Skip to main content

O FIM DO IMPÉRIO RUSSO

“Se a Rússia optar por parar de lutar na Ucrânia e sair, será o fim da guerra. Se a Ucrânia optar por parar de lutar e desistir, será o fim da Ucrânia”

Meus avós eram refugiados ucranianos do Império Russo. Meus pais são filhos da fuga do Império Russo. Sou neto da distância do Império Russo. Nunca temi o Império Russo. Mas nunca tive paz do Império Russo. Nasci no ano da crise dos “mísseis cubanos”: mísseis nucleares soviéticos, postos em Cuba para provocar os EUA. Fidel Castro afirmava que eram para defender la Revolución. Mas defender la Revolución ameaçando os EUA: mísseis nucleares são armas de ataque. De dissuasão, diriam. Não quando colocados em segredo a cinco minutos de voo balístico de Washington: o segredo não dissuade. Enquanto a URSS existiu, o mundo nunca esteve livre da loucura soviética, que era – e é – a loucura russa. A loucura imperial russa.

A Rússia não é um país normal. A Rússia não pode ser um país normal, porque não é um país. A Rússia é o Império Russo. E um império é um império.

Todos os grandes escritores russos sabiam bem o que é a Rússia. Está lá. Está em todos. Parte importante de sua grandeza está em saber, dizer, saber dizer e descrever a anomalia psicossocial e a melancolia existencial conhecidas por “alma russa”. Está em Gogol. Está em Górki. Está em Tolstói. Está em Turguiêniev. Está em Dostoiévski. Está e não está em Maiakóvski. Porque Maiakóvski acreditava na grandeza da Revolução Russa. Na grande Revolução Russa que salvaria a Rússia – que salvaria o mundo. A Revolução Russa não salvou a Rússia nem Maiakóvski, salvo da Rússia e da Revolução Russa pelo suicídio.

A historiografia consagrou a expressão “despotismo oriental” para sintetizar o Estado russo. Sintetizando a síntese, o “despotismo oriental” tem seu modelo nos antigos impérios centro-asiáticos, como o persa. Um Estado vertical, oligárquico, burocrático, cleptocrático, opaco, corrupto, brutal e ineficiente, a não ser na cobrança de impostos e na ação do vasto aparato repressor (desde a famosa e infame Okhrana dos Romanov). Um Estado cuja melhor imagem é a soma teratogênica de O capote de Gogol com O castelo e O processo de Kafka. Um Estado mafioso, dominado, hoje, não por “oligarcas”, mas por uma cleptocracia pretoriana: o férreo “círculo interno” do líder, os siloviki, os “homens duros” egressos do aparato repressor da URSS, a começar do coronel Putin. Um Estado mafioso cujo chefe vitalício é o homem mais rico do mundo (e notório e contumaz assassino de opositores, desafetos e desafiantes).

A vida no império russo era um arbítrio do czar. A vida na União Soviética era um arbítrio de Stalin. A União Soviética era o império russo renomeado. A Federação Russa é o império soviético renomeado. Putin é um czar – e isto não é um clichê.

O “despotismo oriental” explica os servilismos – e o atraso – russos. O servilismo agrário, formal, de origem medieval, extinto somente em 1861 (por arbítrio do czar Alexander II), e o servilismo contemporâneo. O servilismo russo contemporâneo torna a Rússia um país anormal. Um país europeu anormal, onde jamais houve nada parecido à verdadeira cidadania. Servos não são cidadãos. A inexistência histórica de cidadania e de uma sociedade civil na Rússia explica, ainda que não justifique, a inexistência de liberdades civis. Não há liberdade de imprensa, de organização política, de escolha de mandatários (os governadores das províncias do império, as “repúblicas” da Federação Russa, são indicados por Putin). Não houve verdadeira sociedade civil – causa e consequência da cidadania – sob os czares; não houve sob o Partido Comunista da União Soviética; não há sob Putin.

O histórico servilismo russo é a outra face da moeda suja do “despotismo oriental”. A “alma russa” – que é a alma da “Mãe Rússia” – é uma alma servil. Uma triste alma servil. O que também elucida tanto a ineficácia histórica dos exércitos russos (salvo as vitórias de exceção – sempre lideradas pelo “general inverno”: em 1939, por exemplo, Stalin quase foi derrotado pela minúscula Finlândia, ao invadir o país com o beneplácito de Hitler) quanto a igualmente histórica brutalidade dos soldados russos (sem exceções). É a cadeia de subserviência da brutalidade interna: um homem bate na mulher, que bate no filho, que bate no cão, que bate no gato. Os servis soldados russos, historicamente brutalizados por seus “senhoriais” suboficiais – servos de seus comandantes –, brutalizam covardemente os soldados e os civis inimigos quando rendidos [ver nota 1].

