A recente prisão no Brasil, a pedido da Espanha, do terrorista de direita espanhol Carlos García Juliá, condenado a 193 anos de cárcere por um atentado em Madri, em 1977, em que matou a tiros quatro advogados ligados a movimentos sindicais, e o igualmente recente anúncio, pelo governo brasileiro, de extradição do italiano Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua na Itália também por quatro assassinatos entre os anos 1977-79, recolocam no “ordem do dia” a situação política na Europa nos anos 1970, palco da atuação de diversos grupos armados (como os Proletários Armados pelo Comunismo, de Battisti, as Brigadas Vermelhas, também italianas, e a Fração do Exército Vermelho, alemã-ocidental), que estressavam as democracias europeias em pleno “grande estresse” da Guerra Fria – fazendo o atual cenário europeu parecer ameno, assim como faz parecer ameno o clima político no Brasil. O artigo de Pasolini (publicado originalmente no Il Corriere della Sera em 16 de julho de 1974) reforça essa percepção, ao tratar da greve de fome de um ativista italiano, além de também lançar luz sobre o presente barateamento do termo “fascista”. A direita – exatamente como a esquerda – tem mais de um matiz. Felizmente, apesar de tudo, o Brasil não parece próximo da situação de combate, mais do que embate, da Europa dos anos 1970, apesar do que faz parecer a incruenta “guerra de adjetivos” das redes sociais. O substantivo “metapolítica” é apresentado aqui por Pasolini, que também questiona a representatividade dos partidos políticos e dos posicionamentos da mídia, como do importante jornal Il Messagero. Seu tema central é uma greve de fome de um dos mais importantes políticos libertários europeus do século XX, Marco Panella (1930-2016). Um dos fundadores do Partido Radical, promoveu campanhas pela separação do Estado e da Igreja Católica, a favor do divórcio, do aborto, da liberação das drogas, pelos direitos humanos dos então países da Europa Oriental (em 1968, foi preso em Sofia distribuindo panfletos contra o regime stalinista), além de ter sido um dos primeiros grandes promotores da causa ambientalista e da União Europeia, visando o fim das guerras no continente. Neste artigo publicado em 16 de julho de 1974 no Il Corriere della Sera, Pasolini sai em defesa de Panella (que utiliza uma tática política de ação direta para obter objetivos concretos), e ataca a indiferença da política tradicional italiana e a influência dos grupos neofascistas. Sibila
Marco Pannella está há mais de setenta dias em greve de fome: está perto de atingir o limite. Os médicos começam a ficar realmente preocupados, e mesmo assustados. Além disso, não se observa a mínima a possibilidade objetiva de que alguma novidade permita que Pannella encerre um jejum que pode tornar-se mortal (deve-se acrescentar ao caso dos quarenta companheiros de Pannella que aderiram à greve).
Nenhum representante do poder parlamentar (seja do governo ou da oposição) parece, mesmo minimamente, disposto a “comprometer-se” com Pannella e seus companheiros. A vulgaridade de realismo político parece não conseguir encontrar qualquer ponto de conexão com a candidez de Pannella, nem mesmo a intenção de talvez exorcizar e neutralizar o escândalo. Um desprezo teológico o envolve. De um lado, Berlinguer e seu Comitê Central do Partido Comunista Italiano (PCI), de outro, os antigos potentados cristãos. Quanto ao Vaticano, ali os católicos esqueceram há muito tempo que são cristãos. Tudo isso não é surpreendente, e veremos por que. Mas em acolher a mensagem de Panella também têm sido relutantes, céticos e vis os “pequenos” (isto é, aqueles que têm um “poder menor”): por exemplo, os considerados “católicos do Não”; também os progressistas mais liberais (que intervêm em apoio a Pannella como cidadãos anônimos, nunca como representantes de partidos ou grupos).
Pois bem, você irá se maravilhar profundamente, leitor, quando souber as razões iniciais por que Pannella e dezenas de outras pessoas tiveram de usar essa arma extrema da greve de fome em tal estado de indiferença, negligência, desprezo. Ninguém, na verdade, o tem informado, do início ao fim e com um mínimo de clareza sobre tais razões; e, com certeza, dada a situação que aqui esbocei, você pode imaginar todos os tipos de escândalos colossais. No entanto, elas são simplesmente:
1) Uma aparição de quinze minutos garantida na TV estatal RAI para a Liga Italiana do Divórcio (LDI) e outra da mesma duração para Dom Franzoni [para Igreja apresentar seus argumentos]; 2) assegurar que o Presidente conceda uma audiência aos representantes da LID e do Partido Radical, que há mais de um mês a solicitam, sem sucesso; 3) a garantia de que a lei socialista sobre a legalização do aborto será considerada pela Comissão de Saúde da Câmara; 4) assegurar que os proprietários de Il Messaggero garantam não apenas uma lealdade jornalística genérica aos princípios seculares, mas também forneçam informações laicas e, acima de tudo, o direito à informação da minoria secular.
