O escritor paquistanês Tariq Ali tachou, em entrevista recente (O Estado de S. Paulo, 1º de novembro de 2009) Barack Obama de “presidente fraco”, “aquém das dimensões da crise que enfrenta”. O paquistanês sintetiza a opinião de muitos ao redor do mundo. Ele incorre em precipitação. Como explica Sam Tanenhaus, editor do The New York Times, no excelente e recém-lançado livro The Death of Conservatism (Random House, 2009), os democratas lastreiam-se na ideia de consenso, um território comum complexo e construído, que implica, fatalmente, compromisso de todos em torno das ações. Já os republicanos apoiam-se na ortodoxia, na redução de todos os pontos de vista a um só, que se ergue à condição de regra, de modus vivendi. Prossegue Tanenhaus, afirmando que os conservadores subordinam o ato de governar à política e que os liberais administram a partir de um processo de interação entre governo e política. Escreveu-se muito sobre o “suprapartidarismo” de Obama antes de sua posse. Ele estava e está apenas retomando uma das características dos democratas e dos liberais. O mesmo Tanenhaus relembra que Hannah Arendt, em Sobre a revolução, contrastava os modelos americano e francês de revolução – o primeiro, conservador ao pregar uma tradição política normativa, de aceitação do que foi feito pelo governante anterior, preferindo o estável ao novo; o segundo, prospectivo, pregando a mudança de relação entre os homens e a política: os direitos do homem eram inerentes e naturais e maiores que o status quo político. Para Arendt, o Bill of Rights (1789) foi pensado para instituir controles restritivos ao poder político, enquanto na França prevaleceu o “despotismo esclarecido” de Robespierre (1758-1794), que recusava a “ordem legal” anterior e levou o rei Luís XVI à guilhotina. Para ela, o Reino do Terror imposto por Robespierre opunha-se à liberdade e à equidade.
O governo Obama pretende resgatar os valores da lei e da estabilidade, desprezados pelos republicanos, sobretudo por George W. Bush, que, de acordo com o mencionado editor do The New York Times, agiu como Robespierre, traindo o conservadorismo moderado da tradição americana, em seu cesarismo bélico, que prolongou a Guerra Fria, não na luta contra o “mundo islâmico”. Obama tenta repristinar as ideias de Edmund Burke (1729-1797), de que a história é feita de um longo estoque de tradições, de prudência e de moral, incorporadas nos usos e costumes e não em “elaborações intelectuais”, como a guerra contra o terror. Não à toa Burke se opôs à Revolução Francesa. No entanto, Obama falha – creio – ao esquivar-se diante dos crimes praticados por Bush e Dick Cheney, em seu próprio intento de legalidade.
A presidência de Obama abandona o cesarismo de Bush, tarefa complexa tanto interna quanto externamente, o que o leva a ser considerado “fraco”. Um presidente forte libera, seja no Brasil (Luiz Inácio Lula da Silva ou Getulio Vargas) ou nos Estados Unidos, o cidadão de seus compromissos com a esfera pública. O ex-senador de Illinois almeja o contrário. Novus ordo seculorum, ou nova ordem para o século dos séculos, o lema dos Founding Fathers, expressa resumidamente o excepcionalismo americano que adquire nova feição a cada presidente, e agora, com Obama, que não quer abrir mão dele, uma feição ambígua e dramática. Internamente ele enfrenta uma depressão. Os Estados Unidos tecnicamente saíram da recessão, mas, à custa de um desemprego jamais visto, ou seja, saíram ainda por meio de uma política econômica neoliberal, que não é exatamente a de Obama, que, por essa razão, insiste na aprovação do plano universal de saúde, entre outras medidas sociais. A reforma na saúde vai incluir sob proteção 47 milhões dos hoje excluídos.
Obama é mesmo um presidente fraco? Trago à tona o dado de que Ronald Reagan iniciou seu mandato com 51% de apoio. E George W. Bush elegeu-se com 38% dos votos populares. Desde Franklin Delano Roosevelt, o Estado nos Estados Unidos é gigantesco e deficitário. O pregação de Estado mínimo serviu mais à concentração de renda, por meio de corte de impostos, implementados por Ronald Reagan e os Bush, e à falta de fiscalização de Wall Street, do que à desregulamentação propriamente dita. Obama propõe agora mais fiscalização para a indústria das finanças. O Consenso de Washington (que comemora 20 anos em 2009) serviu mais como instrumento de transferência de riquezas de países pobres para os Estados Unidos do que aos próprios Estados Unidos, haja vista a manutenção de um gigantesco orçamento militar mesmo nos governos Reagan e Clinton, provocando déficits públicos no primeiro caso. Segundo Tanenhaus, desde o New Deal rooseveltiano nenhum presidente reduziu o tamanho do Estado, porque os “eleitores não o querem reduzido, e sim o querem grande, mas ‘grande’ para eles”. William Bucley Jr. definiu o que seria – até hoje – o modus operandi dos republicanos: “A retórica é o principal instrumento e precede a ação política”. Decorre daí a violência verbal dos opositores de Obama, que, no entanto, obtém vitórias no Congresso e, em parte, na política externa.