A Rússia não é um país europeu normal: não é um país. É o último império europeu. Um império terrestre e contíguo, à diferença dos impérios coloniais (em sua maioria marítimos). Todos os outros impérios europeus deixaram de existir nas duas guerras mundiais. O Império Austro-húngaro, o Reich alemão, o Império Otomano (que era em parte europeu, tragicamente), o império francês, o Império Britânico. A Áustria, a Hungria, a Alemanha, a Turquia, a França, a Inglaterra são países normais: Estados-nações. A Rússia não é um Estado-nação. A Rússia ainda é um império, ainda é o império russo, um império europeu estendido entre a Ucrânia e o Japão. Um vasto império europeu que se impôs a todo o imenso norte da Ásia, até o Ártico. Um império europeu que contém, atualmente, 46 províncias (oblasts), 21 repúblicas, 9 territórios (krays), 4 distritos autônomos (okrugs), duas cidades federais e uma província autônoma, a maior parte não europeia. Um império europeu. O derradeiro império europeu – que pretende voltar a se estender também sobre partes da Europa, a começar da Ucrânia.

O fim da União Soviética, com a perda de catorze repúblicas (Armênia, Azerbaijão, Belarus, Estônia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Letônia, Lituânia, Moldávia, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão), foi a perda, pelo império soviético, de catorze províncias. O fim da União Soviética não foi o fim do império russo: foi o fim da grandeza do império russo. Nas palavras inequívocas de Putin I, “a maior tragédia geopolítica do século XX”. Maior, portanto, que as duas guerras mundiais. Maior que o Holocausto. Porque para um czar russo o império russo é o centro do mundo, da vida e do sentido da vida. O nacionalismo doentio do nazismo se traduzia no lema “Deutschland Über Alles”: “Alemanha acima de tudo”. Incluindo a paz mundial. Incluindo a liberdade dos povos. Incluindo a vida dos povos. O nacionalismo extemporâneo do império russo, um nacional-imperialismo, traduz-se na crença de que a Rússia – a “alma russa”, a “Mãe Rússia” – é o centro e a razão existencial do mundo. O mundo existe para que a Rússia exista. A Rússia existe para dar sentido ao mundo (o “materialista” e “decadente” Ocidente, para acabar com qualquer possível sentido do mundo). Se a Rússia, o império russo, a grandeza do império russo – que são afinal a mesma coisa – forem ameaçados pelo mundo, a Rússia ameaçará o mundo. A Rússia ameaça hoje o mundo com o apocalipse nucelar. Rússia acima de tudo.

A invasão e a anexação ilegal e farsesca de partes da Ucrânia são uma tentativa – mais uma, depois da ocupação recente de partes da Geórgia, da manutenção militar do lacaio Lukashenko em Belarus, do lacaio Tokayev no Cazaquistão e da invasão da Crimeia e do Donbass em 2014 – de retomar a grandeza perdida do império russo.[1]

Um império não pode perder sua grandeza sem perder sua razão de ser. Nem recuperar sua razão de ser sem recuperar sua grandeza. Por isso Putin tem de ser derrotado. Por isso a Rússia tem de ser derrotada. Por isso o império russo tem de ser destruído.

A destruição, afinal, do império russo, o último, tardio e doentio império europeu (no sentido em que o decadente Império Otomano era, em seus estertores, chamado de “o homem doente da Europa”) deve ser o resultado lógico e ideal da agressão imperial russa à Ucrânia. Com a transformação, então, do império russo em uma grande Iugoslávia, no ato mesmo de seu desaparecimento: o império russo deve desaparecer como desapareceu a Iugoslávia, dividida em vários novos países europeus normais (iug-slávia significa “eslavos do sul”; ucranianos, bielorrussos e russos são os eslavos do norte).

O fim da Rússia, do império russo, não será o fim do mundo. Ao contrário do que crê a paranoia imperial russa, será o fim da histórica ameaça russa à paz na Europa do Leste – ameaça à paz na Europa do Leste que é um resumo da história russa, e o verdadeiro nome do império russo (os povos da Europa do Leste – de finlandeses e bálticos a poloneses e búlgaros – que o digam; e eles o dizem).

Os gregos diziam que um exército de servos jamais derrotaria um exército de homens livres. Servos não têm coragem nem iniciativa. Servos não têm vontade de lutar. Servos não têm razão para lutar. Homens livres têm razão e vontade de lutar (lutam somente se e quando têm vontade e razão de lutar). Os gregos se referiam aos persas, cuja imenso império de servos foi derrotado pelos 40 mil gregos livres de Alexandre. Os servos russos de Putin não derrotarão os homens livres da Ucrânia.

 

 

 

[1] Incluindo “referendos” teatrais, gritantemente desmascarados pelo júbilo local com a recente libertação de Kherson: “Ficamos aterrorizados com o exército russo, com os soldados, que podiam entrar a qualquer momento em nossa casa. Bastava abrir a porta, como se estivessem morando aqui, e roubar, sequestrar, torturar. […] [Agora] Nos sentimos livres, não somos escravizados [pelos russos], somos ucranianos”: moradores locais entrevistados após a expulsão das tropas russas (cf. “Mesmo sem água e energia, ucranianos voltam eufóricos à cidade desocupada”; https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/11/13/kherson-ucrania-russa-desocupacao-euforia.htm).

 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).