Mundial redefiniu as fronteiras da Europa, do Oriente Próximo e do Norte da África, após a implosão do Reich alemão, do Império Austro-Húngaro e do Império Otomano, foi prevista a formação, pela primeira vez na história, do Curdistão. Mas principalmente pela ação agressiva, em campo, das forças militares da recém-criada República da Turquia, no antigo centro anatoliano do império – e também por pressão política dessa mesma Turquia que, sendo “turca e anatoliana”, não podia permitir que parte importante da Anatólia, no oeste, integrasse o Curdistão –, este veio à luz natimorto. A nova Turquia interessava às potências ocidentais, pois seria uma potência não-árabe na fronteira tanto da Europa quanto do Oriente Médio, e poderia, portanto, servir de tampão, como serve até hoje, entre o Oriente Médio e a Europa (a recente crise de refugiados sírios na Europa foi interrompida pela Turquia, depois de a Europa negociar com o país a fechamento de suas fronteiras ocidentais). Assim também a unidade da Mesopotâmia (atual Iraque), com suas fontes de água (os rios Tigre e Eufrates) e seu petróleo abundante como a água desses grandes rios, a fim de poder ser influenciada mais fácil e eficazmente pelas potências ocidentais. A população curda no norte do também então novo Iraque que fosse literalmente à merda. Os curdos iraquianos seriam, anos depois, a principal vítima das décadas de terror do governo de Saddam Hussein, sofrendo inclusive ataques com gás em suas vilas. Hoje, nos outros dois países que ficaram com as demais partes do natimorto Curdistão, a Síria e o Irã, os curdos continuam perseguidos e oprimidos por governos que são, o primeiro, árabe e xiita, o segundo, xiita e persa. Os curdos, como já dissemos, não são nem persas, nem árabes, nem turcos.

 

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Os turcos são um povo centro-asiático, originário da região do atual Turcomenistão (não por acaso), que migraram para leste como força de combate auxiliar dos califas árabes na sua longa luta para destruir o Império Bizantino e sua grande capital, Constantinopla, hoje conhecida (mas irreconhecível) como Istambul. Os árabes são um povo semita originário da Península Arábica, de onde se expandiram imperialmente, ou seja, via militar e por anexação (criando a famoso Califado dos sucessores de Maomé), da África Ocidental (Marrocos) à Índia (daí o atual Paquistão, habitado por indianos convertidos ao islã). Os iranianos, antigos persas (contemporâneos dos gregos antigos, pelos quais foram conquistados sob Alexandre, o Grande), são um povo indo-europeu, que habita o planalto iraniano desde suas primeiras migrações (dos indo-europeus, a partir de sua região original no Cáucaso), tanto para o oeste (Europa) como para leste (Índia): daí seu nome. Os curdos são, étnica e linguisticamente, longinquamente aparentados aos iranianos. Sendo, assim, também indo-europeus, fazem parte do grande grupo étnico ocidental.

Os gregos da época de Alexandre, que passaram pela região no século IV a. C., já os nomeiam e descrevem, assim como, ainda mais precocemente, os antigos mesopotâmicos. Os curdos são, portanto, um dos mais antigos povos atuais em termos de história contínua e registrada.

 

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Modernamente, talvez por não serem árabes ou iranianos, ficaram imunes a certas características destes dois povos, marcados pela presença sociocultural tóxica de um islã dominante e abrangente, apesar de todas as variações e gradações. Os curdos são muçulmanos, mas o islã que praticam é o mais próximo de um islã “reformado”, ou seja, aquele que existiria se essa religião tivesse passado por um processo de modernização como o cristianismo, via Reforma protestante ou a forte influência da modernidade ocidental (no caso do catolicismo). Ao contrário, no islã não houve jamais qualquer reforma, nem grande influência da modernidade laica, um dos principais motivos, aliás, de sua grande resistência à cultura ocidental na atualidade. Os curdos, enfim, entre os povos da região, são os mais democráticos, elegendo assembleias sempre que em alguma cidade ou região conseguem alguma autonomia, como no norte da Síria depois do esfacelamento do governo central pela guerra civil (o mesmo norte curdo da Síria agora ferozmente atacado pelo exército turco). Além disso, são também aquele em que as mulheres gozam de maior igualdade e liberdade (daí fazerem parte significativa do corpo de combatentes de suas milícias).

Para que a história fizesse, tardiamente, justiça aos curdos, materializando afinal o fantasma geopolítico do Curdistão, eles teriam de vencer insuperáveis resistências dos quatro países onde são grandes minorias, Turquia, Irã, Síria e Iraque. Os dois últimos estão em fase de esfacelamento. Mas os dois primeiros estão entre as maiores potências militares regionais. O Irã, inclusive, está perto de construir a bomba atômica, enquanto a Turquia faz parte da Otan, e conta com seus mais modernos equipamentos militares. Os mesmos agora usados para massacrar os curdos do norte da Síria.

 

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A Liga das Nações – precursora fraca e fracassada da fracassada e fraca Nações Unidas – ameaçou nos anos 1920 criar o Curdistão, mas logo cedeu. Já a ONU, a grande criadora ou fiadora dos Estados contemporâneos na segunda metade do século XX (o primeiro foi Israel, em 1947, o último, nos anos 1990, o Kosovo, passando por inúmeros Estados africanos), pouco liga para os deserdados de sua precursora. Os curdos têm muitos inimigos. E sofrem ainda mais indiferença do que inimizade. Dos quase 200 países da Assembleia Geral da ONU, 22 são árabes (que consideram os curdos não um povo, mas um problema para alguns países do grupo), quase 50 são muçulmanos (idem: pois nem sunitas nem xiitas reconhecem a forma de islã praticada pelos curdos), outros tantos são ditaduras, como a maioria dos países africanos, que têm laços e afinidades mais ou menos fortes com os governos fortes dos países árabes e islâmicos. Enquanto o Conselho de Segurança tem, entre seus cinco membros com poder de veto, dois aliados de muitos países árabes e/ou muçulmanos: China e, principalmente, Rússia, que apóiam, entre outros, as pretensões armamentistas do Irã, um dos países com grande minoria curda e fortemente antiocidental, além de particularmente antiamericano. A ONU não se move ou se comove pelos curdos.

 

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Num mundo saturado de grandes e crescentes problemas econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais, os cerca de 35 milhões de curdos parecem condenados a ser o grande pária da história moderna. Eles são mestres da sobrevivência e da resistência. Mas nunca puderam ser sequer aprendizes da paz.

 

[1]“Turquia e Rússia iniciam patrulhas conjuntas no nordeste da Síria” (<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2019/11/01/turquia-e-russia-iniciam-patrulhas-conjuntas-no-nordeste-da-siria.htm>).


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).