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Linguagem: debacle cultural leva EUA à crise econômica

O grande paradoxo da década pós-11 de setembro é que o evento traumático, que nos deveria ter tornado mais atentos ao mundo exterior, ao contrário, deu origem a um curioso fenômeno insular – uma virada para dentro em que o campo pessoal ocupou mais uma vez o lugar do político.

Ameaçados, de fora, por forças que nos pareceram esmagadoras e “incontroláveis” e, ao mesmo tempo, obcecados por uma conversa interminável a respeito de vigilância e de segurança, muitos de nós, americanos, se voltaram, com certo alívio, para a dimensão local – para aquilo que faz com que nos sintamos melhor.

A própria linguagem da década expressa a ansiedade americana em relação ao mundo exterior. Falar sobre o “terceiro mundo” e as “nações emergentes” reafirmou nossa confiança e nosso senso de controle, como país de “primeiro-mundo”, que, entretanto, abandonou a onipresente expressão “nosso planeta” para aderir ao lema “como salvar nosso planeta”. Há uma década, sob os signos do “simulacro” de Baudrillard e da “diferença” derridadiana, a representação pós-moderna e sua ambiguidade nunca teriam tolerado um substantivo tão genérico quanto “planeta”. Ele teria sido rejeitado como algo desesperadamente essencialista: como poderíamos conhecer todo o planeta e ainda mais chamá-lo de “nosso”?

Quando a maioria dos norte-americanos fala em “salvar o nosso planeta”, faz isso a partir de um ponto de vista míope: refere-se, na verdade, ao “meio-ambiente” que experimenta todos os dias, com suas freeways asfaltadas para os seus sport-utility vehicles (veículos utilitários desportivos), seu abundante desperdício de garrafas plásticas e seus excessos absurdos de consumo de eletricidade e de água. Nesse contexto, uma seção do Whole Foods Market deve parecer reconfortante, mas, tenho que indagar, e quanto àqueles lugares do planeta em que não há eletricidade o bastante para se falar em excesso ou onde não há nenhuma fralda de papel para entupir os aterros sanitários? Melhor não pensar a respeito deles, para que nos concentremos em questões como a obesidade infantil (a causa de Michelle Obama) ou a relativa eficácia dos diversos protetores solares que se encontram no mercado.

A linguagem dos novos estudos animais é outro assunto em pauta. Em sua “Guest Column: Why Animals Now?”, publicação especial sobre estudos animais da PMLA (Março 2009), Marianne DeKoven escreve que o interesse em animais está “baseado em uma premissa mais amplamente generalizante: a ideia, ou convicção, de que a espécie humana está destruindo e talvez tenha, irreversivelmente, destruído o planeta”. Ela afirma: “eu penso que muitos rejeitaram nossa própria espécie, desalentados por aquilo que ela tem feito de perverso contra outros animais, uma posição adotada por aqueles que nos chamam a atenção para a ética, e, igualmente, para muitas das coisas que, em nossos vários modelos de ética, nós valorizamos, tais como a pureza de sentimento, o altruísmo não egoísta, a ausência de genocídio, a eliminação da violência aleatória e gratuita e a conexão com aquilo que é, para nós, uma poderosa fonte de experiência espiritual”.

Compartilho a dor e a desilusão dos americanos acerca de seus políticos e da política atual, entretanto, com um reparo: desde que venham acompanhadas de uma reflexão que nos possa conduzir a  uma crítica consistente, que, de fato, embase a conclusão da obsolescência de nosso sistema político;  mas essa conversa apocalíptica de a espécie humana estar destruindo o planeta é feita na curiosa negação tanto da história quanto da geografia, revelando uma das características desse momento americano pós-11 de setembro. DeKoven sabe muito bem que, na verdade, não podemos simplesmente nos afastar ou rejeitar nossa espécie em desalento e voltar nossa atenção para os outros animais, aparentemente menos violentos e mais altruísticos. Esse é um truque retórico utilizado para dissipar a suspeita, “inoportuna”, de que a América não é mais o nº 1 do mundo, de que nossa vulnerabilidade ao ataque é um índice da perda de poder, que está rapidamente conduzindo outras nações para o primeiro plano.

