Entrevista de Francisco Foot Hardman a Sibila
Em A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna, Foot Hardman analisa, através de 20 ensaios, as experiências vividas por Euclides da Cunha em sua viagem à Amazônia, na tentativa de registrar aspectos relacionados às riquezas naturais e aos habitantes daquela região. Já em Euclides da Cunha: Poesia reunida, o professor da Unicamp, em parceria com Leopoldo Bernucci, reúne cerca de 130 poemas produzidos pelo escritor brasileiro, alguns deles inéditos. “Penso que os dois livros resumem uma parte considerável da minha trajetória em pesquisas sobre Euclides da Cunha e sobre a literatura moderna”, afirma Foot Hardman. Na entrevista que se segue, ele revela alguns dados sobre os volumes e reflete a propósito da atualidade dos escritos euclidianos.
Sibila: Decorridos 100 anos da morte de Euclides da Cunha ainda é possível fazer novas descobertas acerca do trabalho dele?
FFH: Penso que sim. No caso do livro Euclides da Cunha: Poesia reunida, que organizei com o professor Leopoldo Bernucci, da Universidade da Califórnia, trabalho que resulta de dez anos de pesquisas, boa parte da produção reunida permanecia inédita. Somente no Brasil talvez seja possível ter um dos escritores mais importantes da literatura do país, sob qualquer ângulo que se queira considerar, que tenha ainda parte da sua obra relativamente desconhecida, como é o caso da poesia de Euclides. Essa poesia tem valor? Tem, como espero que os leitores possam agora examinar. Até hoje a maior reunião das poesias de Euclides não passava de 40 poemas. Esse novo conjunto, de cerca de 130 poemas, produz um efeito de sentido muito importante. Não apenas sobre esse exercício da poesia, mas também das relações da poesia com a prosa. A poesia reunida produz, no seu conjunto, uma série de questões interessantes sobre a obra de Euclides, mas também sobre a literatura brasileira.
Sibila: E no caso de A vingança da Hileia?
FFH: Esse livro talvez revele outra dimensão da obra de Euclides, que possivelmente foi ofuscada pelo sucesso estrondoso de Os sertões, sua obra-prima. Euclides fez um exame e uma representação literária muito interessantes sobre a Amazônia. O seu projeto literário pretendia, como ele dizia, ser uma “segunda vingança contra o deserto”, que acabou por não se completar como tal, nos termos da narrativa de Os sertões. Mas é justamente nessa incompletude que residem alguns dos problemas mais interessantes da literatura de Euclides e da literatura moderna no Brasil, ainda na primeira década do século 20. Lembrando que Euclides fez uma longa viagem à Amazônia em uma missão político-diplomática a mando do Ministério das Relações Exteriores, ele foi nomeado pelo então ministro da Pasta, o Barão do Rio Branco, em 1905. Euclides produziu vários escritos, um pouco antes e um pouco depois, que foram reunidos apenas em parte no livro Contrastes e confrontos e em sua obra póstuma, intitulada À margem da história. Ambos apresentam uma estrutura mais fragmentária que a de Os sertões. Isso é muito interessante examinar, pois mostra as variações da sua prosa com relação ao desejo de conhecer e representar literariamente a Amazônia.
Sibila: Em seus escritos, Euclides demonstra preocupação com a degradação da Amazônia?
FFH: Euclides tinha a consciência, rara naquele momento, de que na Amazônia se localizava o futuro do país e do mundo. A visão dele era de que o destino do planeta estava relacionado à região. Isso nos traz uma dimensão de atualidade muito grande. Ele coloca, de forma precoce, algumas das questões que são debatidas até hoje e que são de preocupação mundial, vide a Conferência de Copenhague, a ser realizada no mês que vem. No caso dos textos de Euclides, existe mais uma vez a afirmação do nacionalismo, mas um nacionalismo que se deriva para uma perspectiva internacional, visto que a Amazônia está presente em vários países.
Sibila: Para além das riquezas naturais, ele tratou também em seus textos da gente da Amazônia?
