Falar da Semana Santa em Sevilha é falar da “madrugá”. Da noite de quinta para a sexta-feira santa, na qual seis procissões percorrem as ruas da cidade que se rende a Jesús del Gran Poder, a Macarena, a Esperança Triana ou ao Cristo dos Ciganos.
A falta que La Madrugá me fez este ano!… O meu agnosticismo resistente não me permite apreciá-la como coisa religiosa. Mas suspeito que também muito poucos dos que nela participam a entendem desse prisma. Mesmo os que têm fé. A mim, tudo aquilo me parece muito pagão (sobretudo se ouvirmos os piropos, que saem da multidão, dirigidos às santas nas procissões).
Nem me lembro de quando comecei a assistir, mas foi ao lado do meu pai, na TV, quando em Portugal quase não havia horas de transmissão televisiva e, para nós, os da raia, a televisão espanhola era a salvação para uma interioridade e um isolamento, local e nacional, extremos. Digamos que aquele fim da Quaresma nos ligava ao mundo. E fazíamo-nos “meio-espanhóis”. Deve ser por isso que entendi sempre tão bem esse estar “entre” de que fala o Bhabha, o que me levaria também a estudar a emigração portuguesa.
Mas deixemos as elucubrações de ordem académica e voltemos ao que importa: foi com o meu pai que aprendi a deslumbrar-me com o flamenco, com o excesso de toda aquela arte. De Sevilha, do cante hondo aos bailaores e bailaoras; dos costaleros, a carregar nas costas, durante uma noite inteira e sob o pano que desce até ao chão, dezenas de quilos de um andor pesadíssimo, coberto de prata e de ouro; das saetas, orações, cantadas das varandas ou de frente para as imagens antigas de madeira esculpida, à virgem dos ciganos, a Macarena, ou à sua rival, a Esperanza de Triana, ao Señor del Gran Poder ou ao Cristo de la Buena Muerte! E ver como é possível fazer dançar aqueles monumentos pesadíssimos, tantas vezes a inclinar-se perigosamente — que arte a dos costaleros! E de Málaga, que dizer quando aparecem os da Legião cantando: “somos novios de la muerte”?! Em presença, só assisti, em Cáceres, à saída dos confrades, com togas e capuzes de veludo a cobrir a cara, e as señoras de negro, com as suas peinetas de véus negros até ao chão; e às primeiras saetas, logo ali, à saída difícil dos portados das igrejas, agora estreitos e baixos para o tamanho dos andores, obrigando a sair de joelhos.
Aos cinco, tudo aquilo tinha o fascínio de um belíssimo filme de terror!
Hoje, mais do que nunca, no meio desta peste que nos assola, fez-me falta aquele pathos anual de morte e de redenção, de luz e de escuridão, de grandeza e de insignificância, de alegria e de sofrimento. Fazer da morte uma festa — é disso que se trata em La Madrugá. Atrevo-me até a dizer, com Hemingway, que é disso que se trata na cultura espanhola (pelo menos a que é marcada pela andaluza). Em “À maneira de Lorca”, escreveu sobre La Madrugá um outro grande e já desaparecido autor norte-americano, Robert Creeley: “e os pobres adoram aquilo/e pensam que é uma loucura”.
Graça Capinha é Professora Auxiliar do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas (DLLC), Secção de Anglo-Americanos, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), e Investigadora do Centro de Estudos Sociais-Laboratório Associado (CES). É doutorada em Literatura Norte-Americana pela Universidade de Coimbra. Foi directora do Instituto de Estudos Norte-Americanos, membro da Comissão Coordenadora do Conselho Científico da FLUC, do Conselho Científico do DLLC-FLUC e da Direcção do CES. Co-organizou e co-dirigiu vários Programas inter- e transdisciplinares de 3º ciclo, o último dos quais “Discursos: História, Cultura e Sociedade” (FLUC/FEUC/CES), em curso.