Os períodos nos quais o Estado teve papel central no desenvolvimento econômico sempre foram acompanhados por um ataque contra sua intervenção no dito bom funcionamento dos mercados. Foi assim durante todo o século XX. E tem sido assim mesmo após a recentíssima crise financeira de 2008 e a recessão econômica em nível global: depois de um breve período – logo após estourar a crise – durante o qual todos concordavam que o Estado tinha um papel chave na salvação dos Bancos Centrais e no impulso ao crescimento, graças ao estímulo econômico, de repente, passou a prevalecer a opinião dos que viam com alarme o aumento da dívida pública (considerada, de modo equivocado, como causa da crise, quando, ao contrário, é efeito dela, em virtude de menor arrecadação, devido aos salvamentos cada vez mais onerosos, e assim por diante). Isso significa que a austeridade voltou a ser o prato do dia, enquanto qualquer medida mais consistente de política econômica e industrial tornou-se tabu.
O que a política não percebe é que, ao longo de toda a história do capitalismo moderno, o Estado fez – e continua fazendo – aquilo que os mercados simplesmente não fazem. Sem o Estado desempenhar esse papel, o crescimento fica estanque. Não estou me referindo ao Estado que se limita a reparar as “ falhas do mercado”, mas ao Estado que cria e dá forma, diretamente, aos mercados
Vamos tomar como exemplo o sistema financeiro. Um sistema financeiro eficiente e que funciona deve, em teoria, prover os capitais necessários para o desenvolvimento da economia, favorecendo o crescimento econômico e o aumento do nível de vida. Um dos bancos mais importantes dos EUA chama-se Chemical Bank pelo fato de, originariamente, financiar o setor químico (hoje é impossível pensar que um banco possa estar focado, a tal ponto, na economia real). Nos últimos anos, porém, o financiamento bancário não sustentou os investimentos ou a inovação da economia real, mas financiou … a si próprio. A partir dos anos 1970, as inovações nesse setor, conjugadas com a desregulamentação, tornaram mais fáceis a obtenção de proveitos com investimentos especulativos em atividades financeiras.
Entretanto, para garantir os fundos necessários ao desenvolvimento da economia é necessário um financiamento paciente, de longo prazo. Nos EUA, a revolução informática foi, inicialmente, sustentada pelo financiamento paciente disponibilizado por uma rede de agências públicas, mission-oriented e com abordagem estratégica, como a DARPA, no interior do departamento de Defesa, os National Institutes of Health – no interior do departamento da Saúde; a National Science Foundation, a NASA e o programa Small Business Innovation Research (que forneceu mais financiamentos de alto risco, nas fases iniciais das empresas de todo o setor do venture capital).
Recentemente, a revolução verde foi, também, financiada por agências desse tipo, como a Arpa-E, no interior do Departamento de Energia norte-americano, ou por empréstimos garantidos como os fornecidos à Tesla (por uma quantia próxima dos 500 milhões de dólares de fundos públicos). Em alguns países, como a Alemanha e a China, esse tipo de financiamento (paciente) é garantido pelo setor bancário público; a KfW, na Alemanha, e o Banco Chinês para o desenvolvimento da China, na China, desempenham um papel-guia na transformação, em sentido ecológico, da economia de seu país (o próprio Bill Gates demonstrou ter consciência disso, quando pediu aos governos que passassem a liderar a revolução verde, conforme haviam feito com a revolução informática).
Mesmo num país como a Inglaterra – que no imaginário da opinião pública representa o liberalismo por excelência (doutrina econômica que propugna um sistema baseado na livre concorrência e que limita a intervenção estatal a serviços de interesse público) – foi graças à intervenção pública que a Rolls-Royce, nos anos 1970, conseguiu recolocar-se de pé, e – mais recentemente – foi o Catapult Centre, dedicado ao setor automotivo (os Catapult Centres são organizações públicas que têm a tarefa de promover a pesquisa e a inovação em diversos setores) que permitiram à indústria automobilística britânica voltar à cena: hoje, no Reino Unido, são produzidos mais carros do que na Itália.
Caso italiano, semelhante ao brasileiro?
A Itália continua não dispondo de organizações como essas, com uma visão estratégica. Os problemas da economia são vistos (tanto por Berlusconi, no passado, como por Renzi, hoje) em termos de “ impedimentos” ( taxas, burocracia, etc.) a serem removidos, e não em termos de instituições que devam ser criadas para investir e para criar os novos mercados do futuro. Tomemos o caso da Caixa de depósitos e empréstimos italiana: até agora nunca funcionou, propriamente, como um Banco público, limitando-se, no máximo, a investir em infraestruturas e a facilitar as firmas privadas, em lugar de realizar investimentos estratégicos e inovações capazes de criar novos mercados, inovações essas que viriam a ser seguidas por investimentos privados.
É isso que fazem a KfW na Alemanha e o Banco Chinês para o desenvolvimento da China. Não está claro, ainda, quais são os rumos da Caixa de depósitos e empréstimos, se terá mais uma troca de assentos ou se sofrerá, realmente, uma mudança de rota. O que é certo é que sua importância é vital para a Itália. A recapitalização é importante e os últimos investimentos em banda larga positivos, porém, insuficientes para o século XXI: é preciso caminhar para uma nova direção.
Qual direção? Para o futuro da Itália é fundamental limpar o campo do estático debate “público contra privado”. Ambos são fundamentais. O problema é como promover colaborações sinérgicas que permitam ao setor público, juntamente com o setor privado, manter uma vizinhança capaz de abordagens corajosas e estratégicas e de estabelecer a direção da mudança e, em lugar de limitar-se em absorver os riscos, facilitar, administrar, subvencionar e incentivar. No que se refere à instrução, à saúde, às energias renováveis, ou ao futuro da microeletrônica, o problema não deve ser o de “ abrir-se ao mercado” (basta ver o bem que fez a Telecom Itália), mas o problema deve consistir em como estruturar e modelar o mercado por meio de investimentos públicos e privados, que permitam a um setor tornar-se mais dinâmico, inovativo e focado nos investimentos.
Ao contrário, seguindo a tese de que os investimentos são coisas que cabem ao setor privado e que o setor público existe apenas para regulamentar, subvencionar ou salvar quem está periclitando, quando a coisa está mal parada (absorvendo a parte bad e deixando aos privados o gozo da parte good), acaba-se dentro de uma profecia que se autorrealiza, na qual o setor público, justamente porque não vemos para ele um “papel” efetivo, além daquilo que já foi mencionado, se encontra em falta não apenas de financiamentos, mas também de imaginação.
Quando um setor não tem imaginação, morre. Torna-se irrelevante e – obviamente — mais fácil de ser atacado. No setor público italiano ocorre um círculo vicioso que está contribuindo para enterrá-lo. Apenas quando a visão se torna a de se criar juntos um novo futuro, em lugar de deixar que uma parte se incumba de catar os cacos, enquanto a outra continua realizando proveitos de curto prazo, poderemos nos subtrair da mesmice de que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
Para saber quem é Mariana Mazzucato clique em http://marianamazzucato.com/about-me/short-bio/