FFH: Em Euclides, encontramos muitas contradições. Ele esteve atento ao extermínio das populações indígenas, ao que ele denominou, em uma espécie de visão crítica do processo de colonização, “de brutalidade antiga”. Ele percebe o caráter violento do processo de ocupação da área e a destruição crescente das populações autóctones. Ao mesmo tempo, fala da instabilidade da ocupação amazônica em função das características da natureza, e das dificuldades de fixação do homem amazônico. Nos escritos amazônicos aparece de forma mais aguda, mais até do que nos escritos sobre os sertões baianos, a consciência social acerca da exploração do trabalho dos seringueiros pelos seringalistas. Ele aponta isso de forma muito aguda em alguns escritos, e propõe uma espécie de legislação trabalhista pioneira, preocupação que só viria a tomar corpo no país na década de 1930. Naquele momento, Euclides estava muito próximo de uma perspectiva que poderíamos chamar de social-democrata ou de um socialismo reformista. A partir dos contatos que teve em São José do Rio Pardo com Francisco Escobar, que era um jurista e militante socialista, Euclides se aproximou dessa perspectiva.
Sibila: O olhar arguto sobre a questão social está presente tanto na prosa quanto na poesia de Euclides?
FFH: Penso que sim. Na poesia, por exemplo, vamos encontrar coisas interessantes. Ele começa a escrever poesia em 1883, com 17 anos. São os escritos mais antigos dele. Isso por si só tem um significado interessante. Na esteira de um romantismo mais social, visto que por trás dele havia a presença de escritores como Castro Alves, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Victor Hugo, Byron etc., existe uma perspectiva revolucionária. A sua poesia se vincula, por exemplo, a temas da Revolução Francesa. Vários personagens da Revolução Francesa são eleitos por ele para fazer uma espécie de figuração, em uma esteira muito próxima da visão poética de Victor Hugo. Em seus poemas também são encontrados temas relacionados ao anticlericalismo. Ao mesmo tempo, há a defesa de um cristianismo primitivo, como ato revolucionário, que depois viria a se perder com a institucionalização da Igreja. Ele promove a junção desse cristianismo primitivo com a Revolução Francesa como se fosse um segundo grande momento de transformação social da humanidade.
Sibila: A obra de Euclides da Cunha, notadamente Os sertões, foi traduzida para diversos idiomas. É possível dizer que ele é um escritor internacional?
FFH: Euclides é internacional e internacionalista, mas não é globalizado, na linha de um Paulo Coelho. Paulo Coelho é uma espécie de massificação de um gosto pela autoajuda, um mistificador e mistificatório que se tornou globalizado. É um fenômeno que talvez tenha menos interesse para a crítica literária e mais para a sociologia da cultura e até para a economia. Euclides foi traduzido inicialmente para o espanhol, em um trabalho apócrifo que surgiu em Buenos Aires. Depois, foi traduzido para o mundo hispano-americano. Também foi traduzido para inglês, francês, holandês e alemão. E uma curiosidade: Os sertões teve uma versão em chinês, em 1952, sob influência da revolução ocorrida no país.
Sibila: Além de grande escritor, Euclides da Cunha foi um personagem interessantíssimo, não? Um homem de múltiplas atividades…
FFH: Ele era engenheiro militar. Naquele tempo, a Escola Militar era uma das principais em formação técnica e humanista. Tinha em seu currículo disciplinas como história, filosofia etc., em uma perspectiva positivista, própria da época. Euclides foi republicano de primeira hora. Em 1989 foi proclamada a República. Em 1894 pediu para sair do Exército, porque estava em conflito com a alta cúpula da República, principalmente com os adeptos do florianismo. Ele decide então dedicar-se à engenharia civil, como engenheiro de obras públicas do estado de São Paulo. Por conta das suas atividades, morou em São José do Rio Pardo, Lorena, Guarujá, São Paulo e São Carlos. Depois retornou ao Rio de Janeiro, estado onde nasceu, e foi nomeado como professor do Colégio Pedro II, no qual lecionou por poucas semanas, em razão da sua morte.
