Ao falar da situação das áreas de Humanidades no contemporâneo, há duas situações em que não gostaria de incorrer.
Primeiro, gostaria de evitar ao máximo um discurso cuja eloquência combina o estilo lamurioso com o edificante para demonstrar a importância das Humanidades em geral e das Letras em particular. Quando se fala delas nesse estilo, como se elas fossem um grande Bem Perdido, logo me vem à cabeça a velha e batida fábula da raposa e as uvas. Na fábula, sem poder alcançar as uvas, a raposa acaba fazendo o discurso do desdém pelo que deseja – de modo que a sua célebre esperteza se reduz ao esforço de enganar a si mesma, enquanto pensa enganar os outros. No nosso caso, o auto-engano é o mesmo, mas em vez de simular desdém, fingimos que choramos pela infelicidade das uvas que não serão comidas por nós.
Em segundo lugar, também não quereria reproduzir diagnósticos abstratos a respeito da situação de crise no campo das Humanidades. Discursos genéricos não movem os sentimentos de ninguém, e, como vão ver, pretendo me manter fiel tanto à tópica do “sentimento do mundo”, quanto à interpretação aristotélica dele que recomenda que, para maior efeito junto ao auditório, convém sempre que a desgraça seja presentificada com vestígios físicos do corpo atingido por ela.
Assim, como estratégia para evitar as duas armadilhas (a da eloquência edificante e a do maximalismo abstrato), pensei em me restringir ao máximo à descrição das ruínas do único corpo disponível que possuo: o meu; ou, para manter o decoro, o de minha própria experiência de docente na Unicamp, ao longo dos últimos 40 anos. De fato, minha primeira entrada na sala de aula, como monitor de uma disciplina de meu orientador, Haquira Osakabe, foi em março de 1975. Como não se trata de nenhum cartão de visitas maravilhoso, desculpo-me já pelos equívocos que disser, mas pensem, por favor, que um relato de experiência direta sempre pode servir de “dado de comparação”, de substância contrastante a tornar mais nítido um estado de coisas no qual vemos pouco quando restritos ao hábito.
Uma perspectiva pessoal, centrada nas minhas próprias limitações, reduz de imediato o alcance do que eu diga, mas aceito essa redução com a certeza de que, querer ir além da experiência, seria perder o que de mais verdadeiro pudesse apresentar aqui. De resto, também nunca professei grande amor por palavras de ordem, de modo que não teria suficiente fé ou talento de impostação para torná-las críveis. Falar apenas do que experimentei será a minha maneira de ser fiel ao grave debate que me coube.
Hoje, por onde quer que se entre no noticiário das Universidades, nada é mais universal, palpável e recorrente do que os sucessivos cortes orçamentários no bojo de tentativas de, como se diz, “racionalizar” a gestão financeira. Sempre que algum austericídio é proposto para algum país ou órgão estatal, a Universidade torna-se um lugar incrivelmente atraente para aplicá-lo. O corte mais radical que testemunhei não veio de uma direita apedeuta, mas dos decretos de um governador que, no período do golpe militar de 1964, no Brasil, chegara a ser presidente da União Nacional dos Estudantes. Não bastasse isso, havia sido docente da minha própria Universidade. Nada disso o inibiu de tentar liquidar a autonomia das Universidades públicas paulistas por meio de uma série de decretos que lhes retirava a autonomia financeira (sob pretexto de obter maior transparência de emprego dos recursos públicos) e ainda as submetia administrativamente a uma Secretaria de Ensino Superior, inventada por ele, cujo titular seria também indicado por ele “em cargo de confiança”. Após uma grita geral dos docentes e estudantes, não foi dessa vez que o modelo vingou, mas ele ainda encanta muitas autoridades do país, sempre interessadas em reduzir o custo-Universidade.
O atual governador de São Paulo, pouco mais sutil, ataca a Universidade não com a ameaça direta de uma nova secretaria, mas com truques financeiros, que diminuem sistematicamente o montante do valor a ser-lhes transferido, e ainda com a aplicação de um teto salarial para os professores muito inferior ao praticado na federação – com desdém extraordinário pelo fato de que metade de toda a ciência produzida no Brasil é oriunda das Universidades paulistas. A Folha de S. Paulo, por sua vez, preferindo desconhecer a farsa eleitoreira do teto paulista, aplica-se a publicar holerites excepcionais de gente ligada à reitoria da Unicamp para demonstrar a ilegalidade dos vencimentos da maioria dos professores da Universidade. No final da campanha de desinformação deliberada, certamente está o plano longamente acalentado de privatização do ensino universitário do Estado de S. Paulo. Mas olhem que, ainda assim, vai ser preciso muita força de vontade para o leitor acreditar que o governador ganha menos do que os professores universitários e que estes são os novos marajás. Mas, claro, o cargo de caçador deles, de triste lembrança, já tem o seu novo campeão.
E o contexto ruim não deriva apenas de ameaças externas sofridas pela Universidade: o atual reitor da Usp, empenhado em demonstrar a irresponsabilidade dos gastos do reitor que o antecedeu, não perde oportunidade de dar entrevistas sobre a má gestão da Universidade, na obtusa esperança de que as autoridades públicas distingam entre as gestões. O que fazem, bem ao contrário, é usar o quadro de crise que lhes é ofertado para demonstrar a incapacidade de a Universidade gerir a si mesma, e, em seguida, propor o fim da Universidade pública gratuita.
São mazelas locais, é verdade, mas acho que elas são exemplares do que acontece em vários lugares do mundo. A situação do ensino superior de qualidade, como um todo, está sob ameaça e não apenas as Humanidades. E por isso mesmo não há discussão sobre as Humanidades que não seja discussão sobre a Universidade. A observação pode dar um pano de fundo mais realista à nossa discussão, e emite sinais alarmantes para regiões e países nos quais a Universidade nunca chegou a se tornar institucionalmente estável e defendida dos ataques sistemáticos que sofre de várias instâncias de poder.