Os americanos precisam aprender inglês

Há, ainda, a questão da linguagem em si. Logo após o 11 de setembro havia inúmeros discursos sobre a necessidade de se aprender a língua dos ofensores, especialmente árabe. De acordo com estatísticas da Modern Language Association, mais de vinte mil pessoas nos EUA se inscreveram em programas de educação superior em árabe em 2006, o dobro do número registrado entre 1998 e 2002. A demanda por profissionais falantes do árabe foi considerada como essencial para os propósitos de segurança nacional. Mas as estatísticas são enganosas. Segundo um representante do National Resource Center da Universidade de Brigham Young, em 2007, daqueles vinte mil estudantes, “é provável que nem mesmo cinco por cento se gradue com proficiência e fluência”. E, nos níveis elementar e secundário, o índice de abandono em cursos de árabe foi estimado em 75%.

Por quê? De acordo com o relatório, o árabe é uma língua extremamente difícil, em especial para aqueles que nunca tiveram nenhum treinamento em outra língua estrangeira. Além disso, também há, nos Estados Unidos, uma carência de professores de árabe. Suspeito, entretanto, que a causa real esteja em outro lugar. Ao longo da década passada, esse desejo vago por uma reforma linguística apressada, que incluísse o árabe, por exemplo, deu-se a partir da convicção insular de que o inglês é, afinal, a língua global e, em consequência, suficiente a todos em todo o mundo. Note-se que o relatório em tela informa que, no Egito, as pessoas não se baseiam em traduções simultâneas de entrevistas com diplomatas ou políticos estrangeiros, mas sim nos relatos de jornalistas “globais” de norte-americanos como Anderson Cooper, um medalhão, que, a despeito do epíteto “360 graus”, é roteirizado por aquilo que as pessoas que têm apenas algumas noções de inglês querem ouvir. Quanto à academia, a grande novidade foi a redução drástica de programas de literatura comparada e de ensino de línguas estrangeiras modernas; algumas delas foram  simplesmente eliminadas.

É comum justificar tais cortes pela debacle da economia. Mas o fator insular corrente já estava instalado antes de a economia sucumbir. De fato, quando olharmos em retrospectiva para os últimos dez anos, nós vamos reconhecê-los como a década em que os Estados Unidos dormiram, atolados em preocupações quanto à segurança (eu vou deixar esse agente aeroportuário encostar em mim?) e à vingança (qual dos líderes da Al Qaeda é o nosso alvo de hoje?); a década na qual seus cidadãos ficaram tão absorvidos por assuntos pessoais que ignoraram a realidade evidente de que o poder foi rapidamente se transferindo para outros lugares – não para o demonizado Oriente Médio, mas para esses novos centros como a China, a Coreia do Sul e o Brasil.

Acabo de voltar de uma estadia incrível de uma semana no Rio de Janeiro, para participar, entre outros eventos, do lançamento da bela edição em português realizada por André Vallias da poesia, correspondência e dos ensaios do grande poeta romântico alemão Heinrich Heine – evento coberto pelos maiores jornais e redes de televisão brasileiros. O Brasil, hoje, é um país independente em termos energéticos, transpirando afluência, otimismo, energia e dinamismo cultural em comparação com os EUA.

Talvez, agora que já se passou uma década inteira desde o 11 de setembro, seja tempo de olharmos para fora. O crescente e tedioso discurso de autorreflexão – baseado na premissa de que nós somos os líderes do “mundo livre” – deve ceder à uma percepção mais acurada de quem somos e de onde estamos em relação às nações e às culturas existentes em nosso “imenso quintal global”. O estudo de línguas – não apenas de línguas “estrangeiras”, mas também da nossa própria língua – nos ajudará a lidar com a realidade que, como observa Wallace Stevens, “we are not / At the center of the diamond” [1].

Tradução: Marcelo Flores

*

From “Adagia”, XI
Wallace Stevens

Life is a bitter aspic. We are not
At the centre of a diamond. At dawn,
The paratroopers fall and as they fall
They mow the lawn. A vessel sinks in waves
Of people, as big bell-billows from its bell
Bell-bellow in the village steeple. Violets,
Great tufts, spring up from buried houses
Of poor, dishonest people, for whom the steeple,
Long since, rang out farewell, farewell, farewell.
Natives of poverty, children of malheur,
The gaiety of language is our seigneur.

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Notas

[1] Em tradução livre: “não estamos/ No centro do diamante.


 Sobre Marjorie Perloff

Professora emérita de Inglês na Universidade de Standford, autora do livro Unoriginal Genius: Poetry by Other Means in the New Century (University of Chicago Press, 2010) e membro do Conselho editorial da Sibila.