Os livros
Título: A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna
Autor: Francisco Foot Hardman
Editora: Editora da Unesp
Número de páginas: 378
Título: Euclides da Cunha: Poesia reunida
Organizadores: Leopoldo Bernucci e Francisco Foot Hardman
Editora: Editora da Unesp
Número de páginas: 496
Texto de Franscisco Foot Hardman, na abertura do livro A vingança da Hileia, publicado por Editora Unesp.
NOTA PRÉVIA
Se a Amazônia, hoje mais que nunca, torna-se um espaço-chave para o prosseguimento da aventura humana no planeta Terra, e com ela todas as formas da biodiversidade cuja evolução desencadeou e, depois, acompanhou a da nossa espécie, a consciência do processo, no entanto, muito antes da dramaticidade que alcançou, teve vários momentos de elaboração e crítica, na história da ciência e da cultura, em particular na chamada literatura dos viajantes, dos cronistas coloniais aos naturalistas românticos, e destes aos primeiros ficcionistas. Todos e cada um, a seu modo, tentaram representar o sublime daquela paisagem, em seu desmesuramento de real-maravilhoso que guarda igualmente os segredos do deslumbre e do horror. Euclides da Cunha, depois do sucesso estrondoso de sua narrativa da tragédia sertaneja de Canudos, foi um dos primeiros escritores latino-americanos modernos a encarar o desafio de “escrever a Amazônia”. Sua prosa amazônica, inconclusa, testemunha alguns dos dilemas daquela geração de literatos e, também, de uma história literária que se pretendia constituir como nacional e, para tanto, devia abrigar dispositivos incorporadores, ao imaginário do signo escrito, dos pontos extremos do território. Entre os dilemas aparentes e contraditórios, está o da ausência de epopeia, pois ali se trata, antes, na vertigem do vazio, de como fazer a história, de como narrá-la, de como fugir à “miniatura trágica do caos”. De outro modo, o desenho do “nacional” vai adquirindo contornos espectrais, por se tratar de região internacional, no triplo sentido de abranger área pertinente a vários Estados-nações; por ser, além disso, a ampla planície de povos indígenas exterminados e insepultos; e por abrigar, desde há muito e cada vez mais, a presença de projetos econômicos predatórios e voltados ao exterior, em antessala cobiçada da globalização.
Decidi tomar Euclides da Cunha e a Amazônia como motivos desencadeadores deste volume de ensaios, porque são suficientemente abrangentes e repletos de consequências para a história da modernidade literária entre nós. Reuni ensaios que, embora guardando respectiva autonomia formal e temática, dialogam entre si, como contrapontos ou desdobramentos, sem apego à lineariaridade de cronologias ou geografias, mas imbuídos dos efeitos de sentido que certa composição e sequência, e não outras, podem produzir na pesquisa sobre os deslocamentos do trágico-moderno nas guerras culturais contemporâneas e no debate que lhes corresponde. Efeitos que puderam até mesmo, por insuspeitados, surpreender seu autor, ao longo da recolha dos textos, sua revisão integral e muitas reescrituras em relação a versões passadas. A seleção inclui textos escritos ao longo dessas duas décadas e que foram, entre outras aparições, partes constitutivas do corpus da tese de livredocência (Brutalidade antiga e outras passagens) e do conjunto de trabalhos apresentados no concurso de titularidade. Mas outro punhado de capítulos compõe-se de textos mais recentes, produzidos nos últimos cinco anos.