No entanto, para falar das Humanidades, não saberia fazê-lo sem recuar ao tempo do meu ingresso, nos idos de 1973, no curso então chamado de “Ciências Humanas” da Unicamp. Era regido por um modelo anglo-germânico que colocava os alunos dos dois primeiros anos da Graduação em contato com autores e questões decisivos das várias disciplinas das Humanidades, a saber: Antropologia, Política, Economia (de fato, Economia Política, pois não se pensava Economia como campo autônomo, como hoje, com a sua suposta racionalidade própria), e ainda Sociologia, Filosofia e Linguística, conjunto ao qual se reuniu, um pouco mais tarde, a Teoria Literária. Após dois anos cursando em tempo integral esse conjunto obrigatório de disciplinas, o aluno optava por especializar-se em uma delas, recebendo então, depois de mais dois anos de estudos específicos, o seu diploma de bacharelado.
A ideia do básico comum insistia na importância da “formação”, entendida como obtenção de certo acúmulo de experiência intelectual fornecida por diferentes disciplinas que funcionavam com constantes remissões internas, de modo que escolher uma ou outra terminalidade não era essencialmente diferente. Podia-se falar, de fato, de um Curso de Ciências Humanas, cujo núcleo residia no confronto das ideias decisivas dos principais nomes dos diferentes campos das Humanidades. Era possível frequentar um cômodo mais do que outro, mas a casa era basicamente a mesma. Se a animação num dos cômodos tornava-se maior, todos acabavam passando por lá, seja para dançar com a música, seja para tentar abaixar o volume, mas não havia como ignorá-la. Estávamos todos expostos às teses que surgiam nas diversas disciplinas; ficar no curso era admitir extensões imprevistas no horizonte de debates.
Mais de quarenta anos depois, a Universidade mudou bastante, e não pretendo fazer, aqui, nenhuma hora da saudade –, cuja melhor formulação deu-a Bernardim Ribeiro, ao afirmar que as saudades servem não para sofrer menos, mas para “sofrer melhor”. Fôssemos, aqui, qualificar o nosso sofrimento, teríamos de dar por manifesto que a segmentação dos campos de saber a que assistimos desde então não têm feito bem às Humanidades, em nenhuma de suas áreas. Isso é verdadeiro para a da Teoria Literária, onde me situo mais facilmente, mas acredito que o seja também para as demais. As Humanidades alimentam-se dos confrontos entre as várias abordagens das questões sociais e fraquejam quando reduzidas a operações técnicas no âmbito de uma especialidade.
Dou um exemplo, por assim dizer, cortado na própria carne. Quando escrevi minha tese sobre o Padre Vieira, incomodava-me o recorte que a sua obra sofria por parte de uma crítica positivista e nacionalista, tanto brasileira como portuguesa, que censurava a mistura de aspectos místico-missionários e políticos em sua oratória, bem como o seu desapego às terras de Portugal ou do Brasil – no primeiro caso, levando-o a propor a reanexação a Castela e a ida da Corte ao Brasil; no segundo, a entrega de Pernambuco e de boa parte do Nordeste aos holandeses, o que até lhe valeu o rompante epíteto de “Judas do Brasil”. Por exemplos como esses, dizia-se e repetia-se, como se fosse muito agudo, que era justo admirar Vieira, mas amá-lo, não, amar só ao bom do Padre Bernárdes, mais singelo e coerente em seus fins místicos.
No entanto, parecia-me historicamente equivocado criticar-se tal mistura, uma vez que, para Vieira, como para qualquer jesuíta, a pregação que apenas olhasse para o céu deixava desassistida a “cegueira da terra” — e, portanto, a rigor, traía a sua missão religiosa. A política era tão nuclear à atividade do místico como a pregação e os estudos bíblicos. Também nada se poderia esperar de elucidativo de uma tese sobre o seu desdém nacional, pois em seu conceito neotomista de monarquia cristã, Portugal era o nome de um destino católico, universal, que haveria de se aplicar ao mundo todo e não se podia conter nas fronteiras de um único país.
Daí, em minha tese, ter argumentado a favor da centralidade da noção de “retórica” para a compreensão dos sermões, e não apenas deles, mas do conjunto das letras daquele tempo, pois era estratégica para se pensar tanto a impossibilidade de separação entre as instâncias teológicas e políticas, como o horizonte supranacional de sua formação inaciana. Ocorre que, hoje, o processo de especialização é tão irresistível que as matérias são, por assim dizer, arrastadas para lugares estranhos a sua disposição original. A própria retórica, em medida abusiva, passou a ser entendida como aplicação normativa de categorias técnicas, misteriosas, que só especialistas são capazes de decifrar. Vista dessa maneira, ela não ajuda muito a interpretar nenhum autor ou obra, mas parece estar apta para justificar a contratação de especialistas para mais um departamento, bem como a dar nascimento a mais “sociedades” científicas, as quais, cedo ou tarde, tornam-se autocentradas, dedicando-se mais a si mesmas do que ao fenômeno social que lhes deu origem.
Quando fui estudar retórica para falar de Vieira, o meu propósito era ler Vieira melhor: considerar a sua obra de maneira histórica, adequada e capaz de articular os campos de saber imbricados no século XVII. Percebo agora que o que era uma abertura para a significação complexa da obra pode ser revertido para um vocabulário final restritivo, que subjuga o objeto no jogo da sociedade acadêmica que o pratica.
Falo em especialização nas Humanidades, e isso me leva de volta às preocupações de gestão financeira das Universidades brasileiras, que não são muito diferentes das que encontramos em boa parte do mundo. Isso significa, por exemplo, considerar a ideia de que a sua saúde financeira depende de sua capacidade de captação de recursos externos.
