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Notícias do circo: o Dante da poesia brasileira

Conhece-se o boi pelo nome. Cláudio Daniel, cujo nome começa com clown, vem muito a propósito se dedicando a ser o palhaço triste da poesia brasileira atual. Já encenou, assim, mais de uma gag sem graça, como “psicografar” uma carta de Paulo Leminski a fim de fazer o velho polaco elogiar, ora, nosso clown, digo, nosso Cláudio.  Sorte do palhaço triste não o haver conhecido quando, digamos, encarnado. Pois Leminski ficava facilmente rubro de raiva na presença de certos tipos. Mais de uma vez presenciei a cena inesquecível dele a pôr porta afora algum sujeito, em sua singela casa da Cruz do Pilarzinho, então silencioso e arborizado bairro de casas de madeira da velha Curitiba, não porque tivesse o pobre cometido qualquer impropriedade, como fazer cocô na sala, ou tropeçar na pequena Estrela, mas sim o crime bárbaro de ser insuportavelmente inesperto, tentando, por exemplo, lamber as botas do próprio Leminski, que costumava usar chinelos. Tremo ao imaginar a figura anêmica, inânime e inerme do nosso clown, digo, nosso Cláudio, frente a um Leminski enfurecido. Seria como ver Hércules investir contra uma lagartixa.

Nosso clown pode ser de fato triste, mas é, porém, audaz: pratica intensamente o aikidô. Sei que o pratica, e que sua prática é intensa, porque é intensa a sua prática de anunciar que pratica aikidô. E isso só faria algum sentido se houvesse uma correspondência direta entre a quantidade da prática e a quantidade do anúncio. Apesar disso, desconfio que se dedique, na verdade, a outro esporte, que também anuncia com voragem, porém menos coragem, e que denomino, inspirado pelo próprio, de aiquedó: ai que dó eu, Cláudio, um clown triste e um triste clown, tenho de mim mesmo. Trata-se, em todo caso, de um caso exemplar: exemplar do ocaso da MPPB (minha pobre poesia brasileira). Pois a triste tristeza do nosso clown não é um caso particular.

Sim, como todo herói, mesmo os mais tristes, ele exacerba as características da época, mas delas, portanto, comunga, e na verdade as expressa, ou não seria um herói, apesar de triste. Não se pense, porém, no Cavaleiro da Triste Figura, pois a despeito de nosso clown poder ter contado, até há bem pouco, com os concursos salvadores de seu próprio Sancho Pança, jamais investe contra nada. Em compensação, investe muito em causa própria. A pobre causa de um triste tipo.

O exemplar perfeito

O que me lembra a teodicéia de Brás Cubas, que assim questionava a (in)justiça divina: “Ela era bela e era coxa. Mas, se bela, por que coxa? Se coxa, por que bela?”. Nosso clown ama o mar calmo, cujo nome é Marasmo, da poesia brasileira atual, onde nada de costas (e não acrescentarei: também nada de frente) em meio a um cardume de Cláudios Daniéis. Trata-se, como eu disse, de um exemplo e de um perfeito exemplar. Mas, se exemplar, por que triste? Por que triste, se exemplar? Porque quase todos os poetas são hoje meio tristes, com cara e jeito de quem chegou tarde na festa. E chegaram mesmo. Depois de Karl Tudo-o-que-é-sólido-se-desmancha-no-ar Marx e de Teodor Como-fazer-poesia-depois-de-Auschwitz? Adorno, esperar ainda algum lugar de lustro, algum porvir ilustre para a poesia e os poetas, só sendo bem pateta – o que, se é de fato uma rima, está longe de ser uma solução. Pois não há nenhuma solução (um homem faz o que precisa fazer pelo motivo bastante de que precisa fazê-lo; o resto é história, ou circo). Há, porém, incontáveis solucinhos, como os do nosso clown.

Mas em compensação, também há uma ou outra rósea sinecura, florido prêmio de consolação de alguma sensível instituição para as soluçantes tristezas insolúveis da poesia atual e, principalmente, dos atuais poetas. Como a que o nosso feliz triste clown pôde cultivar até há pouco, quando, por algum motivo ignoto, ignóbil e energúmeno, foi abruptamente expulso do jardim. A vida, que era um mar de rosas, tornou-se-lhe um triste caminho de espinhos.

Saiu então o nosso clown a pedir aos passantes que lhe dessem um chinelinho, pelo amor de Orfeu, o deus dos poetas. O que o fez lembrar das origens orais da poesia, pondo portanto a boca no trombone – isto é, um pedido de auxílio na internet. No qual, para resumir, com mui digna humildade, ou com tanta humildade que é digna de nota,[1]afirmava aceitar fazer qualquer coisa, com a possível exceção de beijar na boca, numa atitude radicalmente poética, pois, como se sabe, poiésis, na raiz grega, significa precisamente fazer.

