Do livro O Soldado Antropofágico
Durante muito tempo, quando nos olhávamos no espelho desde um certo modo de ser brasileiros, por vezes víamos, alguém via, coisas que pareciam muito belas. Daquele ponto de vista, aquela perspectiva que nos era cara, tínhamos a famosa visão do paraíso, uma imagem utópica que emanava de nós mesmos, com a qual desejávamos sonhar e viver em ilusão partilhada: uma terra onde o homem sempre foi cordial, e a mulher, especialmente sensual. Tal imagem íntima e coletiva, que se ofereceu com facilidade à indústria da imaginação entre nós, falava muito de uma terra boa, de uma terra gostosa, onde se canta o samba que dá e a morena é sestrosa. Uma terra onde a baiana tem, e entra na roda, deixando a moçada com água na boca. Um mundo conhecido, aquele nosso, entre o desejo e a imaginação, em que garotas lindas andavam por Ipanema, malemolentes e leves, cantando canções infantis ou sambas enredo felizes para o Pão de Açúcar, enquanto os homens mais velhos, pensando na beleza que existe, sonhavam em levar o seu samba moderno para o Carneggie Hall de Nova York. Um mundo que expandia de muitos modos o seu afeto imaginativo sobre cada um de nós, desde a terra até suas mulheres, homens e projeto, muito mais anseio do que lei.
Assim um mundo bom se configurou no Brasil, no qual os pobres tinham um violão e também um fusca e uma gravata florida. Onde eles amavam muito a seleção e o flamengo e tinham uma nega linda, chamada Tereza. Talvez ela fosse até mesmo uma mulata trigueira e exuberante, de Di Cavalcanti, ou uma baiana que não era falsa, mas, ao contrário, frajola, com um verdadeiro requebrado do lado que mexia com o juízo do homem que ia trabalhar. Ela era mesmo, como ouvimos tantas vezes, beleza pura, de pele escura, de carne dura. Aqui era o lugar em que, na casa dos nossos pobres, se comia o famoso feijão da Vicentina, todo mundo era bamba e a menina dança, quando se dizia oba!, salve a Bahia senhor! Um país abençoado por Deus, onde os mais antigos nobres e pastores de nossa inexistente, mas sonhada, Arcádia da Colônia Ultramarina de Vila Rica não eram mesmo um qualquer, e onde, mais de uma vez, chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar o seu valor. Bonito por natureza, parecia ser um fato de origem que no Brasil até os sabiás e as palmeiras eram ainda mais belos do que em qualquer outro lugar da terra. E, para lá, ou para outra Pasárgada ainda melhor do que tudo isso, um passeio por Copacabana, gostosa quentinha, cheia de bugigangas e suas meninas, onde sonham os inocentes do Leblon, ainda voltaríamos, um dia. Talvez não todos, mas cada um de nós.[1]
Um mundo, aquele nosso, em que os heróis calçavam chuteiras imortais, os nobres e os reis eram Didis e Pelés e, quando não se tinha onde morar, se morava na areia. Um país que certamente tinha ouvido musical, em que o Tio Sam queria conhecer a nossa batucada, onde o artista mais moderno dançava na praia, com as capas esvoaçantes da Mangueira, era marginal e era herói, e iluminava os terreiros, os terrenos baldios, porque nós queremos sambar e que, na Casa Branca, já dançou a batucada de ioiô e iaiá. Uma iaiá branca e elegante que o senhor amava e desejava ao modo sereno do devaneio, quando não estava possuído e possuía a sua concreta mucama excitante.
Um país no qual, quando o lindo poeta baiano era preso por algum claro enigma qualquer, também chamado Brasil, ele saia da prisão direto para Londres, cantando suas memórias do cárcere com infinita alegria utópica: alô, alô, realengo, aquele abraço. Um mundo desejado, vivido, alucinado, em que os patriarcas, os saudosos pais fundadores dessa espécie de nação, de origem ibérica portuguesa, católicos, fidalgos e tardo liberais, sonhavam com o futuro mais digno possível, a nação como “Tristeza do império”, nas palavras do poeta nacional em Sentimento do mundo:
Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra-li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e sorvendo mecânicos uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de
Copacabana,
[com rádio e telefone automático.