Nos idos dos anos 70, pouco se falava em necessidade de “captação” para gerir a universidade: o que ela recebia como dotação anual do Estado parecia dar conta do que ela tinha tanto de despesa de custeio de pessoal, como de manutenção de infraestrutura e de contratação de novos docentes e funcionários. Ninguém era mais rico então, mas as a coisas se resolviam assim. Hoje, nas universidades paulistas, a que está melhor tem 95% dos recursos internos consumidos com pagamento de pessoal, o que impede investimentos e reduz as contratações às substituições por aposentadoria ou morte.
Diante desse quadro difícil, reaparece a crítica da “gestão amadora” e a exigência de uma “gestão eficaz” — gestão: mágica palavra! Como se, de repente, a gerência, e não o ensino se tornasse a melhor representação da universidade. Nós éramos professores e, agora, temos de ser também microempresários. Mas se, em parte, viemos ser professores porque não queríamos ser empresários!
Mas, seja, encaremos a exigência de uma gestão eficaz. De modo geral, tal disposição implica na necessidade de reforma administrativa, isto é, de enxugamento e profissionalização da máquina burocrática, o que, por sua vez, pode, primeiro, emperrar na legislação burocratizada da administração pública; segundo, levar à adoção precipitada de um jargão de empreendedorismo e de gestão comercial raramente eficiente quando aplicado à vida universitária. E que, no caso das Humanidades, chega a ser ridículo, tal a simulação de eficácia e de cientificidade para tratar de questões que em sua melhor medida são imaginárias e, como tal, não admitem respostas práticas.
Mas reforma administrativa não basta. É preciso capacidade de captação externa, o que, em várias universidades é critério importante não apenas de qualificação dos programas, mas ainda de acesso dos docentes aos níveis mais altos da carreira. Pois bem, para a captação externa, em geral, apresentam-se dois caminhos, não exclusivos, embora, por vezes, contraditórios entre si.
De um lado, está a via do que podemos chamar genericamente de “Extensão”, isto é, a dos convênios ou acordos de inovação com empresas ou com órgãos públicos. Claro, são acordos para quem pode fazê-los, e as Humanidades os fazem sofrivelmente, em geral com tímidas ofertas de cursos pagos de curta duração. Mas o caminho, quando bem trilhado, traz algumas vantagens, como a inserção da Universidade num processo já constituído de demanda, o que pode ser socialmente útil e eventualmente lucrativo para as empresas, e ainda alguma complementação de salário para o professor, sempre mais ou menos pobre.
Mas os riscos não são desprezíveis, como, primeiro, a autonomização dos convênios em relação à pesquisa produzida na Universidade (a qual, no limite, pode se tornar apenas uma agência de terceirização); segundo, a transferência indevida de infraestrutura e de mão de obra de docência e pesquisa para esses serviços, que tanto pode ser mais inocente e restrita a algumas horas de trabalho dos profissionais pagos pelo Estado, como mais graves e indecentes, podendo levar à privatização encoberta das pesquisas públicas, que chegam a ter contratos ocultos –, por exemplo, com laboratórios farmacêuticos ou com petroleiras, com espantosas “cláusulas de sigilo”, nas quais o pesquisador, se se afasta da corrida por publicação, uma armadilha contemporânea bem conhecida de todos, acaba caindo em outra: a de usar o seu talento para dar resultados que ficam exclusivamente ao alcance de seus contratantes privados.
Outro risco do crescimento das parcerias público-privado é o ar desagradavelmente comercial que atinge as Universidades, notável quando o esforço de captação de recursos resulta na instalação e proliferação de pontos de comércio dentro delas, o que acaba, por vezes, dando-lhes uma cara de shopping de segunda, com salas de aulas sitiadas por lojas de toda espécie. Por mais que queiramos naturalizar esse fenômeno privatista da Extensão em face da paisagem de penúria, no caso das Humanidades, no fundo, não há nada mais estranho do que a entrega à demanda. Digo isso no sentido mais radical, pois não há um campo sério das Humanidades que se entregue ao imediato e atual apenas. É parte de sua natureza o interesse por fenômenos de longa duração, senão eternos, como almejam as grandes obras de arte.
Um segundo caminho para a captação externa de recursos é o das agências de financiamento de pesquisa. Algumas vantagens desta opção em relação à anterior dos convênios são bem claras: primeiro, o dinheiro vai para quem pesquisa e não para quem tem o controle burocrático do convênio; ou seja, de modo geral, tende a ocorrer um fortalecimento dos pesquisadores mais produtivos em detrimento dos usos políticos e administrativo-burocráticos das verbas; segundo, trata-se do caminho mais consolidado, seguido pelas melhores universidades do mundo, nos quais o peer review decide o encaminhamento das verbas para as diversas pesquisas livremente propostas pelos professores.
Essa via de captação externa obriga a que as Universidades e Institutos mais dinâmicos e preparados para a briga por verbas transformem a sua Secretaria de Projetos num órgão-chave, não apenas para acompanhamento episódico de pesquisas individuais ou coletivas, mas com várias funções articuladas entre si, como, por exemplo, serviços de tradução de trabalhos para apresentação em congresso ou publicação em periódico internacional; serviços de apoio docente para organização de material a ser apresentado em classe: digitação, cópias, transparências, bibliografias etc.; acompanhamento de projetos de pesquisadores individuais ou núcleos de pesquisa; ajuda no preenchimento dos famigerados relatórios de pesquisa ou plataforma de currículos; apoio a eventos científicos; incremento de grupos de pesquisa, favorecendo a interlocução de pesquisadores de várias áreas buscando e fomentando a produção de projetos a ser submetidos às agências etc.
As agências de fomento, entretanto, e muito especialmente no caso das Humanidades, assim como não podem ser subestimadas, como quando os docentes catolicamente achavam que tocar em dinheiro era sujo – digo catolicamente do ponto de vista das mães e das cartilhas doutrinárias, não dos padres –, também não devem ser superestimadas como remédio universal, o que vem acontecendo de maneira crescente, em todo o mundo.