Eis que agora nosso clown, afinal liberto de toda humildade (gasta na performance anterior), usa todos os pálidos neurônios (todos os neurônios são pálidos, pois as membranas celulares são feitas de gordura; mas alguns têm sinapses luminosas) para tecer uma crítica à crítica. Gesto de verdadeiro arrojo intelectual. Verdade que o arrojo não passa, afinal, do título: não porque o título seja especialmente longo, mas porque o arrojo era particularmente curto. Mas já será alguma coisa.

Alguma coisa assaz triste, pois o murcho textículo não enganaria nem um coala, cândido marsupial arborícola com jeito de bicho de pelúcia, se acaso coalas soubessem ler. Pois se não tem uma ideia sequer, tampouco qualquer novidade, não está ali para isso: sua única razão de ser é “dar uma cutucada” (não é mesmo audaz nosso triste?) em Sibila, por esta ter o deseducado hábito de desafinar o atual corinho dos contentinhos poéticos, de que nosso clown é uma das vozes mais agudas, digo, audíveis.

Senão, vejamos. A tal crítica à crítica, apesar de seu título memorável (“Diário de um anticrítico”– memorável porque traz à memória o fato de se tratar de uma expressão criada por Augusto de Campos, livremente incorporada por nosso infeliz clown [http://cantarapeledelontra.blogspot.com/]), não tem, como dito, ideias nem novidades, pois se limita a reunir, com triste mas mui brasílica preguiça, um conhecido rol de erros de avaliação da história literária (deixando porém de lado alguns dos casos mais interessantes, como a recusa de André Gide, então leitor da Gallimard, em publicar o romance de um certo Proust). A pergunta que, portanto, assalta o cérebro tristemente entediado do leitor é: mas, catso, qual a razão disso? Porque não se trata de crítica à crítica, já que não há nem sombra de argumento sobre coisa alguma; porque listar erros da crítica não diz, em si, nada sobre nada, além do fato surpreendente de que os críticos são humanos; e porque os poucos casos listados são sobejamente conhecidos. O triste textículo não tem razão de ser… A não ser que tenha! Pois todo palhaço, por mais triste, tem sempre uma intenção e uma esperança toda vez que adentra o picadeiro.

A intenção, aqui, é mais do que evidente, ainda que nosso clown tenha tentado tristemente desviar a atenção de seu truque, ao fazer da afirmação que é o motivo de tudo uma pequena frase, semioculta bem no meio do textículo – cuja razão de ser não é outra, afinal, senão cercar tal frasesinha…: “[Tudo] isso sem falarmos das barbaridades cometidas por certos críticos contemporâneos (vide revista Sibila)”. Assim, numa centralidade quase exata, há 13 frases antes desta e 18 depois, todas dedicadas a listar notórios erros críticos do passado.

A conclusão implícita nesse arranjo (nosso clown é triste, mas não é bobo) “demonstra” que, no passado, tais e quais críticos erraram sobre tais e quais escritores, todos entre os maiores de suas épocas, assim como hoje Sibila erra. Portanto, os autores sobre os quais Sibila erra estão entre os maiores de hoje… Incluindo, surpresa!, o nosso clown! De fato, Cláudio Daniel é, quiçá, o Dante da MPPB, que apenas os críticos de Sibila são barbaramente incapazes de reconhecer. Não disse que era um clown deprimente, digo, de primeira?

 


1. Em nome de nossa memória lítero-histórica, reproduzo as passagens mais pujantes, que são também as mais pungentes, e sem qualquer pundonor, do referido documento: “Estou há exatamente nove meses sem emprego. Tenho 46 anos, e nunca em minha vida fiquei tanto tempo sem trabalho. O meu curriculum está no Catho, mas só tive duas entrevistas até agora. Busco vagas de revisor, preparador de textos, redator, editor assistente, professor de literatura […] Já me cadastrei no “Trabalhe Conosco” dos sites de dezenas de empresas e sempre consulto os cadernos de empregos aos domingos. Tudo o que consegui, até hoje, foram uns poucos frilas que não cobrem 30% de minhas despesas (e já cancelei o curso de natação de meu filho, o meu curso de Tui Sou, reduzi as compras de supermercado, cortei despesas em tudo o que se possa imaginar, mas a minha despesa mensal ainda é alta: pago aluguel, escola de filho e zilhões de outras coisas que vocês sabem muito bem). O que eu posso fazer, para evitar a depressão ou um surto homicida, é estudar literatura portuguesa […] e praticar, regularmente, Tai Chi e Aikidô, que fortalecem meu corpo e espírito. Revejo os filmes de que gosto no DVD, ouço jazz, óperas de Wagner, curto a família, como se estivesse num longo período de férias. Porém, a situação está por um fio: minhas reservas financeiras acabaram, já estou operando no vermelho e logo terei de fazer em préstimos apenas para pagar as contas em dia […] Se alguém souber de vaga em algum lugar, mesmo fora de São Paulo, por favor, me fale”. Desde que não seja na minha cidade…


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).