Marcio Renato dos Santos: Qual a importância do Lennon letrista? Por que ele é importante como autor de letras?
Régis Bonvicino: John Lennon (1940-1980) é, ao lado de Bob Dylan, o melhor letrista do universo rock and roll em sentido amplo. É, então, com Dylan, o melhor letrista dos últimos 50 anos, provavelmente no mundo todo. Talvez não se possa falar de Lennon, mas de Lennon/McCartney, e talvez se possa falar de Lennon, a sós. Suas letras trabalham com questões fatuais, concretas, com concretude de linguagem, com pequenas narrativas. As letras das canções são abstratas de modo geral, são sentenciosas. Lennon não o é. Dylan não o é. Lennon é minimalista, produz versos curtos, e Dylan opera com frases longas, com versos longos, parece, mas não é também “prosaico”. Mas suas letras são paralelísticas e esse traço os une. Há concepção e há resultado. Pegue a letra de “Give peace a chance” (1969). Lennon inicia com entes relativamente abstratos como “Bagism, Shagism, Dragism, Madism, Ragism, Tagism/ This-ism, that-ism, is-m, is-m, is-m”. Essa abstração é atenuada quando introduz “Bishops and Fishops and Rabbis and Pop eyes/ And bye bye, bye byes” (“Pop eyes” dá o tom irônico), para, ao final, “concretizar” a paz em “Timmy Leary, Rosemary, Tommy Smothers, Bob Dylan, Tommy Cooper, Derek Taylor, Norman Mailer, Allen Ginsberg, Hare Krishna, Hare, Hare Krishna”. É também o nonsense (Hare Krishna soa como um estrangeirismo sem sentido), o humor, que solapa a “seriedade” do conteúdo de “All we are saying is give peace a chance”. A mensagem torna-se ambígua, plurívoca. O processo de Lennon aproxima-se do processo da poesia escrita de alto nível, apesar de ser mesmo letra e não funcionar sem a canção. Ele e Dylan trabalham de modo complexo esse aspecto verbal. Aqui, no Brasil, só um determinado Caetano Veloso (até 1979) fez isso. E é muito, tendo-se em conta o baixíssimo nível desse universo. Entretanto, não sei se os Beatles e ou Dylan serão Mozart, ou seja, não sei quanto tempo há de sobrevivência para seus trabalhos em um patamar muito elevado. Acho que, todavia, vão permanecer, como Cole Porter ou Noel Rosa permaneceram.
MRS:. E o Lennon prosador? O romance Um atrapalho no trabalho, traduzido pelo Paulo Leminski, nos leva a um universo com palavras inventadas, quebra na linearidade narrativa, além de sugerir diálogos com Joyce, Carroll e outros. Gosta do romance do Lennon?
RB: Ele lançou dois livros: In his own write (1964) e A spaniard in the works (1965). O primeiro traz 15 contos, oito poemas, três cenas soltas de peças de teatro, alguns fragmentos inclassificáveis e desenhos. O segundo livro segue a mesma trilha. Faz tempo que os li. Os dois são curiosos por si mesmos e não por estarem filiados a James Joyce, Lewis Carroll e Edward Lear. São livros despretensiosos, com espírito livre, sem busca de reconhecimento literário. Esses livros falam muito dos Beatles que viriam em seguida, mais inventivos, de Pepper, White Album, Abbey Road, discos experimentais, fundantes, paradigmáticos. Não se pode pensar o mundo psicodélico sem Joyce, Carroll, Lear. Ele, o mundo psicodélico, vem da alta cultura. Faz tempo também que li a tradução do Paulo Leminski e não me lembro dela, porque havia lido os livros antes em inglês. Entretanto, Leminski foi um excelente tradutor, de Lennon, de Beckett sobretudo e outros.
MRS: O Lennon parece ser a voz dos Beatles, pois mesmo após o final da banda, ele em carreira solo, seguia fazendo canções com letras relevantes, enquanto o Paul (que assinava as parcerias nos Beatles) seguiu a fazer canções com melodias incríveis, mas sem o discurso forte dos Beatles. Isso seria a prova de que a voz dos Beatles era a voz do Lennon?
RB: Parece mas não é. A voz dos Beatles é Lennon/McCartney. Paul é igualmente brilhante. Quando Charles Manson assassinou, em 1969, Sharon Tate e o casal LaBianca em Los Angeles, ele escreveu na parede, com o sangue das vítimas, “Helter Skelter”** (o título de uma canção de Paul McCartney para os Beatles, no White Album). Esse foi o ponto final da contracultura, da utopia de paz e amor da contracultura, e poucos meses depois os Beatles se extinguiriam, em abril de 1970. Lennon lançou, neste ano, seu melhor trabalho solo, Plastic Ono Band, e tentou ser coerente com seu passado nos discos seguintes, muito mais que McCartney. Entretanto, tem canções bobas, tolas. É desigual como todo grande autor. Só os autores pequenos não são desiguais. Os anos 1960 haviam acabado e, com eles, John Lennon em parte e Paul McCartney em grande parte.