Trata-se como se vê, de petições de absoluta normalidade democrática. A “pureza” dos princípios é mantida perfeitamente atual. Tendo em vista, repito, a completa ausência de informação em que “toda” a imprensa italiana abandonou os leitores sobre Pannella e seus movimento, não me surpreende que se pense que tal Pannella é um monstro. Vamos introduzir Fumagalli [político italiano] na equação. Suas petições são, “em qualquer caso” e “a priori”, irrelevantes. De acordo com o princípio democrático que Pannella nunca nega, o mesmo Fumagalli teria o direito de ser colocado em consideração. O respeito pela pessoa – por sua configuração profunda, em que a sensação de liberdade é formalizada substancialmente, permitindo se articular e se exprimir em um nível, pode-se dizer, “sacralizado” por uma razão secular, também de acordo com ideias políticas concretas muito degradadas – e, para Pannella, a essência de cada teoria e de cada prática política: nisto consiste ele ser escandaloso. Um escândalo que não pode ser integrado, precisamente porque seu princípio, mesmo em termos esquemáticos e populares, tem sanção na constituição.
Esse princípio político absolutamente democrático é atualizado por Pannella através da ideologia da não-violência. Mas não é tanto a não-violência física que importa (o que poderia até mesmo ser colocado em discussão): a não-violência que importa é a não-violência moral: a total, absoluta e definitiva falta de moralismos (“Sustentamos que tudo o que vem de cada um é moral”). Tal é o caminho da não-violência (que repudia até a si mesma por moralista) que leva a Pennella e radicais para outro escândalo: a rejeição absoluta de todas as formas de poder e sua consequente condenação (“Não acredito no poder, e repudio até mesmo a fantasia que pretende ocupá-lo”). Resultado da pureza absoluta e quase ascética destes princípios, que poderiam ser definidos como “metapolíticos”, e uma extraordinária limpeza do olhar posto sobre as coisas e os fatos: isto, na verdade, não se encontra nem na involuntariedade dos preconceitos nem no desejo de compromisso. Tudo é luz e razão sobre esse ponto de vista, no entanto, tendo por objeto as coisas e os fatos históricos e concretos – e o consequente julgamento sobre eles – acaba por criar as promessas de uma inaceitabilidade escandalosa da parte da classe alta pela política radical (“Onde os fascistas sempre estão, senão no poder e o governo?”; “Contra a política dessas pessoas [segue-se uma lista de vários políticos italianos de direita e centro-direita da época], eu entendo que se pode e se deve ser antifascista”).
Então, neste ponto, suponho, caro leitor, que você tenha claro o “escândalo” de Panella; mas também suponho que você esteja, ao mesmo tempo, tentado a considerar tal escândalo como quixotesco e verbal. Que a posição desses militantes radicais (a não-violência, a rejeição a todas as formas de poder etc.) se confunde com a do pacifismo, dos contestadores etc., e que, finalmente, se confunde com a pura utopia, algo até santo e santificado, se suas condenações e suas propostas não fossem tão circunstanciais e tão claramente dirigidas a certas pessoas.
No entanto, as coisas não são assim. Seus princípios, por assim dizer “metapolíticos”, levaram os radicais a uma prática política do realismo absoluto. E não é por tais princípios “escandalosos” que o mundo do poder – governo e oposição – ignora, reprime e exclui Panella, a ponto de transformar, finalmente, seu amor pela vida em um assassinato, mas por sua prática política realista. De fato, são o Partido Radical, a LID (e seu líder, Marco Pannella) os verdadeiros vencedores do referendo de 12 de maio. E é justamente por isso que ele não foi perdoado “por ninguém”.[1]1
Eles foram os únicos a aceitar o desafio do referendo e a querê-lo, com a certeza de uma vitória esmagadora: uma previsão que era fatalmente coincidente com um “princípio” democrático irrevogável (também sob risco de derrota) e uma “avaliação realista” da verdadeira vontade das novas massas italianas. Isso não é, repito, um princípio democrático abstrato (o direito de decisão “de baixo para cima” e a rejeição de qualquer atitude paternalista), mas uma análise realista, que atualmente é a “falha imperdoável” do Partido Radical e da LID.
