Skip to main content

LEMINSKI POR BOND

No suplemento cultural Anexo do Jornal Diário do Paraná de 1977 surgem as figuras de Cesar Bond (escritor e jornalista, nascido em 1956, e morto em 2006) e de Paulo Leminski compondo com seus depoimentos o mosaico de vozes da literatura sobre “Os escritores marginais”. Para os dois autores, o termo “marginal” é questionável, gerando duas respostas que diferem apenas pela forma. Bond vai pela prosa:

“Existem e sempre existiram, felizmente, poetas malditos, escritores, artistas plásticos e até mesmo músicos. Malditos que não esqueceram, no caso dos escritores, o que é a palavra. Citando uma frase do Macalé, ‘obra, volte e veja. Eu sou um cara sem saída, mas posso te arruinar’”.

Leminski, pela poesia:

Alô, alô, depondo! Alô, alô, depondo!
Aqui vai um recado sobre o trabalho marginal.
Aqui vai um recado sobre o trabalho marginal,
eu disse marginal.
Um problema semântico, um problema semântico.
Que quer dizer “marginal”?
Que quer dizer “marginal”?
Quem trabalha com signos, tem dificuldade em trabalhar com a realidade.
Qual a relação da realidade com signos?
Palavras não mudam minha vida. Ou mudam?
Todo signo é marginal em relação ao real histórico.
Como é que ele dialoga com ele?
Precisa traduzir os signos em ação.
O trabalho marginal é o que vive e se abastece nessa terra de ninguém entre a necessidade e a dificuldade.

Não se trata de colocá-los numa mesma categoria, cronologia ou mesmo incitar o debate sobre a “geração marginal”. Os livros publicados por Bond, Ah, esses homens tão chapéus (1986), As mulheres são todas (1987) e Vente em Mim (2000), possuem uma frágil afinidade com a obra de Leminski; mas pode-se constatar alguma proximidade que se materializa nos originais deixados por Cesar Bond.

Entre os escritos, foram encontradas duas versões de uma entrevista com Paulo Leminski. A primeira, “Tiradas de Leminski em papo gravado dois dias e três noites”, para ser revisada como “Tiradas de Leminski”. A principal mudança dos arquivos é o acréscimo de uma pequena introdução, de onde podemos deduzir que a conversa foi realizada em 1989, “poucos meses antes de sua morte”.

Bond preserva nos dois textos o testemunho estruturado por temas, retirando as perguntas, para uma maior liberdade das respostas. Abertura que possibilita ao leitor, que não pôde “conviver com seus gestos”, deparar-se com Leminski em uma diversidade de ideias e temas.

Tiradas de Leminski

Enquanto corria a décima versão do “Perhappiness”, andei fuçando umas gavetas e encontrei umas fitas com um longo papo que tive com o Leminski, poucos meses antes de sua morte. Pincei apenas os temas que me pareceram os mais interessantes para quem não teve a possibilidade de conviver com seus gestos. Isto: procurei pinçar os temas o que faziam gesticular com maior expressividade. Tirei fora assuntos delicados, muito pessoais. Tirei fora também as minhas perguntas. Elas estavam sobrando; ele continua fazendo falta.

Cesar Bond

INTIMIDADE

Não tem uma experiência – das mais íntimas, eróticas, emocionais – o que eu não tenha transformado em poemas e tornada pública.

ESCREVER

Escrever é uma coisa de faquir. Você deita numa cama, pelado, e fica numa exposição fazendo greve de fome. E todo mundo dizendo: “hoje ele vai comer pelo menos um sanduíche”. Você expõe o teu sofrimento. Escrever é uma coisa faquiresca.

LITERATURA

Fazer literatura, para mim – a esta altura do campeonato – é uma necessidade fisiológica. Quando penso “preciso escrever”, penso “preciso colocar ideias no papel”. Boto três ou quatro palavras e faço um jogo. Escrever é só uma das coisas que o ser humano sabe fazer. E eu me sinto mais humano depois de fazer isso.

AS SOBRAS

Eu sei tirar as sobras do texto. E quando você percebe que cortou, cortou, cortou e não sobrou uma ideia… fim. Eu sou um escritor de ideias. Se não tenho uma ideia, não vou pro papel dizer “era uma tarde cinza…”. O que eu escrevo é puro: como ideia e como forma. E tem mais: aos 44 anos, eu já tenho conhecimento deste mecanismo. A esta altura, já me dou ao luxo do poema sair pronto.

AUTOMATISMO

Eu convivo com certos automatismos, mas eles são vários. E nesses automatismos estão os sintéticos e os quebrados. Mas já estão implantados em mim e coincidem com a minha experiência vital. Este é o cerne da questão e é também uma coisa perigosa. Você pode ser traído pelos automatismos, na medida em que todo automatismo é uma facilidade. Então, você tem que fazer uma crítica constante a esses automatismos.

ESTILO

Não tenho estilo. O que há de comum entre Agora é que são elas, Catatau, a letra de “Verdura” e um hai-kai meu? É só o fato de que eu assino embaixo. Se estilo significa uma certa constância, uma temperatura uniforme, então, não tenho.