Ouvir falar de agências de fomento, às vezes, lembra a tópica aplicada no intermezzo cômico de filmes de faroeste, quando surge na cidade algum vendedor esperto de tônicos milagrosos. No caso do Brasil, a cena teria alguém anunciando: – Compre Capes! Tome Fapesp! No mundo, seria: Fullbright, Mellon, Guggenheim, os supertônicos do êxito científico! No entanto, agências de fomento não são a panaceia dos males que afligem a Universidade contemporânea.
Explico-me melhor, pois não quero passar por doido, cujo critério mais seguro sempre foi o de saber se o sujeito queima dinheiro. O primeiro ponto a considerar é também o mais óbvio: que o modelo básico dos projetos de pesquisa é originário das hard sciences e, portanto, estranho às áreas mais tradicionais das Humanidades. As próprias noções de “projeto” e de “pesquisa”, hoje naturalizadas, são pouco entendidas na nossa área, e o seu emprego é, em geral, metafórico. Para nós, o que é fazer pesquisa?
Não acho que esteja simplificando muito se disser que se trata de ler vários livros em torno de certo assunto, entregando-se a seus diferentes vocabulários, às suas redes semânticas, algumas mais previsíveis, outras imprevistas, deixando-se mesmo conduzir por elas; e então, conhecer algumas das circunstâncias referidas nos livros, conversar com diferentes pessoas que as conheceram, sob diversos pontos de vista, e então ler mais livros que podem ou não falar delas, até que sobrevenha uma ideia suficientemente densa e, de preferência, original, capaz de reorganizar o conjunto.
Ao longo do tempo que se leva para ler e compreender bem essa variedade de livros, documentos, estado de coisas etc., também falamos deles com amigos e colegas, ou com qualquer um que tenha ouvidos disponíveis para nós; debatemos as ideias que julgamos próprias e ainda outras, alheias; afinamos os discursos de acordo com os ouvintes; tentamos uma hora escrever alguma coisa; mandamos para alguém em quem confiamos; reescrevemos; percebemos ao escrever que não pensamos bem; retornamos aos livros…
Portanto, o que fazemos, muitas vezes é muito diferente de programar, de planejar, de detalhar minuciosamente um empreendimento futuro, com plantas, cálculos, gráficos, descrições, orçamentos etc. como supõe a noção de projeto. Nas Humanidades, o adequado mesmo é não fazer nada disso e deixar-se conduzir pelos muitos fios da leitura, que nunca podemos adivinhar antes de ler, a menos que o livro seja ruim. Ou seja, em vez de pesquisar, que supõe experimento de bancada ou de modelagem, sob controle metodológico, o interessante pode ser estudar o assunto livremente, derivá-lo para muitos lados, sem menosprezar os contraditórios e nem mesmo os incoerentes. Numa frase: o que interessa mesmo é ganhar erudição no campo pertinente ao assunto.
Ou seja, o que parece mais atraente num estudo de Humanidades é menos antecipar o futuro e resolver problemas, mas quase o contrário: perder tempo com o assunto sobre o qual almejamos uma espécie de autoria, não uma solução. Nesse caso, está evidente que, conquanto os termos sejam os mesmos, pesquisa, projeto, análise, laboratório, diagnóstico, resultados etc. , não é seguro que haja qualquer substância comum entre o entendimento que nós fazemos deles e aquele que os cientistas fazem deles. Eles trabalham com métodos e previsão de resultados, nós trabalhamos, quando trabalhamos bem, com processos autorais imprevistos e com problemas insolúveis. E os que têm maiores ambições nas Humanidades não querem resolver nada, mas querem criar um problema novo, uma questão que não havia antes e que, depois deles, cresça e se desenvolva até o ponto em que, de preferência, importune para sempre, forme um novo nicho num campo transcendental de reflexão.
E se achamos que nem sempre é fácil ou adequado aplicar noções das Exatas às Humanidades, o contrário também é verdadeiro. O melhor exemplo que posso dar disso me veio da leitura do crítico de arte russo, Boris Groys, ao comentar atitudes diversas diante de um experimento. Assim, um biólogo ou um médico que localiza uma bactéria que faz adoecer o corpo humano logo imagina em descobrir a vacina ou a mezinha que o livre dela. E é muito bom para todos nós que ele faça isso, pois se fosse um médico com aspirações filosóficas ou literárias logo imaginaria que, se o corpo se enfraquece com tal bactéria ou vírus, a bactéria ou o vírus, por sua vez, se sentem muito bem enquanto adoecem aquele corpo. E tendo isto em mente, o nosso colega não teria porque achar naturalmente justo liquidar uma forma de vida em detrimento de outra. Afinal, bactérias e vermes são fervilhantes de vida. Outro filósofo, Georges Bataille, já havia anotado que em nenhum lugar pululam tantas formas de vida quanto em corpos em putrefação. A morte, vista assim, tem mais vida que a vida exausta de um corpo carregado de obrigações.
Quer dizer, diante de um médico que aplicasse esse método autoral humanístico às doenças, vocês teriam todo o direito de dizer: nós não queremos um médico assim. Pois é: nós também, muitas vezes, não queremos um filósofo, um crítico ou um historiador que se comporte como se fosse dublê de cientista.
E porque o conceito chave da pesquisa em Humanidades é erudição (o que não é muito diferente hoje do que o seria, no século XVII, quando o jesuíta Baltasar Gracián a definiu como “vária notícia de toda cousa”), e porque erudição define-se na relação privilegiada com uma produção individual e autoral, segue-se que muitos pontos incentivados pelo modelo dos projetos de pesquisa são de ajuste duvidoso à nossa área. Vou dar exemplos que são bem nítidos no Brasil, mas como o que parece original por aqui é apenas lição mal feita do que costuma ser importado às pressas, valem também para outros endereços da ciência globalizada.