Em vez de serem recebidos e parabenizados pelo primeiro dos cidadãos da República [o presidente], em homenagem à vontade do povo italiano, prevista por eles, Pannella e seus companheiros estão sendo transformadas em “intocáveis” [no sentido da casta indiana mais rejeitada]. Em vez de aparecerem como protagonistas na tela da televisão, eles não recebem sequer “quinze minutos de fama”. Certamente, o Vaticano e Fanfani [da DC], os grandes derrotados do referendo, nunca poderão admitir que Pannella simplesmente “existe”. Nem Berlinguer e seu Partico Comunista Italiano, os outros perdedores do referendo, podem jamais aceitá-lo como um igual. Desta forma, Pannella é “revogado” da consciência e da vida pública italianas.
Neste ponto, a vitória termina com uma pergunta. A capacidade de Pannella de sustentar a greve de fome tem um limite orgânico dramático. E nada sugere que ele queira sair. O que os homens e os grupos com poder estão fazendo para decidir seu destino? Até que ponto irá seu cinismo, sua impotência e seu cálculo? Não joga a favor do destino de Pannella o fato de que eles têm muito pouco a perder neste momento. Seu único problema, agora, é salvar o que é salvável, e, em primeiro lugar, a si mesmos. A realidade de repente se tornou contrária; a barca do Vaticano, cujos membros consideravam levar a bom termo e em segurança toda a travessia de suas vidas, ameaça seriamente naufragar; as massas italianas estão enojadas deles, e se tornaram, mesmo que seja existencialmente, portadoras de valores com os quais eles tentaram fazer piada, mas que se revelaram verdadeiros valores, capazes de frustrar os grandes valores do passado e de arrastar para a mesma ruína fascistas e antifascistas (hoje). Mesmo o mínimo que eles poderiam ter reivindicado, isto é, uma certa capacidade de administrar, revela uma ilusão terrível: ilusão de que os italianos fariam bem em se dar conta.
São as esquerdas que devem intervir. Mas não se trata de salvar a vida de Pannella. Nem tampouco de salvá-lo fazendo com que as quatro pequenas “garantias” reivindicadas sejam discutidas. Trata-se de pôr em consideração a existência de Pannella, do PR e da LID. E a circunstância quer que a existência de Pannella, do PR e da LID coincida com um pensamento e uma vontade decisivas de ação de alcance histórico. Isto é, que coincidam com a tomada de consciência de uma nova realidade do nosso país e de uma nova qualidade de vida para as massas, até então ignorada pelo poder e pela oposição. Pannella, o PR e a LID tornaram-se conscientes disso com otimismo completo, com vitalidade, com ascética vontade de ir até o fim: otimismo talvez relativo ou ao menos dramático em relação aos homens, mas inquebrantável em relação aos princípios (não vistos de maneira abstrata ou moralista).
Ele propõe oito referendos (reunidos praticamente em um): e o propõe já há anos, em um desafio a todas as propostas da direita clerical (e terminando na maior vitória democrática da história recente italiana). São esses oito referendos (revogação da Concordata entre o Estado e a Igreja, das anulações eclesiásticas, do código militar, de leis contra a liberdade de imprensa e TV, das normas fascistas e parafascistas do código penal, entre elas as contra o aborto, e, finalmente, a eliminação do financimaneto público dos partidos) que demonstram, tanto como gestação concreta quanto projeto de luta política, a visão realista de Pannella, do PR e da LID. Desafiar o velho mundo político italiano nestas questões e superá-lo é a única maneira de mudar a situação em que a Itália está se precipitando, além de ser o único ato revolucionário possível. Mas há muitos interesses miseráveis de homens e partidos contra isso, e é o que Pannella está pagando pessoalmente.
Na vida pública há momentos trágicos, ou pior, sérios, nos quais é necessário encontrar forças para continuar lutando. Não há outra solução. Do estilo epistolar passarei aqui, caro leitor, para o panfletário, com a intenção de lhe sugerir como não cometer, nesta circunstância, o que os católicos chamam de pecado da omissão, ou, em todo caso, de convidá-lo para o jogo, vital, de quem decide executar um gesto “responsável”. Você poderia intervir decisivamente na disputa, aparentemente insolúvel, entre a intransigência democrática de Pannella e a impotência do Poder, enviando um telegrama ou uma carta de protesto para os seguintes endereços: 1. Secretaria Nacional dos Partidos (excluindo, compreende-se, o Movimento Social Italiano [neofascista] e relacionados), 2. as Presidências da Câmara e do Senado.
[1] O referendo foi proposto pela Democracia-Cristã (DC), de centro direita, a fim de revogar uma lei recém-aprovada, permitindo o divórcio na Itália. A lei foi mantida.