LINGUAGENS

Nunca me recusei a nada. Tipo: televisão, rádio, publicidade, grafite de parede… qualquer negócio que trate de aproximar pessoas, via palavra, é comigo mesmo. É assunto meu. É um desafio e não considero nada disso alheio a mim. Tudo isso me diz respeito.

CRÍTICA

Se caísse um raio agora na minha cabeça, não sei qual a imagem que ficaria de tudo que escrevi. Fiz poesia, prosa, crítica, textos para publicidade, ficção, traduções, crônicas e muitas outras coisas. Neste sentido, aceito a crítica óbvia do Wilson Martins: eu não me fixo em nada.

O QUE FOI PUBLICADO

Este é problema para os analistas. Eu só entendo das coisas que a gente troca. E o prazer de trocar é necessariamente um prazer idêntico.

A APARÊNCIA

Sempre gostei de camiseta vermelha e sandália. Isto marca, porque mostra que existem ambientes compatíveis e outros não. O que para mim não importa. O meu modo de vestir sempre foi ideológico.

O RESPEITO

Eu sei o que devo fazer e não saberia fazer de outra maneira, e sei que será da melhor forma possível. É só. E se mereço algum tipo de respeito é porque quando abro a boca já sei o preço disso. E é um preço fodido.

CATATAU

No Catatau, além do texto tem o gesto. Que é o de você poder jogar, jubilosamente, na cara do público, a inutilidade.

AGORA É QUE SÃO ELAS

O livro não tem o polilinguismo desvairado do Catatau, que pode ser traduzido como “estou pouco cagando se me entendem ou não”. O Agora é que são elas é um mosaico do máximo de não-romance que até agora consegui fazer.

O POSSÍVEL

Nosso desejo é infinito mas nossa vida é muito curta. Então, você tem que escolher entre ser campeão olímpico ou professor de física nuclear. Você vai ter que escolher, porque o desejo é infinito mas o possível acaba aqui.

TRABALHO

Se você não conseguir equacionar essa relação vida/trabalho, você tá perdido. Não há força e criatividade que resistam quando você percebe que o rio mudou de leito.

ACASO

Existem questões muito complicadas: uma delas é o acaso. Quanto mais você determinar a tua vida, é claro que serão mais raras as aparições do acaso. Eu sou viciado em acasos e por isso sou apaixonado por poesia.

MORTE

Quanto à morte, eu sou nipônico. Você tem que superar o medo da morte. A morte é alguma coisa que está dentro da vida e não contra ela. Eu nunca me confrontei com situações limites mas não tenho medo da morte.

MORTE/ACASO

Sempre achei ligeiramente indecente tratar a morte como um acaso. Eu coloquei o Mishima em moda no Brasil, quando traduzi Sol e aço. E o Mishima fez a formulação mais terminal que se pode fazer sobre a morte. Ele tinha uma visão estética da morte. Para ele, a morte era um momento de beleza tamanha, que só mereceria coisas da sua plenitude. Um momento único. Uma determinação e não um acaso. Para ele, morte, prazer sexual e beleza sempre tiveram um signo único.

JESUS

Jesus sabia que se fosse para Jerusalém iria morrer. Não é à toa que “O Sermão da Montanha” é o texto mais perfeito já escrito. É o mais alto ideal que a humanidade já concebeu. Quando a Humanidade realizar dez por cento do “Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o Reino dos Céus” você pode ter certeza que aí sim vale a pena ser um bicho chamado homem. E tem mais: a Bíblia é de uma beleza deslumbrante, alucinante e com passagens até de muito humor. É claro que quando as igrejas se apossaram dos textos bíblicos eles perderam muito deste brilho. Só o fato de nós estarmos hoje, aqui em Curitiba, falando sobre Jesus já é um milagre. Que outra figura humana irradia coisa tão arquetípica quando Jesus? Não existe. E eu falo isso até mesmo à luz da razão e da história: Jesus era um profeta maluco da Galileia, a mais mísera das províncias do Império Romano. Como ele, existiam montes de pessoas iguais. Por que só ele sobreviveu? O que acontece é que a vida e a palavra de Jesus estão tão coladas que você é obrigado a admitir que este é justamente o fato mais espantoso.

ESTRATÉGIAS

A lógica dos militares é a pré-lógica. O macaco-homem se fez pela guerra, se construiu pela guerra e pode morrer pela guerra. Por que nós nos matamos? Para mim, é um mistério. Perseguir o mistério da guerra é tentar desvendar todos os mistérios onde a morte está envolvida. E a estratégia da guerra só está absolutamente correta quando a vida humana é reduzida apenas às leis físicas. É a ação mais simples para obter o máximo de efeito: como num hai-kai. É claro que com isso eu não quero dizer que sou a favor da guerra. Sou totalmente contra. Mas a exatidão do raciocínio militar me fascina.

CIDADE

A lógica de uma cidade, para mim, é aquela ruazinha ali que vai dar naquela ladeira ali. Para mim, esta é a escala humana: uma coisa meio bagunçada. Brasília, por exemplo, foi uma tentativa ingênua e trágica de imaginar que uma cidade racional seria mais humana. Só gosto de cidades onde eu posso me perder.

VERDADE

O que é a verdade? Em seus diários, a Simone de Beauvoir foi justa com Sartre e com o Existencialismo. Ela e Sartre sempre disseram a verdade. As tripas fedem, mas isso não importa.