A docência fez parte dessa trajetória, muitas vezes imprimindo dinâmica e estímulo à pesquisa e à escrita. Na orientação de pós-graduandos do programa de teoria e história literária da Unicamp, vários trabalhos que dirigi interagem, em seus resultados, mais direta ou indiretamente, com perspectivas histórico-literárias e críticas aqui adotadas. Entre as dissertações e teses feitas nesta década, em boa parte inéditas, mas que possuem afinidades temáticas e teóricas com os roteiros cá traçados, lembro a organização das memórias inéditas de Alberto Rangel, iniciada por Fabiana Tonin (2009); o levantamento de uma história e historiografia literárias borradas do cânone nacional no Maranhão do século XIX, por Ricardo Ferreira Martins (2009); a recuperação do “lamento dos oprimidos” na poesia de Augusto dos Anjos, por Maria Olívia Garcia Arruda (2009); o estudo de Marcos Aparecido Lopes sobre a recepção crítica problemática da obra de Coelho Neto (1997); a pesquisa de Maria Rita Palmeira sobre as viagens de Benjamin Péret ao Brasil e seus escritos (2000); o trabalho de Celdon Fritzen sobre mitos e luzes nas representações da Amazônia (2000); a extensa investigação de Bruno Gomide sobre a história do romance russo no Brasil (2004); a leitura de Alexandre Aparecido Lima sobre o tema da loucura em Araripe Jr. (2004); o inventário de Marinilce Coelho sobre a modernidade literária em Belém (2005); a tese de Luiz Silva sobre o “sujeito étnico” em Cruz e Sousa e Lima Barreto (2005); e a análise de Elías Hernández Inostroza sobre a literatura de “pontos extremos” em Dalcídio Jurandir e no chileno Francisco Coleane (2005).
Escolhido o leitmotiv, era preciso compor as passagens a atravessar, não como setas de mão única, mas como recortes temáticos e correspondências textuais, que se insinuam de forma latente num bloco de ensaios, emergem à primeira cena em outro e voltam em movimento circular ao motivo inicial.
Nenhuma passagem pretende ser conclusiva, umas se remetem às outras, embora o elenco de imagens-guias que nomeia cada uma delas é fortemente sugestivo, como para justificar os agrupamentos e sequências em que se dispuseram os textos. E estes igualmente retomam imagens e comutam posições, entre afinidades temáticas e distâncias espaço-temporais.
Assim, de tal maneira, na “primeira passagem”, a prosa perdida na Amazônia de Euclides vincula-se criticamente a linhagens literárias diversas, que vão da literatura dos viajantes ao modernismo hispano-americano, do romantismo ao naturalismo regionalista, de Alberto Rangel a José Eustasio Rivera, a Raul Bopp, Mário de Andrade e Raimundo Morais, sempre na ótica dos impasses da representação daquele mundo. Mas o autor sabia que estava tratando de certo limite do ilimitado, por isso a questão dos liames entre literatura e infinito perpassa sua visão, que se substancializa neste que é dos seus textos mais enigmáticos, “Estrelas indecifráveis”, essa cosmogonia interrompida com que encerrava, sintomaticamente, como seção de capítulo único, seu livro À margem da história. A “eternidade pelos astros” se desdobrava como ponto de fuga de um real incontrolável e de um presente ameaçador.
Esse “paraíso perdido” euclidiano funciona como metadiscurso da poética das ruínas em Os sertões. Nesse sentido, suas notações em caderno manuscrito de versos de Byron ou de Leopardi poderiam indicar essa busca fragmentária do infinito. A “segunda passagem” avança essa indagação, já sob o signo da tragédia histórica que tem no massacre de Canudos seu ponto nodal de concentração dramática, mas também de inflexão poética. No plano pessoal, a tragédia familiar tem na correspondência pai-filho um momento alto, que precede a queda. Se Canudos traduz a irracionalidade imemorial do sertão “insular”, é evidente que isso não para aí. As contaminações entre violência rural e urbana dominam o cotidiano brasileiro contemporâneo. A favela se universalizou, dentro e fora do Brasil. E o estado de exceção, idem. Há mais de um século, porém, no utopismo socialista do 1900 imaginado por Euclides e Francisco Escobar, nem todos os dados haviam sido lançados.
Haveria que procurar afinidades desse poeta das ruínas entre seus pares, o dos “antigos modernistas”. Chegamos à “terceira passagem”, em que desfilam companheiros de viagem não só geracional, mas estética: Raul Pompéia, Silva Jardim, Alberto Rangel, Augusto dos Anjos, Sousândrade, prosadores, publicistas ou poetas, todos comungam desse imaginário vulcânico, que é trágico- moderno em seu modo e em sua desilusão, e que se projeta em outras “poéticas da extinção”, de que a literatura modernista ocidental nos oferece vários exemplos, as de Laura Riding e Stefan Zweig, entre outras, as que mais me atraíram aqui, nas possíveis linhas cruzadas com as ruínas euclidianas. Se no Brasil a pátria republicana logo redundou em orfandade e dissidência, no mundo do século XX, da “era dos extremos” e das “guerras e revoluções”, as transgressões da linguagem oscilarão entre o elíptico e o político, entre a contenção e o excesso, entre a pausa e a repetição, entre artifício e melancolia.
