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O FIM DO FUTURO

            Durante duzentos anos, desde 1789, a era, não meramente moderna, mas contemporânea, foi o tempo de uma longa luta pelo futuro. Entre dois futuros em disputa.

            Um ficava à direita; o outro, naturalmente, à esquerda. A luta pelo futuro, então, morreu, quando morreu um dos contendores, em 1989.

            O fim da luta pelo futuro determinou, entre outros danos colaterais, a morte do próprio futuro.

            Se não há futuros em disputa, não há nenhum futuro, pois o futuro, à diferença do mero abismo impenetrável além da borda do presente, era o futuro a ser disputado, para poder ser, segundo o desejo e o projeto do vitorioso, construído ou revisitado, se o vitorioso pretendesse mudar o mundo ou conservá-lo.

            O futuro morreu – e sobre seu cadáver agora pasta e rumina um velho presente.

            Finda a grande e grandiosa disputa pelo futuro, luta-se hoje por um pequeno lugar ao sol deste grande pasto plano.

            Faz sentido (pois o futuro morreu), mas não torna possível um novo mundo. O novo é o velho.

            O velho capitalismo, agora em sua nova fase, livre e faceiramente financeira.

            É a face da morte. Não do mundo, mas da civilização.

            Ou era, pois acaba de ser anunciado o fim do fim do futuro. A retomada da luta entre a permanência do presente impermanente (pois devastação) e o único futuro ainda possível: o recomeço, para muito além das batalhas pelo presente, da grande guerra contra o capitalismo, morta com a morte do socialismo.

            O anúncio foi feito há pouco por uma nova organização, Extinction Rebellion (XR), que, se não prega (ainda) a revolução, prega a rebelião (agora).

 

            O capitalismo, em que tudo se consome, consome tudo, como diria Marx: o homem e o mundo. Pois no mundo nada se cria, tudo se transforma, como disse Lavoisier. Portanto, não existe produção nenhuma, apenas transformação. “Produzir” é transformar matéria. Petróleo em plástico, minério de ferro em aço. Não basta passar a se viver de luz e vento. A energia eólica e a solar são energias. Energias para produzir. Produzir por transformar. E ao transformar, destruir o que fora, na forma como era.

            O capitalismo consome o mundo. Se não pode ser destruído, tem de ser transformado (ver “Transformando o capitalismo” – e o ambientalismo).

 

            O anúncio feito há pouco pelo novo grupo prega a rebelião contra a transformação “produtiva” e destruidora do mundo. Novo grupo que, superando a anemia atual dos primeiros grandes combatentes do ambientalismo, como o Greenpeace e os partidos verdes, não prega a paz ou o partidarismo esperançosamente esverdeados, mas a negra esperança do desespero. Não há mais tempo.

            Esta é a primeira frase do recente manifesto da nova organização (“Nascida em 2018, a Extinction Rebellion ficou conhecida mundialmente em abril [de 2019], após 11 dias consecutivos de espetaculares protestos que bloquearam as principais vias de Londres”).[1]1 E essa frase sintetiza a objetividade pura e dura de toda sua abordagem, discursiva, teórica e prática (ver “Declaração de rebelião”).

            Trata-se de algo verdadeiramente novo no cenário político mundial contemporâneo: um novo ambientalismo, séria e agressivamente anticapitalista, que se formou e se forjou nos bastidores, longe das mídias sociais e outras mídias, com centro na Inglaterra, ao longo dos últimos anos, para agora se anunciar ao mundo e denunciar a que veio.

 

            Suas declarações, ações e planos impactam por seu vigor e seu rigor, sua imaginação ousada, sua largueza de visão e de intenções (numa época de políticas – no sentido amplo – que seguem em direção oposta, e olham firmes para o chão instável do presente). Aquelas, ao contrário, incluem paralisar cidades em número e escala crescentes e de modo eficaz (Londres foi o primeiro teste recente), e fazer prender seus manifestantes, a fim de transformar tribunais em tribunas (mais de mil já o foram na Inglaterra),[2]2 exigir transparência completa dos documentos oficiais, além de apresentar demandas duras, claras e inegociáveis aos representantes dos povos, os parlamentos, como a convocação de uma Assembleia Nacional, no caso britânico. Por fim (ou por princípio), declaram desde já ilegítimos, apesar de legais, os governos que permitem ou apoiam o “ecocídio”, prenúncio do genocídio, com base na distinção fundamental do filósofo político inglês do Iluminismo, John Locke (1632-1704).

            Este considerava que todos os seres humanos, ao nascer, têm certos “direitos naturais”, como à vida e à liberdade, e que os governos foram criados para garanti-los, uma força de direito contra o direito da força. Portanto, se um governo falha em fazê-lo, perde seus direitos, em mais de um sentido, tornando-se, apesar de formalmente legal, objetivamente ilegítimo. Os povos, então, adquirem outro direito (senão uma obrigação): o de se rebelar contra o governo. John Locke: “Se um governo subverte os fins para os quais foi criado e se ofende a lei natural, então pode ser deposto” (Segundo tratado do governo civil). Extinction Rebellion: “De acordo com nossas consciências e nossa racionalidade, nos declaramos em rebelião contra o nosso governo e as instituições corruptas e ineptas que ameaçam nosso futuro” (ver “Declaração de rebelião”).

 

            Já no fim do século XIX, Mallarmé escreveu: “Considero a época contemporânea um interregno para o poeta, que não tem absolutamente de se misturar a ela: ela está por demais obsoleta e em efervescência preparatória para que ele tenha outra coisa a fazer senão trabalhar em silêncio com vistas ao futuro ou a jamais”. À vista do fim definitivo do futuro, pela devastação do mundo, se a poesia se faz silente, logo, irrelevante (ao menos para o presente), mandatória se torna outra vez a prosa pública da luta política – desde que à altura, em forma, razão e significado, da “efervescência preparatória”. À rebelião. E, talvez, um possível futuro.

 

            P.S. O Extinction Rebellion já obteve uma primeira grande vitória com a recente declaração, pela Câmara dos Comuns, de um “estado de emergência ambiental” no país (fato inédito em termos históricos, por não estar ligado a nenhuma catástrofe específica): “Londres, 1 Mai 2019 (AFP) – O Parlamento britânico se tornou, nesta quarta-feira, o primeiro no mundo a declarar ‘emergência ecológica e climática’, […] após a série de manifestações dos ativistas do movimento Extinction Rebellion. […] O movimento, que defende a desobediência civil pacífica contra a inação climática e liderou protestos na capital britânica, [afirmou que] ‘a pressão exercida sobre nossos políticos agora vai aumentar’, [e que] o grupo espera ‘ações decisivas’”.[3]3

[1]     “Extinction Rebellion protesta diante da embaixada do Brasil em Londres”(<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2019/05/01/extinction-rebellion-protesta-diante-da-embaixada-do-brasil-em-londres.htm>).

[2]     Ver em <https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/afp/2019/04/25/ativistas-bloqueiam-a-bolsa-de-londres-no-11-e-ultimo-dia-de-protestos.htm>. Ver mais links de matérias sobre o movimento ao final de “Notícias do fim do mundo”.

[3]             “Parlamento britânico é primeiro a declarar ‘emergência climática’” (<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2019/05/01/parlamento-britanico-e-primeiro-a-declarar-emergencia-climatica.htm>). Ver “Notícias do fim do mundo”.