O primeiro caso flagrante de inadaptação é o incentivo cada vez maior para que o aluno de Graduação dispute bolsas de Iniciação Científica, o que o obriga logo cedo a colocar-se sob a tutela de um professor que aceite orientá-lo. O problema óbvio aqui é que a bolsa de IC, obtida por um aluno de 18, 20 anos, gera uma especialização precoce, num tempo sem condições ainda de fazê-lo. Restringe-se demais a sua “formação”, cujo vetor principal passa a ser não mais a livre entrega à curiosidade intelectual, a busca de vocabulários de acesso aos diversos campos da nossa área ou mesmo o desejo difuso de intervir nos fenômenos sociais, mas a concentração de seus esforços num único objeto de estudo, que nem sempre se dá a ver, mas quase sempre cega-o para tudo o mais. É pena, pois, nessa situação, adquirir foco é o mesmo que encurtar a vista. É pena também porque, nesse período da vida, o aluno ainda tem a vista boa e pode aproveitar a variedade das paisagens. É pena, enfim, porque torna-se especialista em imitar aparências de doutor, pois douto ainda não pode ser.
Tampouco vejo com bons olhos os Mestrados cada vez mais rápidos e ainda as passagens diretas para o Doutorado. O Mestrado rápido tende a reificar a especialização precoce e, por isso mesmo, a travar a análise compreensiva dos fenômenos sociais. E se o aluno de Iniciação Científica, por vezes, faz lembrar o ator-mirim, as crianças prodígios que vemos no cinema, os Mestrados-Doutorados relâmpagos (geralmente, em torno do mesmíssimo tema, que os acompanha da Iniciação Científica ao pós-doutorado, e que se torna, enfim, erudição de uma nota só) lembram a triste sina dos atores mirins. Depois do breve período de sucesso, vivido antes do tempo, como que passam direto da infância à velhice. Quando têm a idade certa para começar a atuar, já estão esgotados daquilo tudo: afinal, já “atuaram” demais.
É um pouco desolador, mas me sinto compelido a continuar falando mal de nossas macaqueações das Exatas. Outra delas é privilegiar projetos e textos coletivos. No Brasil, a prioridade das agências são os chamados “projetos temáticos”, relativos a grupos de trabalho criados para se dedicar ao estudo de determinado tema. A ideia não é má: juntar pessoas de diferentes graus de experiência para lidar com um mesmo fenômeno ou questão. No entanto, esses novos grupos, que recebem dinheiro com a obrigação de montar congressos e de apresentar regularmente seus resultados por escrito, têm êxitos bastante relativos. Primeiro, porque são um fator de aceleração da especialização precoce de que falei antes; depois, por acelerar a produção de resultados, mesmo que não sejam novos; e enfim, porque tendem a produzir trabalhos predominantemente quantitativos, mas de pouco alcance interpretativo.
Não sei bem por quê. Talvez porque não haja tempo de estudo que acompanhe o tempo da produção, ou porque, no âmbito desses grupos, ocorra mais um movimento de homogeneização de perspectivas que de debates e confrontos entre abordagens conflitantes. Nas Humanidades, o esforço colaborativo de “time” ou “equipa” raramente funciona melhor do que a disposição de descobrir contra-argumentos. A vontade de discordar é condição do trabalho em Humanidades – e não apenas da graça da conversação, como já advertia Elisabetta Gonzaga, no século XVI, aos cortesãos de Urbino.
Enfim, os grupos temáticos, quando confrontados com os seus resultados, têm qualquer coisa de um grande navio, rico e pesadão, cujo motor, entretanto, não ultrapassa a potência de um trabalho precário de remo.
Ainda poderia colocar em dúvida o interesse efetivo, para as Humanidades, de programas de bolsas de docência em Graduação para os alunos de Pós-Graduação. Compreende-se a utilidade desses Programas, em tempos de vacas magras, como forma de obter mão de obra barata para tocar os cursos; compreende-se, também, que sejam muitíssimos disputados no âmbito das Exatas e Tecnológicas, cujos professores mais titulados preferem trabalhar na Pós. E o procedimento se torna cada vez mais prosaico. Na minha Universidade, quase 50% das aulas de graduação são ministradas por alunos de Pós e por professores aposentados trabalhando como colaboradores voluntários. Tamanha restrição do contato dos alunos de Graduação com os professores ativos mais experientes, que chegam a considerar pouco prestigioso trabalhar com alunos ingressantes, parece-me desastrosa para a área.
Se é verdade, como ouço dizer, que na Matemática ou na Física as carreiras são rápidas e que, se o sujeito não fizer alguma coisa até os 25-30 anos, depois não a faz mais, nas Humanidades geralmente se dá o oposto: tudo o que se faz antes disso tende a parecer infantil e amador. Sem o tempo justo de estudo e de experiência de vida, que inclui períodos improdutivos e contemplativos decisivos para o exercício relevante das questões imaginárias e insolúveis das Humanidades, o estudioso mais brilhante não consegue adquirir o cultivo requerido para lidar com elas.
Ou seja, nas Humanidades, não adianta ser gênio, isto é, alguém que faz depressa o que os outros fazem devagar, pois não interessa queimar etapas. Ao contrário, é preciso saber incorporar no andamento da reflexão o escarmento, a paciência, a incompreensão, a decepção até fazer com que elas tenham papel importante na qualidade da reflexão. Refletir, por vezes, é apenas saber perder tempo, desviar-se da pressa dos resultados óbvios.
Ademais, mesmo fazendo todas as adaptações possíveis para nos adequar ao modelo das agências de financiamento, ainda há uma contradição fundamental no modelo que prioriza o “projeto de pesquisa” como nuclear nas Humanidades. Isto porque os “projetos”, em nossa área, com poucas exceções, tendem a ser baratos.