O excepcionalismo americano na versão Obama é realista, o realismo de uma “era de escassez”, em que se deverá produzir e consumir apenas o necessário. Trata-se de mais um complicador para uma sociedade que gasta muito e faz pouco dinheiro. O país não tem recursos para fazer duas guerras e enfrentar uma depressão econômica – legado de seu antecessor. A guerra contra o Afeganistão é considerada por eles e pela comunidade internacional “under the rules of the law” – legítima defesa a um ataque (os de 11 de setembro de 2001 praticados por Osama bin Laden com o apoio dos talebans). O governo Obama quer encerrar a guerra contra o Iraque. Para tanto, adota estratégia parecida com a de Richard Nixon em relação à Guerra do Vietnã. Promove uma distensão com a Rússia (o fim do projeto dos escudos antimísseis na Polônia) e uma aproximação maior com a China.
A tática da guerra no Afeganistão vai mudar. Os americanos não desejam ser vistos – como são hoje – como invasores, ocupantes ilegítimos de um território – o que demonstra o desmonte do cesarismo bushiano – e que serve de pretexto à resistência dos talebans, que a utilizam para aumentar a produção de ópio e heroína. Eles já não estão mais muito ligados a Bin Laden. A economista italiana Loretta Napoleoni observa: “Hoje os seguidores de mulá Omar não combatem para proteger a Al Qaeda, mas para defender a fonte de sua repentina riqueza, advinda do tráfico bem-sucedido”. Robert Pape, professor de ciência política da Universidade de Chicago, a cidade de Obama, propõe em recente artigo estampado no The New York Times (15 de outubro de 2009) que de terrestre a guerra se transforme em aérea e naval. Segundo o escritor árabe Jean-Pierre Filiu, a Al Qaeda perdeu quase todo o seu espaço de manobra, pois “não tem bases e não controla nenhum território”. Todavia, em virtude dos ataques de 11 de setembro de 2001, e por outras questões geopolíticas, os americanos – conforme a proposta de Pape – querem se transformar claramente em aliados dos afegãos, evitando a pecha de “invasores”. Maneira de não abandonar a guerra. Outubro de 2009 foi o pior mês dos nove anos de guerra, com 55 soldados mortos. E centenas de feridos. Há um cansaço interno geral no que se refere a essa guerra sem saída.
Obama ainda não fechou Guantánamo, que deveria ser devolvida a Cuba. E ainda não encontrou os instrumentos legais, judiciais, para julgar os presos de guerra, embora tenha avançado neste ponto, visando a restaurar a legalidade em seu país, embora sem responsabilizar a dupla Bush e Cheney. O conceito de governar a partir de consensos, por consequência, levou Obama a retomar o multilateralismo nas relações internacionais. Ele quer produzir consensos e alianças, como, por exemplo, repassar a responsabilidade de defesa da Europa para a União Europeia, esvaziando relativamente a OTAN. Imagina os Estados Unidos mais como um país do Pacífico e não só do Atlântico. A prioridade do atual governo americano é estreitar relações com a China nos planos econômico e de mudanças climáticas e no campo da defesa: só Pequim pode conter a Coreia do Norte. A distensão com a Rússia, como já anotei, permite solucionar a tópica iraniana (o Brasil não tem papel nenhum nisso, apesar da insistência do governo brasileiro, pois não é potência militar e nuclear) e principalmente a guerra no Afeganistão – garantindo fornecimento de gás e petróleo e – quem sabe – até o fim da própria guerra com a vitória sobre os talebans.
No plano interno, até agora Obama sofre derrotas circunstancias (dois governadores republicanos se elegeram recentemente), que de modo algum definem negativamente seu futuro político. A esquerda de seu partido o acusa de “olímpico”, “ególatra”, de querer estar sempre acima das disputas e acima do país. Como disse, faz parte da tradição liberal a busca do consenso, de um governo “conectado” com toda a sociedade. Ela ainda se vê traída em alguns pontos de honra, como o pronto restabelecimento da ordem democrática anterior a Bush. Traída pelo resgate imediato de Wall Street em desfavor de Main Street. O economista Paul Samuelson, entretanto, afirma: “A equipe econômica de Obama vai bem. Se John McCain tivesse vencido as eleições, os americanos de classe média, média baixa e pobres estariam em situação bem pior”. McCain encarna o cesarismo militar excepcionalista. Para Samuelson, Obama evitou o colapso do sistema financeiro e agora reativa, com rigor, a fiscalização sobre o capitalismo “desregulado” (corrupto) de Reagan e dos Bush, afastando-se, de modo prudente, das corporações. Talvez Obama não tenha ainda aprendido a falar com os “individualistas ásperos” da América, o que não significa que haja qualquer espaço significativo para a oposição republicana, que faz mais barulho do que estragos.
A insistência de Israel em prosseguir em seu projeto de anexação dos territórios palestinos, o que ocorre todos os dias, pode liquidar o governo Obama, que – ambíguo em relação à sua própria política externa – não impõe nenhuma sanção ao governo de Tel Aviv. O professor Norman Birnbaum prega o fim do apoio militar a Israel, sob pena de toda a política de distensão fracassar. Vai mais longe: pede a renúncia da hegemonia americana no Oriente Médio. Ele mesmo, catedrático emérito da Faculdade de Direito de Georgetown, assinala que, entretanto, se o projeto de reforma da saúde de Obama, aprovado na Câmara dos Deputados, não o for pelo Senado, no qual o presidente conta, em tese, com a maioria de 60 senadores, seu governo pode seguir à deriva, pode fracassar. Os europeus e latino-americanos entenderam o “Yes, we can change” em uma acepção robespierriana, quando, na verdade, o candidato pregava uma volta ao Bill of Rights – um governo de estabilidade, baseado na lei e no consenso.
Fotos: Linh Dinh