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O compositor Gilberto Mendes aos 100 anos

Naquela década mágica dos 1920, recuperação pós-guerra, euforia pela aviação e o rádio num brilhante nascedouro, a disseminação da cultura de massa e o entretenimento onipresente marcados pela consolidação do “American way of life” forjaram nosso personagem, não perdendo em densidade na erudição. Gilberto Mendes parece saído das elucubrações de Adorno ao fascínio caleidoscópico por tudo que seja faro de sensibilidade em Umberto Eco: criou uma música carregada de significados a partir dos estalos de todas as criatividades em ebulição, fricção e potencial de replicação em infinitos perceptos. Não me esquecerei de um dos seus bordões cult: “Eu gosto de gostar das coisas”, saídos da “Factory” de Andy Warhol. Aquela Santos que fundaria a quarta emissora de rádio do Brasil (a Rádio Clube PRB04), que chegou a ter 32 cinemas de bairro, que recebia em primeira mão concertistas de passagem entre Nova York e o Colón de Buenos Aires era a mesma do Bazar Paris, livraria procurada por Ruy Barbosa e Washington Luiz. Sebos, cafés coalhavam o centro em torno da Rua XV de Novembro, considerada a Wall Street tupiniquim onde pontificava a Bolsa do Café e a Associação Comercial presidida por João Moreira Salles e a Construtora do megaempresário Roberto Simonsen.

Gilberto Mendes seria bem produto vívido desse Brasil que circulava entre Ribeirão Preto, Poços de Caldas, a Pauliceia tendo Santos receptáculo e escoadouro do Brasil agrário, fabril e cultural urbanizando-se. Descendente distante de portugueses, Gilberto era filho caçula e temporão do médico Odorico Mendes e Anna Garcia Mendes, casal de mentalidade avançada e cultos, que ainda na década de 1910 fizeram um tour completo pelo Velho Mundo sem deixar de conhecer o então remoto Egito e a Palestina. Pareciam personagens saídos dos tão amados romances de Eça de Queiroz como A Relíquia e A Cidade e as Serras. Mendes se orgulhava de ter lido obras completas mais de uma vez do mestre de Póvoa do Varzim: citava diálogos de cabeça, passagens lúbricas, personagens caricatos e os cardápios alentados de requinte saídos da pena lusitana. Seu pai, cultivando o saber naturalista, nomeou seus filhos com prenomes inusitados pela erudição científica e humanista: Paracelso e Erasmo, irmãos mais velhos desse Gilberto, que também levava o codinome Ambrósio, remetendo a um dos doutores da Igreja, precursor de Santo Agostinho e a quem se atribuem as primeiras inovações musicais do Catolicismo como o “canto antifonal” ou “canto ambrosiano”. Vejam que tudo é símbolo e alguns nascem predestinados pela aura dos seus propósitos alinhavados. Seu pai com nome idêntico ao do poeta e mais famoso tradutor de Homero para o português, o humanista franco-maranhense que, imaginem, era bisavô do best-seller francês Maurice Druon, autor do belíssimo O menino do dedo verde. Nosso Gilberto quanto não bebeu da fonte de Ulysses em sua Odisseia musical a partir da sua Ítaca caiçara nas ondas de Dorothy Lamour e James Joyce! O Dr. Odorico chegou a ter consultório dividido na velha Rua Riachuelo com um dos primeiros médicos negros de Santos, o Dr. Santos Silva, e com ninguém menos, com o antológico humanista poeta Dr. Martins Fontes. Esse poeta que ganharia o Brasil com sua verve, humanismo socialista quase romântico, seu indefectível cravo rubro na lapela e um poema sempre na língua a presentear potentados e o populacho pelos morros de Santos. Um poeta popular com arroubos beletristas que encantava o gosto comum e os salões da burguesia, mas que sempre fascinou Gilberto pela perícia associada a um poder comunicacional que fazia pensar o artista de vanguarda. Mendes, que seria parceiro artístico de ortodoxos da ruptura, epígonos de Ezra Pound e T.S.Eliot, nunca fechou as portas da emotividade a poetas como Martins Fontes onipresente em sua infância. Em suas memórias ele nos diz: “Toda obra de arte é boa, está acima de critérios de qualidade. Embora sempre haverá os eternos ‘classificadores’ para dizer que esta é de primeira linha, aquela é de um compositor menor. Me veio à lembrança Schoenberg, depois de ouvir o concerto para piano e orquestra de Grieg, confessar a seu amigo Robert Gerhard: ‘Essa é a espécie de música que eu realmente gostaria de escrever’. A música de Grieg, certamente um compositor menor, para os ‘classificadores’ implacáveis”. E como tudo que Mendes rememora tem um link com sua Rimini, ele sempre recordava os ares europeus, especialmente escandinavos da sua vizinha São Vicente, em que empresários de navegação tinham grandes casarões próximos à então tranquila Praia do Gonzaguinha, entre eles descendentes desse mesmo Grieg, compositor imortal de “Peter Gyant”! Quando adolescente já nos anos 1930, Mendes espreitava esses solares monumentais tendo companheiro outro santista que se tornaria pintor célebre, gravador e muralista dos maiores, Mário Gruber. Ainda nesse período de luzes mortiças nas noites de mormaço caiçara viviam em Santos celebridades quase anônimas: a atriz Joan Lowell, colega de Chaplin em Em busca do ouro que depois seria pioneira no Cerrado Brasileiro ao lado de Janet Gaynor, primeira vencedora do Oscar e, pasmem!, Richard Lewellyn, que escreveu Como era verde meu vale em São Vicente!