E é assim mesmo, não há nada a fazer: em geral, nós não precisamos muito mais do que computadores – que não precisam ser computadores de ponta, pois são geralmente subutilizados como máquina de escrever; precisamos de bons acervos de bibliotecas e de arquivos documentais; e, de preferência, a despeito dos imensos avanços dos acervos on line, precisamos de passagens para conhecer os arquivos de outros países e culturas in loco. Não é apenas vontade de viajar ao exterior: nada pode substituir o contato com os diversos povos, pois a interpretação dos acervos depende do conhecimento da relação entre eles e a cultura em que são produzidos.
Computadores simples, bibliotecas antigas e atualizadas, acervos ricos, passagens e permissão de estadia — é tudo o que precisamos, afora o essencial: a inteligência e a animação dos alunos e professores. Não dá para inventar mais, nós somos mesmo baratos.
Apenas para dar um exemplo que conheço bem: em 2007, o meu Instituto, que era, na Unicamp, entre os de Humanidades, o que mais conseguia arrecadar com agências, tinha 34 mil reais (equivaleria, no câmbio de hoje, a pouco mais de 10 mil dólares) de Reserva Técnica da Fapesp, isto é, de fundos transferidos ao Instituto como porcentagem do total de recursos concedidos pela agência às pesquisas financiadas de professores de Letras e Linguística. À época, conversei com vários diretores de Exatas, Tecnológicas e Biomédicas, e nenhum deles havia recebido menos de 500 mil reais (ou seja, cerca de 160 mil dólares). O projeto de um único professor das Biológicas rendeu quase 200 mil reais (cerca de 60 mil dólares) de Reserva Técnica institucional, seis vezes mais do que era devido ao Instituto inteiro de Letras, com quase uma centena de professores. Não dá para competir.
Por outro lado, é verdade que, se calhar, é porque somos baratos que ainda conseguimos sobreviver no conjunto de uma Universidade sempre ameaçada por cortes orçamentários. Mas, a pensar assim, nunca seremos também suficientemente baratos. Sempre alguém há de achar que podíamos viver com menos. Por isso mesmo, com projetos que não serão nunca tão caros a ponto de bancar os vários custos da sua existência administrativa e acadêmica, é a própria Universidade que tem de permanecer como o primeiro responsável pela sustentação das Humanidades.
As Humanidades são responsabilidade da Universidade, e não das agências financiadoras. O aparecimento das agências na vida da Universidade, com a importância que ganhou em tempos de penúria, tendo ela todo o poder de decidir a política científica de todas as áreas, os critérios de avaliação etc., é o anúncio do fim da universidade enquanto entidade autônoma.
Eu havia dito, no início, que não há discussão sobre as Humanidades que não seja necessariamente discussão sobre a Universidade. Pois agora temos de ir adiante e dizer que o que define as Humanidades é propriamente ser responsabilidade da Universidade. Ao menos enquanto a Universidade entender que há interesse em favorecer o cultivo sistemático da crítica, o que só faz sentido no âmbito de um Estado democrático. A não ser assim, para que investir em quem, em geral, complica e critica a produção tecnológica? Complica e critica o Estado e as Empresas que financiam as suas pesquisas, em vez de cooperar com eles?
A questão insuperável das Humanidades é a de que a sua “pesquisa” se refere a uma redescrição imaginária das formas sociais o que, não raro, pode levar também a imaginar formas de intervenção na sociedade. Ainda uma vez, vou dar exemplos próximos de minha experiência de aluno e docente.
No Brasil, poucos pesquisadores em Humanidades podem dizer-se tão bem sucedidos como os economistas da Unicamp que introduziram Keynes no país, ainda nos anos 70, e que atacaram o conservadorismo econômico e político da ditadura militar. Não consta que tenham pleiteado verba de agências para tais estudos ditos “heterodoxos”. Hoje, passados 40 anos, tudo mudou. A heterodoxia experimentou o gostinho do poder e agora está em baixa. Pode-se até sugerir que o que essas teses deixaram de arrecadar das agências sacaram, com juros, dos bolsos dos contribuintes, depois que tomaram poder. Seja, mas o que importa é outra coisa: a força que mostrou a reinterpretação de Keynes à luz do processo de industrialização de S. Paulo para redesenhar a história político-econômica do país.
Outro exemplo, desta vez na área de Letras: a tese mais influente já formulada no Brasil, cuja formulação de origem deve-se ao modernista Mário de Andrade, foi a de que o Modernismo paulista, cujo manifesto é de 1922, representava a realização de um processo de independência nacional iniciado cento e cinquenta anos antes. O corolário da tese desobrigava os brasileiros de conhecer tanto a produção letrada da colônia (o que tornou o Brasil o país da América latina com menos estudos coloniais), quanto os modelos portugueses que haviam mapeado toda a produção intelectual brasileira até muito depois de 1922. Pois bem, essa redescrição da literatura e da história do Brasil –, hoje, ainda predominante, embora não mais hegemônica –, tornou-se o núcleo do desenvolvimento de todas as Ciências Humanas no Brasil, incluindo a Teoria Literária, talvez pelo atrativo de inserir o país numa espécie de modernismo progressista internacional, capaz de combinar o urbano e industrial com o nacional e popular.
Embora esses dois exemplos de teorias bem sucedidas historicamente não tenham grande atração para mim, pergunto: está superada essa forma de fazer Humanidades? A meu ver, não. As teses defendidas podem envelhecer mais ou menos bem, mas o processo de criação na nossa área, ainda é esse mesmo: interpretação, crítica, erudição –, o que muitas vezes também significa abrir possibilidades de intervenção na história.
Não estamos num momento em que os dirigentes de muitas Universidades têm dedicado atenção às Letras ou às Humanidades em geral, cujo crash parece ser tão ou mais forte que o crash financeiro de 2007-2008. O tempo parece entender que a Universidade — de resto, como a maioria dos países, não importa qual seja o regime político — deve ser gerida como uma empresa, como se os requisitos para aprender a formular e ouvir críticas fossem os mesmos adequados para gerar lucros para um banco ou fábrica num mercado global, como dizem, “altamente competitivo”. Os tais rankings universitários de hoje não querem dizer outra coisa, promovendo uma espécie de “capitalismo acadêmico”, para usar a expressão de Richard Münch, na qual as universidades se lançam numa batalha global pela “excelência”, estreitamente entendida como contribuição à riqueza econômica do país.
