(Unde tá vai?: história de um amor sínico)
Uma terra também pode ser só palavras, aquilo que se diz que ela é, sem que nunca jamais se saiba ao certo quantos grãos de pó, quantas camadas de sedimentos ou que chão seja verdadeiramente o seu. Macau é assim, com a sua vocação estúrdia e grandiloquente, o seu centro tão íntimo e as suas margens tão ostensivas onde por vezes se vê por uma ténue brecha a tessitura da representação, um ou outro pedaço de argamassa ainda fresca. Olhamos para o todo ou para o lado, aceitamos a imitação. Ou talvez seja assim mesmo, talvez Macau sejam as cópias, os fakes, as edificações recentes e histriónicas, sem memórias nem história, todos esses objectos que se impõem no momento com a sua perfeição questionável mas tão conforme ao lugar e o centro seja só uma miragem, aquilo que se gostaria que Macau fosse: um coração a pulsar, uns lábios que se entreabrem e uma respiração que sobe pelas costas como um sentido primordial num ciclo que se repete e perdura. Um amor que se deseja mas que não se sabe se realmente aconteceu. Se os filhos da terra são mesmo frutos deste ventre ou meras personagens ocasionais de uma ficção que nos é tão querida, a da nossa vocação épica de portugueses viajantes intrépidos capazes de dar mundos ao mundo. Não, não se sabe se não é um amor estéril, sem frutos.
Macau é uma cidade ou um amontoado de clichés e de espaços labirínticos onde é fácil perdermo-nos, pelos quais somos arrastados à descoberta de um coração que seja o seu e que queremos que seja aquele que pulsa em palavras compósitas como multiculturalismo, miscigenação ou noutras tão inteiras como identidade. E não o da história de uma posse sem entrega partilhada ao longo de séculos, a de uma mulher que se deixa possuir por não vislumbrar outro destino ou para assegurar o seu status quo. A história que ecoa na visão de Camilo Pessanha, de um comércio tolerado e mestiçado, de um encontro contraditório sem um intercâmbio essencial e significativo: «Em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas […] e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa»[1].
Queremos que Macau seja uma história nobre onde sejam visíveis os frutos de um amor centenário, mas não é certo que esse amor exista. Claro que há sempre palavras afanosas como tangível e intangível e o seu património mítico, as Casas Museu da Taipa, a San Malo e a Misericórdia, o Farol da Guia e a Fortaleza do Monte, o Teatro D. Pedro V (que é o mais antigo teatro europeu da China), o patuá (dialecto sino-português) ou a culinária macaísta e está encontrada a prole desse amor mais almejado do que real. Mas esse é o espaço idealizado e moribundo do nosso afecto, porque o dia-a-dia é vertiginoso e tem o seu próprio sentido e flui na sua própria direcção. E quotidianamente encontra as suas palavras e constrói a sua realidade e não creio que haja uma casuística que permita dizer o que isto é.
Macau foge-nos entre os dedos. Metamorfoseia-se diariamente, escorre pelas ruas no som cru e ácido dos tambores tocados pelos rapazes que vão fazer a dança do leão do norte e do sul empoleirados em pequenas camionetas misteriosas, no estertor dos panchões desfeitos em papéis vermelhos que atapetam as familiares pedras de basalto e calcário do chão. Nas caras imberbes, nos olhos líquidos, na pele sedosa e imaterial das pessoas com quem nos cruzamos. Encanta-nos o corpo, agarra-nos a carne e dá-nos um murro na alma, faz-nos sentir daqui desde sempre mesmo sabendo que a cidade e o seu discurso são só um fogo-de-artifício. Mas não é amor. Macau é uma serpente ou uma pele de cobra. Tem um coração secreto e às vezes acho que caberia no meu peito.
[1] PESSANHA, Camilo. Macau e a gruta de Camões. In.: Contos, crónicas, cartas escolhidas. Org. António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1988