Bob Dylan seguiu e fez coisas ótimas, como Blood on the Tracks. Os Stones “acabaram” em 1972, com Exile on Main Street, embora tenham também feito coisas excepcionais, com menos frequência, depois e sempre. Os Stones têm um período chamado golden years, que vai de 1968 a 1972. Jimi Hendrix e Janis Joplin morreram em 1970. No Brasil, o melhor que se fez, nesse âmbito pop, se fez também no espírito anos 1960 com o Caetano Veloso até Cinema Transcendental, de 1979, como já disse, e com Torquato Neto, que morreu em 1972. Jorge Ben é um caso isolado, que sobreviveu à morte da MPB. O melhor que se produziu na esfera pop, digamos assim, veio dos Beatles, que influenciaram todo mundo. Eles promoveram o encontro da alta cultura, da música concreta e eletrônica, com a cultura popular e projetaram esse resultado em um mundo de massas mais inteligentes que as de hoje. Bob Dylan fez isso também, mas em uma escala menor de experimentação musical. Beatles e Dylan são bem mais que rock. Hendrix igualmente é bem mais que rock. Janis Joplin é insuperável. Os Stones são o melhor que o rock produziu, a partir do rhythm and blues. Depois da queda do muro, em 1989, do muro de Berlim, a arte, que já vinha mal, caiu de uma vez. Ser artista tornou-se uma profissão tão burocrática e anódina quanto qualquer outra. Os resultados tornaram-se produtos customizados, sem caráter crítico – uma arte cooptada, venal ou irrelevante. O desafio hoje é criar rompendo essa barreira. Lennon deixou um legado − contraditoriamente porque os Beatles são campeões de vendas −, deixou um legado artístico, crítico.
O vídeo
http://www.youtube.com/watch?v=I-NRriHlLUk
A letra
Give peace a chance
John Lennon
Ev’rybody’s talkin’ ’bout
Bagism, Shagism, Dragism, Madism, Ragism, Tagism
This-ism, that-ism, ism ism ism
All we are saying is give peace a chance
All we are saying is give peace a chance
(C’mon)
Ev’rybody’s talkin’ ’bout
Minister, Sinister, Banisters and Canisters,
Bishops, Fishops, Rabbis, and Pop Eyes, Bye bye, Bye byes
All we are saying is give peace a chance
All we are saying is give peace a chance
(Let me tell you now)
Ev’rybody’s talkin’ ’bout
Revolution, Evolution, Masturbation, Flagellation, Regulation,
Integrations, mediations, United Nations, congratulations
All we are saying is give peace a chance
All we are saying is give peace a chance
Ev’rybody’s talkin’ ’bout
John and Yoko, Timmy Leary, Rosemary,
Tommy Smothers, Bobby Dylan, Tommy Cooper,
Derek Taylor, Norman Mailer, Alan Ginsberg, Hare Krishna
Hare Hare Krishna
All we are saying is give peace a chance
All we are saying is give peace a chance
O manuscrito: uma hipótese de poema
O manuscrito da letra “Give Peace a chance” (1969) me autoriza a dizer que Lennon a pensou tanto como letra quanto como poema visual. No manuscrito, ele cria cinco possibilidades de leitura para, no caso, o poema. Cada coluna se constitui, digamos, em estrofes atípicas; na primeira, ele elenca os movimentos da época, os movimentos da contracultura e evoca o vanguardismo em sentindo amplo, criticando-o, por saturação, em certa medida (“this-ism, that-ism”), além disso, estrutura-se com base no sufixo “ism”; na segunda, lista personagens abstratizadas (“Bishops” etc), ironizadas, como já anotei, e ou concretizadas por “Popeyes” e “Bye byes” ao final; existe uma variação pequena nos sufixos. Já a terceira coluna é organizada a partir do sufixo “on”, (retomando o perfil da primeira), valendo-se de palavras abstratas, solenes, e oficiais como “United Nations” e na quarta elenca pessoas de carne e osso, além de usar “Hare Krishna”, como uma sonoridade em si, como um nonsense também, afora seu sentido normal. É a paz encarnada.
As colunas são precedidas e sucedidas por duas frases coloquiais “Everebodies talking about” e “All we are saying is give peace a chance”. Há um jogo que provoca um contraste semântico bem marcado entre “to talk/conversar” e “to say/dizer”. O que todo mundo conversa transforma-se numa afirmação imprescindível e em um consenso “give peace a chance”. Trata-se de artifício retórico de sedução para a causa da paz, no que toca, em específico, à Guerra do Vietnã.
Em “Give Peace a chance”, todos os aspectos são planejados, paralelísticos, evidenciados por contraste. Para usar o clichê, é “obra aberta”. Há, por fim, a leitura linha a linha, cursiva, que, entretanto, não sustenta, inteiramente, a peça como um poema, num paradoxo. O paradoxo se resolve, no entanto, se pensarmos no todo e se a ou se o pensarmos como um jogo entre, digamos, uma escritura visual e um influxo coloquial, se pensarmos em uma colisão entre a palavra escrita, a imagem, e a palavra falada. Eis uma hipótese de poema. RB
* Setembro de 2010.
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Porta interna da casa dos LaBianca pichada com sangue