É por isso que, no sentido contrário, as Humanidades exigem uma Universidade forte e autônoma, capaz de acolher e sustentar uma área que, por natureza, além de não ser rentável, é crítica por vocação, e nos dois pontos reside o melhor dela. A esse respeito, a filósofa Martha Nussbaum tem apresentado amplos argumentos, que não se restringem aos Estados Unidos, pois ela conhece bem a situação da Índia, e valem também para Alemanha, Suécia, Inglaterra e outros países nos quais a autora observa um avanço alarmante do que considera, mais do que uma crise, um “câncer”. Caracteriza-o a submissão da educação ao lucro, vale dizer, a tentativa de reduzir a educação, desde os primeiros anos de escola até a Universidade, a um processo de capacitação para o negócio e à contribuição para o PIB per capita da nação.
Tal processo, promovido de forma cada vez mais aberta e agressiva pelos governos de todas as tendências políticas, para Nussbaum, ameaça o sentido mais precioso da ideia de educação, o qual, para ela, está contemplado na valorização da vida democrática, entendida no sentido abrangente de apego aos valores do pluralismo, das liberdades civis, da conquista de direitos iguais para os cidadãos, independentemente de raça, classe, gênero, orientação sexual, religião etc. A agenda é conhecida, não precisamos repeti-la.
A se considerar que as Humanidades importam, tal como o fez o reitor de Yale, Richard C. Levin, ao reconhecer que a sua Universidade não atingiu reconhecimento universal senão quando a área de Humanidades de Yale o fez, há muito o que repensar a respeito do que está sendo feito agora, quando as Universidades permitem que as Humanidades sejam descartadas como lastro de um navio em perigo: pois quanto mais lançam fora as Humanidades, mais naufraga a ideia de Universidade.
As Humanidades importam não porque ajudem a formar empreendedores, mas porque estimulam possibilidades alternativas de interlocução do presente pela ostensiva mediação do legado cultural. Poder-se-ia dizer, de outro modo, que um estudioso de nossa área é fundamentalmente alguém que cria uma ficção, ao mesmo tempo persuasiva e descontente, a respeito de si mesmo e do mundo em que se insere. É preciso ser descontente, pois o seu trabalho não descobre nada e ainda não resolve nada, mas, se for bom, deve associar-se à tensão cultural que sempre anda à roda do “novo”.
Falo em “tensão cultural” também porque, na Universidade fala-se demais de docência, pesquisa e extensão, mas, nesse trio, a cultura é o grande recalcado. Nesse conjunto de vocações da universidade, a cultura não está melhor localizada no âmbito da pesquisa do que no da extensão. Pois chamamos de extensão o que se produz como pesquisa e divulga-se para consumo externo. Mas cultura tem pouco a ver com isso. Tem a ver com erudição, repertório, prática sistemática de crítica e de autocrítica, no conjunto da vida social, e não apenas da vida universitária. Um cientista pode ser cientista apenas em seu laboratório, um estudioso de nossa área, não: ele tem de estar imerso nas práticas culturais da sociedade.
Por isso mesmo, reconhecer o peso das Humanidades é estratégico e fundamental para uma Universidade se tornar de primeira linha. Acreditar na marcha da tecnologia para nos salvar é tão simplório quanto confiar na marcha inexorável da história para a redenção em Cristo, no Capitalismo, no Socialismo Universal, ou seja qual sublime providencialista se preferir.
Quero deixar claro também que não estou acusando as Reitorias ou as hard sciences de ser as grandes culpadas da perda de relevância das Letras ou das Humanidades. Não acho que, atualmente, a administração universitária ou as outras áreas compreendam menos as Letras e as Humanidades do que elas compreendem-se a si próprias. Percebo isso até no esforço que faço para empregar o conceito de Letras, ou de Humanidades, quando, de fato, a naturalidade dele perdeu-se também para mim. E bem pior do que ser mal interpretadas de fora, foi as áreas de Humanidades ter perdido a vontade de dialogar entre si, em nome do avanço especializado. O que julgaram vanguarda era apenas desligamento, perda do chão onde nascem suas questões; aceleração ilusória — pois ela não pode existir onde não haja fricção.
Há tempos, a nossa área mostra-se como um jardim de caminhos bifurcados. Para um lado, vão os que se lançaram afoitamente a recolher do chão as migalhas da mesa tecnológica e, para o outro, os que se recolheram a um mutismo magoado, a uma espécie de nostalgia de extinção, em que se sentem tão grandes que devem morrer para não ser contaminados com a mediocridade do presente. Mas essa grandeza é apenas miragem. E esse tipo de bifurcação esquemática não nos interessa — de resto, porque sequer está num jardim, mas num deserto. De um lado e de outro, está o vazio; e o nome mais desolado do vazio é a indiferença. É sempre a mesma indiferença que se esconde sob o automatismo carreirista ou o negativismo imobilista.
Ou seja, para mim, o nosso problema é pessoal e moral, não apenas político ou estrutural. O que talvez confirme o horizonte reduzido de minha fala, sendo ela própria efeito do encolhimento a que fomos levados com os cortes orçamentários e a reificação dos limites de nossas práticas. Não excluo, de modo algum, essa possibilidade. Mas podemos renunciar a uma ideia moral e pessoal, quando falamos de fenômenos sociais e culturais? Não creio, por mais que eu também eu queira ser realista e progressista.
