Os Estados Unidos e seus aliados declararam guerra ao Afeganistão após os ataques que a Al-Qaeda promoveu em 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center, em Nova Iorque, e ao Pentágono, em Washington. A guerra completa agora oito anos de insucesso.
É a única guerra “legal” em curso, ao contrário da do Iraque – que representou ato de puro arbítrio por parte de George Bush. A Al-Qaeda de Osama Bin Laden está associada aos talibãs, que só puderam tomar o poder naquele país – não custa relembrar – com a derrota da extinta União Soviética, em 1989.
Em 27 de dezembro de 1979, os soviéticos assassinaram o presidente Hafizullah Amin e guindaram ao poder Brabak Karmal, pró-comunista e pró-soviético. As forças anticomunistas dos mujahidin – apoiadas por Estados Unidos, Arábia Saudita, Paquistão e China – derrotaram os soviéticos, já no final da Guerra Fria, e permitiram a ascensão dos talibãs, que se apropriaram da maior parte do território do país. Talibãs, islâmicos, antiocidentais e antiamericanos. O Afeganistão é composto de diversos povos, todos, no entanto, vinculados ao ópio, o que leva o Ocidente a chamá-lo de Narco-Estado, quando lá não há propriamente – e nunca houve – um Estado. A mídia internacional comemora queda de 22% nas áreas de cultivo da droga, no último ano – é mais um pretexto para seguir por lá.
O etnocentrismo norte-americano tenta – por meio de eleições “livres” – implantar uma democracia no país, embora Hamid Karzai (homem dos Estados Unidos) seja acusado de manipular a contagem de votos e forjar sua reeleição. É o Bush afegão. Essas “eleições” afegãs são mais um exemplo patético do “imperialismo dos direitos humanos” dos EUA. Elas servem de cortina de fumaça para atrair os talibãs e matá-los impiedosamente – não que eles não façam o mesmo. Líderes tribais acusam Karzai de ter falsificado cerca de 23 mil votos.
As incertezas aumentam. O general Stanley McChrystal, chefe das operações militares, afirmou claramente que a estratégia de Barack Obama para a guerra está equivocada. Ou seja, a guerra como negócio segue sem um fim tangível, mas com pequenas alterações táticas.
O Afeganistão vive uma experiência de anarquia e guerra desde 1979 – é inviável como um Estado nos moldes ocidentais. A presença norte-americana revive as três guerras anglo-afegãs, que atravessaram o século XIX e alcançaram o início do século XX. O país é uma terra de ninguém, palco de disputas geopolíticas – açodadas – entre potências. Tecnicamente, não havia necessidade de os Estados Unidos invadirem esse país em represália aos ataques de 11 de setembro de 2001: tratava-se de caso de inteligência. É um erro Barack Obama insistir nessa guerra “legal”.
Ou dá ou desce
Quase todos tratam a questão afegã como geopolítica, o que lhe confere um perfil “alto”. Quero falar de um aspecto “baixo”, sempre descuidado pela mídia e pelos “especialistas”: a intensa violação dos direitos humanos por parte de todos os atores que encenam esse conflito.
Hamid Karzai – financiado pela comunidade internacional que combate o integralismo talibã – promulgou, em acerto eleitoral com líderes de determinada tribo, uma nova lei que atribui ainda mais poderes ao homem em detrimento da mulher. A lei permite que os homens da etnia hazara castiguem suas mulheres com supressão de alimentos, caso elas se recusem a qualquer solicitação sexual. É a despenalização do estupro e do atentado violento ao pudor. O mulá Mohakik Zada afirmou a Ramón Lobo, do jornal El País, que “a norma se destina a proteger a mulher, outorgando-lhe muitos direitos” e que “a proibição de sair de casa sem permissão do marido já está no Código Civil”. Zada prossegue: “O homem se compromete a manter a mulher depois que ela sai da casa paterna, por isso é lógico que tenha o direito de permitir ou não que ela saia para a rua”.
O Corão regula a obediência da mulher no tamkeen. Caso o marido esteja irritado com as recusas sexuais, pode deixar de falar com a esposa, separar as camas, avisá-la solenemente de sua contrariedade e, ao cabo, “golpeá-la suavemente”. A mulher só pode se recusar ao sexo no período de menstruação ou quando estiver doente, de forma comprovada. Para bater o talibã, é isso que a comunidade internacional apoia.
Segundo Ramón Lobo, no Afeganistão oito em cada dez mulheres sofrem violência doméstica e 60% são obrigadas a se casarem antes dos 18 anos. As tradições medievais as abandonam à sorte de “maridos” brutalizados pelas guerras contínuas. Hamid Karzai as penaliza para – em nome da “democracia” – vencer as eleições. A deputada afegã Malalai Joya, 35 anos, expulsa de seu partido, está sob ameaça de morte, embora não haja previsão legal para tanto. No caso dela, como anota Lobo, a burca é um seguro de vida. Joya diz sem meias palavras: “A maioria dos políticos e dos parlamentares são narcotraficantes e criminosos de guerra”.
Tamkeen é o direito masculino de satisfazer a libido – agora, com estupro e atentado violento ao pudor despenalizados por Karzai para os hazara. Essa é a revolução que as forças aliadas levaram ao Afeganistão. A deputada Joya finaliza: “Nada mudou desde a queda dos talibãs e a chegada das forças estrangeiras”.
O Afeganistão tornou-se um labirinto, bastante lucrativo, para vendedores de armas, diplomatas subempregados, mercenários, politicólogos e traficantes de drogas, órgãos, animais. Tornou-se um paradigma radicalizado de violação de direitos humanos e violação do meio ambiente. Como lembra Simon Jenkins, é “filantropia à distância”, para o cinismo ocidental.