Por isso, na “quarta passagem”, desatam-se vários elos entre o Brasil moderno e os limites do espaço literário num mundo dominado pelas técnicas da redundância produtivista, do culto à sua inovação, do império mortal da moda e das “figuras deslocadas entre saudades e solidões”. A questão nacional revela seus impasses irredutíveis. Tanto na ideia da história (e de sua escrita) como deslocamento, quanto nessa geografia literária dos pontos extremos, das ruínas invisíveis na selva, instaura-se a imagem do Homus infimus, cara a Augusto dos Anjos, mas ainda certamente pertinente ao universo tantas vezes esvaziado de sentido e de populações em Euclides da Cunha. A volta do “sonho das passagens”, que se inspira no cosmopolitismo anárquico de Cortázar, é o retorno ao reino absoluto da ficção poética, viagem compenetrada de sua finitude fragmentária, jogo sem volta no tabuleiro da memória.
Euclides sonhava com uma linguagem que sintetizasse as verdades da ciência e da arte. A partir da expedição ao Alto Purus, ensaiou esse discurso, que não se completou. Manuscritos aparentemente se perderam. Nenhuma garrafa deu sinal, até aqui, de que seu sonho sobreviva. Mas é aí, nesse intervalo abissal, que sua melhor literatura nasce e, com ela, sua modernidade mais radical. A que autorreflete, desde sempre, seus hiatos e fraturas, porque se reconhece, mesmo na selva distante, plenamente em nosso mundo. E segue o traçado enigmático de astros volúveis, com o desejo do nome e a fome célere da poesia.
São Paulo, noite de São João, 2009.
Página vazia 30
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra despiedada e aterradora,
Certo não pode ter uma sonora
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa fi gurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.
Cedestes-me esta página, a nobreza
Da vossa alma iludiu-vos, não previstes
Que quem mais tarde nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?!
Bahia – 14 de outubro de 97
[Se acaso uma alma se fotografasse] [I]
Se acaso uma alma se fotografasse
De modo que nos mesmos negativos
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;
E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos… Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos.
Poeta! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando, deste grupo bem no meio,
Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente
Destes sujeitos, é precisamente
O mais triste, o mais pálido e o mais feio…12
[Manaus, 2-2-905]
Cartel
(aos padres)1
Ó pálidos heróis! ó pálidos atletas.
Que c’o a razão sondais a profundez dos céus
Enquanto do existir por entre o Saara enorme
Embalde procurais essa miragem – Deus!…
A postos! é chegado o dia do combate!
– As frontes levantai do seio das soidões –
E as nossas armas vede – os cantos, as ideias –
E vede os arsenais – os cér’bros, corações!…
De pé!… a hora soa — esplêndida a Ciência
Com esse elo – a ideia – as mentes prende à luz
E ateia já, fatal, a rubra labareda2
Que vai, de pé heróis! – queimar a vossa Cruz!
Vos pesa sobre a fronte um passado de sangue…
– A vossa negra veste a muita alma envolveu…3
Vós tendes que pagar – ah! dívidas tremendas
Ao mundo João Huss – à Ciência – Galileu
Depois… o séc’lo expira e… padres! precisamos
Da Ciência c’o archote intérmino, fatal
A vós incendiar, aos báculos e às mitras
Afim de iluminar-lhe o grande funeral
Ó vós que a fl or da Crença esquálidos regais
C’o as lágrimas cruéis dos mártires letais
Vós que tentais abrir um santuário à Cruz
Da multidão no seio – a golpe de punhais
– O passado trazeis de rastro a vossos pés! –
Pois bem! se vai mudar – o gemer em rugir –
E a lágrima – em lava!… ó pálidos heróis –
De pé! de pé! de pé!… – queremos o porvir!…
1 Janeiro 1883