Lembro aqui Gramsci, quando ele considera que a “indiferença” da maioria da população pelos acontecimentos públicos constituía um misto de “abulia”, “parasitismo” e “velhacaria” que é, ao mesmo tempo, um “peso morto da história” e uma espécie de “fatalidade” que “opera poderosamente na história”. Pois a indiferença, o absenteísmo, o negativismo, a acomodação são nossa própria fatalidade. A formulação paradoxal de Gramsci, de que aquilo que, indiferentes, deixamos que aconteça, revém como desastre para nós, esclarece a sua ideia de que o que ocorre ou deixa de ocorrer se dá, não tanto “porque alguns querem que ocorra, como porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer(…)”. Pois então, depois de deixar fazer, imaginamos que os acontecimentos que sobrevêm são um “enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, do qual todos são vítimas” – e isso é o mesmo que dizer que nos absolvemos de ter qualquer responsabilidade em sua ocorrência.
No imobilismo de nossa área, uns se queixam, outros proferem impropérios não distantes da insolência juvenil, mas são poucos os que se perguntam se a ação da vontade a que renunciaram em seu quotidiano poderia ter interferido nos eventos tais como se deram. Alguns chegam mesmo a vislumbrar teorias astutas para explicá-los ou, então, proclamam soluções a posteriori para tê-los evitado. Sinto, mas agora é tarde. Quem não se comprometeu a tempo, segundo a urgência da ocasião, que só pode ser agarrada de frente, não pode tampouco apresentar soluções verdadeiras.
Para Gramsci, incorporar um “sentido de responsabilidade histórica” diante da vida se distingue desse tipo de racionalismo abstrato, de iluminação intelectual que sempre chega atrasada, mas não se inibe de vir pontificar sobre os eventos, porque supõe que só ela pode entender a vida do Espírito. A responsabilidade oposta à indiferença opõe-se também a esse tipo de idealismo pedante, que só se apresenta depois da crise. Ao contrário, ela reside na compreensão de que tudo que é vivo solicita analogamente vida, compromisso; vale dizer, exige que a vontade e a inteligência estejam intrinsecamente vinculadas às mudanças que desejam promover.
Assim, para confrontar a “lamúria dos eternos inocentes”, Gramsci – mas poderia ser Vieira – pede-lhes a “conta das tarefas” que lhes cabiam, isto é, o relato do que fizeram e, ainda mais, do que deixaram de fazer. E então, à maneira de Virgílio, quando repreende a frouxidão do espírito de Dante ao apiedar-se dos precitos, adverte-nos que é um desperdício dispensar piedade aos indiferentes.
Quanto aos administradores, gerentes, burocratas da Educação, está bem claro que não convêm esperar deles o encaminhamento da harmonização de nossa realidade. O mesmo Gramsci pode nos ajudar a enxergar por quê. Aos gerentes, aos especialistas do mantra da gestão eficaz, falta-lhes o mais importante: aquilo que ele nomeia com o conceito de “fantasia dramática”.
Como interpretá-lo? Penso na “fantasia dramática” como significando a força moral que nos liga sensivelmente aos fenômenos sociais, sem esquecer o que neles se deve à infelicidade e ao sofrimento quotidiano dos indivíduos. Desse ponto de vista, também o movimento consequente para a nossa compreensão das áreas de Humanidades está condicionado à nossa capacidade de fantasia dramática, isto é, de experimentar um “sentimento do mundo” propriamente dito –, que até a guerra, com sua imensa carga de sacrifícios inúteis, pode tornar palpável, mas não a carreira reduzida a um automatismo anódino, obnóxio em relação ao encargo de pensar e criticar, mas, muito logicamente, entregue à labuta do emprego.
O problema é, portanto, muito mais grave que enfrentar uma tropa de gerentes dinâmicos, com missões internacionais e formidáveis visões de futuro: temos de reencontrar em nós mesmos o drama interior, intelectual e afetivo, que acolhe a imaginação e a dor para resistir à crueldade e ao caos.
Tateio aqui as metáforas de Gramsci, pois não percebo, hoje, nada mais urgente e imperativo que o esforço de construirmos um vocabulário alternativo para a ideia de pensamento sobre os fenômenos sociais, que chamamos de Humanidades. Padecemos, hoje, do que o historiador Tony Judt chamou, certa vez, de “deficiência discursiva”, uma incapacidade crônica de repensar a vida social como “híbrido” viável, para além dos clichês da noção de coletividade e ainda mais da de “comunidade”, científica ou qualquer outra, pois esses clichês não incorporam pra valer quem venha desafinar o coro.
Em parte, são esses clichês que operam a preocupação com as políticas de identidade que têm dominado as Letras e o grosso das Humanidades nos últimos anos. São políticas tão autocentradas no horizonte de suas intervenções como as amizades ligeiras das redes sociais, nas quais para se conectar tem-se de estar de acordo. Nesse processo, que Judt chama de “maximização de subjetividades”, o grupo que importa é sempre aquele no qual só há semelhantes.
Portanto, a rigor, a equação do nossa crise de agora, a crise de depois da crise, que está em reconhecer que o desastre é verdadeiramente nosso e não da natureza, é também e principalmente literária. O que significa dizer que a nossa tarefa é a de inventar palavras carregadas de nova disposição anímica. Mas onde encontrá-las fora do diálogo, da fidelidade à própria experiência de vida, da exigência do “novo” que só vamos encontrar mergulhados no legado cultural –, o que também, e sobretudo, implica na coragem de discordar? Com Judt, acredito que esse é o “sangue vital” das sociedades mais abertas e o valor mais radical a se legar aos mais jovens.
Muito obrigado a todos pela paciência e atenção.
[1] O texto a seguir, com modificações, retoma conferência pronunciada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, no dia 7 de maio de 2015, como abertura do congresso internacional “No Coração do Mundo: Ciências em rede num Mundo Global”, por iniciativa conjunta da FCSH/NOVA e das Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra, de Lisboa e do Porto. See more at: http://www.fcsh.unl.pt/media/noticias/no-coracao-do-mundo-ciencias-em-rede-num-mundo-global#sthash.6VXGQVSQ.dpuf; com poucas alterações, foi também apresentado na Congresso da Enanpoll-2015, no dia 7 de julho, na USP.