Um mundo projetado assim, erótico e triste, bom e violento, onde um dia todos deitaremos à sombra de uma palmeira, que já não há.[2]
[1] A respeito da comovente e patética história imaginária da colônia da Arcádia Romana Ultramarina, inventada sonhada por Claudio Manuel da Costa, o seu “vice-custode”, ver Sérgio Buarque de Holanda, “Glauceste acadêmico”, em O espírito e a letra II, São Paulo Companhia das Letras, 1996, e, principalmente, o estudo aprofundado do sentido político cultural da arcádia em Portugal e na sua Colônia Ultramarina de Vila Rica, “Gosto arcádico”, em Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1979. E ver como, a partir de um documento decisivo, adquirido por José Mindlin e lido por Antonio Candido, toda aquela história também se inverte, deixando agora de ser patética e imaginária, e passando a revelar a profunda relação de sociabilidade cultural, base de política, dos poetas mineiros do século XVIII, em “Os ultramarinos”, de Antonio Candido, Vários escritos, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995.
[2] Existiu uma imagem pré-nacional, também oficial, desta dimensão celebratória do Brasil, de vitalismo colonial mercantil e de exploração fantasiada sem limite, que constituiu o duplo cultural e imaginário do famoso impulso edificante futuro que congregou a cultura intelectual do país por vir, em um movimento sempre a favor, mesmo que estranhando a singularidade do caso, aqui ali, ou em ocasião. O espírito vem de muito longe, antes de se tornar ideologia ativa de cultura popular imiscuída à indústria cultural política e de conciliação no século XX nacional. Oliveira Lima recupera uma passagem de Rocha Pita, um acadêmico do século XVII, descrita em um compêndio francês de literatura portuguesa e espanhola do tempo, que dizia assim: “Do novo mundo, tantos séculos escondido e de tanto sábios caluniados, onde não chegaram Hannon com suas navegações, Hércules Líbico com suas colunas, nem Hércules Tebano com suas empresas, é melhor porção o Brasil; vastíssima região, felicíssimo terreno, em cuja superfície tudo são frutos, em cujo centro tudo são tesouros, em cujas montanhas e costas tudo são aromas, tributando os seus campos e mais útil alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus troncos o mais suave balsamo, e os seus mares o âmbar mais seleto; admirável país, a todas as luzes rico, onde prodigamente profusa natureza se desentranha nas férteis produções, que em opulência da monarquia e benefício do mundo apura a arte, brotando as suas canas espremido néctar, e dando as suas frutas sazonadas ambrósia de que foram mentida sombra o licor e vianda que aos seus falsos deuses atribuía a culta gentilidade.” Curiosamente ecos modernizados de tal espírito de “obnubilação” nacional – no termo evocado pelo autor à Araripe Júnior – respingam ainda na própria dicção de uma história oficial da nacionalidade, desde a construção do Estado, como a de Oliveira Lima, em uma passagem como: “A Bahia tornou-se bem depressa uma cidade de igrejas e de conventos. Suas celebrações de culto sobrepujaram em brilho as de todo o resto do Brasil, e o povo, de que os negros formam ainda hoje o complemento mais importante, era um elemento a mais de desordem pitoresca, que punha um relevo de originalidade exótica a esse transbordamento de jovialidade religiosa.” Oliveira Lima, Formação histórica da nacionalidade brasileira, (1911), São Paulo: Publifolha, 2000, p. 101 e 102. Era a vida negra e mestiça do Brasil que começava a ser percebida como alguma cultura, negociada entre o poder econômico e estatal e a rua dos escravizados, com o “complemento” do povo negro participando da ideia de povo brasileiro e gerando tal valor das coisas. Sobre o movimento construtivo e a adesão intelectual brasileira ao projeto de nação orientado desde o alto, ver a sessão “Intelectuais do contra porém a favor”, do ensaio de Paulo Arantes “Ajuste intelectual”, em Desorganizando o consenso, Org. Fernando Haddad, Rio de Janeiro: Vozes, Fundação Perseu Abramo, 1998.