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Ideologismo e ignorância perpetuam a mesmice na recepção da poesia

A opinião denuncia no mínimo uma forma sutil de covardia intelectual. Pois se Bense ― supondo que tenha sido mesmo uma impostura ― só mereceu estar na ordem do dia do pensamento estético das últimas décadas mercê da militância concretista, e, além do mais, sem que ninguém demonstrasse peito suficiente para se contrapor a isto, mais indigente se revela ou se revelaria, então, o establishment literário e cultural do período.

O argumento do crítico desconsidera um traço de extrema importância do movimento da Poesia Concreta, a saber, junto aos importantes poemas legados pelo movimento, muitos dos quais já incorporados, inclusive, ao acervo poético das últimas décadas, consta o repertório teórico-crítico trazido pelos “trigênios vocalistas”, para o nosso convívio desde então. Alguns, levando a efeito uma espécie de fogo amigo, consideram essa herança ainda mais significativa do que a própria obra dos representantes da Poesia Concreta.

Na virada do século, os veículos de imprensa se especializaram – num clichê típico – em fazer listas dos “dez mais” do que quer que fosse. Os suplementos culturais apresentaram suas listas dos melhores poemas do século passado. Pois bem, para a insatisfação dos devotos da poesia tipográfico-sentimental, em cada lista que se publicava, aqui e ali, entre os indicados na categoria, havia eventualmente dois ou três espécimes da Poesia Concreta. Certo, isto não cancela, de modo algum, a discussão no sentido em que estaríamos diante de um triunfo da Poesia Concreta, mas ao menos aponta na direção da diversidade do cânone que, por força de debates mais elevados, soube incorporar ao seu acervo artefatos de uma “antitradição”.

Há alguns anos, num evento literário em Florianópolis, participei de um debate ao lado do prosador Wilson Bueno, cujo temperamento — menos histriônico, é verdade — me lembrou algo do traço canalhismo “cortesão”, daquele que “dança conforme a música”, de Fabrício Carpinejar.  À certa altura da discussão, presenciada, entre outros, por Ricardo Aleixo, o tema da Poesia Concreta caiu na berlinda, e o editor de Nicolau, neste instante, deixou aflorar, com algum recalque a sua viuvez do verso, daquele verso cujo “ciclo histórico”, segundo o manifesto do movimento concreto afirmava — com aquela pegada de matriz oswaldiana para a frase de efeito —, já havia se encerrado. Entre as inconsistências ditas pelo autor de Mar paraguaio a respeito do tema, recordo seu argumento para tentar provar que a Poesia Concreta não rendeu nenhum poema bom de verdade.

Wilson Bueno disse que não tinha na memória ou que jamais conseguira memorizar sequer um poema concreto. O que interessa, segundo sua opinião à época, é que, um poema que não fica na memória do leitor não merece, portanto, o seu crédito, nem merece constar no “florilégio” da tradição. Ali, de imediato, apenas para tornar relativa a afirmação, tomei a palavra para dizer “de memória” alguns poemas concretos. Enfim, do alto de sua presunção, o rei de um olho só da terra escura do portunhol descartou, de plano, a Poesia Concreta, não levando em conta que esta, tanto quanto o legado poético como um todo, é um compósito triádico verbi-voco-visual. Faltou a Bueno a faculdade da memória visual ou fílmica.

No mínimo, toda a arte do cinema mudo também passou em branco para o poeta paranaense; cinema que estabeleceu a pedra mais filosofal que fundamental da gramática cinematográfica calcada na narrativa visual. Para Alfred Hichtcock, o exemplo de cinema ruim seria o filme que mostra personagens falando, ao contrário do cinema bom, que seria aquele em que vemos os personagens pensando. Os compósitos espácio-visuais da Poesia Concreta são como partituras abertas ao leitor-executante que os interpreta na liberdade do seu pensamento. Qualquer bom poema (concreto, ex-concreto, inclusive) põe em ação um pensamento-linguagem.

Em outra direção, deparamos com os defensores obtusos, os eunucos dos “irmãos Campos”. Agora, me deterei, mas não muito, num destes exemplares. No momento, talvez seja o mais ativo ou representativo. Trata-se de Cláudio Daniel. Como crítico, Daniel – ex-orientando do poeta Horácio Costa na USP – se revela um rebarbativo divulgador das investigações ensaísticas de primeira hora do movimento da Poesia Concreta. Esbanja ignorância. Seus artigos (calcados no lugar-comum de que o Brasil é um país sem memória) nunca passaram de ecos avassalados desses textos hoje referidos à exaustão, inclusive dentro dos muros da academia. O tal do Daniel se aplica em jamais ultrapassar os marcos estabelecidos; ele confere, ao contrário, um sentido commodity ao que foi um dia ao menos pique inventivo.

Exemplo: tornou-se o principal “teórico do neobarroco” (copyright de Haroldo de Campos) – conceito, entretanto, questionado por um crítico de primeira plana como João Adolfo Hansen, o que, para o Clown, é indiferente, quiçá ante sua “inteligência geométrica”. Com efeito, Cláudio Daniel vai pisando a mesmidade como se fora contemporâneo dos acontecimentos que serviram de base àquelas reflexões históricas. Assim, e paradoxalmente, escreve com a maior seriedade, com “conhecimento de causa”, sobre ideograma, haikai, make it new poundiano, poesia visual e, óbvio, “neobarroco”.

Se eu não estivesse atento à falta de cultura implicada no revanchismo tardio e na emulação desinteligente de analistas como esses, cujas opiniões, ainda que de passagem, acabo de problematizar, junto com a água suja que sobrara da Poesia Concreta, ainda lançaria pelo ralo, a par da apologia emasculada, além do já mencionado Max Bense, por exemplo, também o imenso poeta-crítico Ezra Pound e suas concepções poéticas; a antropofagia de Oswald de Andrade (que alguns, num gesto de revisão “reaça” do modernismo, pretendem substituir por Cecília Meireles); a prosa musical de James Joyce, a beleza dificílima de A educação pela pedra de João Cabral de Melo Neto etc. De outra parte, tudo isso confirma que, de tempos em tempos, a tarefa crítica nos obriga a dispensar alguma hora rebatendo fanfarronadas que, não fora por uma recepção ainda mais burra e disposta a espichar-lhe os ouvidos, poderiam muito bem ser esquecidas para todo o sempre, ou alfinetadas e engavetadas para o vindouro apetite do pesquisador subvencionado.

Em suma, tanto os “detratores” (mencionados no início dessa peça) e os “apoiadores”, encarnados na figura ligeira e fugaz de Claudio Daniel, mas que poderia ser na de outro qualquer, são inconsistentes farsantes da cena literária, o que perpetua, por entropia, a recepção acrítica, não só da Poesia Concreta, como de toda a poesia de nível.


 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com