Órfão de pai aos seis anos, o caçula passaria ainda algumas temporadas no final dos anos 1920 em São Paulo, no descampado de Perdizes na pequenina Alameda Olga, onde ouvia soirées de piano em casas de amigos da mãe naquela cercania inóspita da capital no caminho da Lapa. Entre esses saraus um o iluminou especialmente: no salão de uma contraparente do Presidente do Estado e futuro Presidente Eleito deposto Júlio Prestes: eleito pelas regras da República Velha, do velho e onipresente PRP naquele apagar de luzes dum Brasil que nunca seria o mesmo… Gilberto nunca esqueceu de ouvir que no colo da mãe sobrevivera ao bombardeio dos Campos Elísios em 1924 na Revolta do Isidoro. Sua querida irmã Myriam quase enlouquecera com os estampidos e a munição pesada entre Higienópolis e Santa Cecília, onde o Presidente do Estado Carlos de Campos resistia ensandecido tocando piano de cauda: era um concertista de primeira, exemplar espécime da burguesia cultivada do café… além do vício bacharelesco pela poesia paulista quatrocentões e seu entorno menos concorrido vivenciavam a “pianolatria”: a paixão pelo instrumento de Chopin e Lizt.

Esse o mundo de Gilberto Mendes até os anos 1930: a ebulição pós Semana de Arte Moderna, a popularização do jazz pelo rádio, a disseminação de vitrolas portáteis e a crescente indústria editorial nacional, que ia dos esforços de disseminação do livro por Monteiro Lobato até a qualidade da Editora Globo de Porto Alegre. Gilberto seria eternamente agradecido à Coleção Terramarear por exemplo. Sempre senti tão gêmeos o trabalho do poeta com o do compositor; extraímos do nada, absolutamente nada, mais do que qualquer outro artista: pura entrega de alma para almas laçadas por uma perícia inconsútil e invisível. No começo o compositor Gilberto Mendes nasceu poeta, mesmo sem o poema escrito: poesia o que se sente, poema o que se escreve, não? Mas escrevia estórias de suspense e terror como nos enredos noir que o cativariam anos depois, contava-as aos amigos pré-adolescentes ali nas amuradas da Ponta da Praia, na altura da Rua Carlos de Campos (que coincidência!) onde o mar faz a curva. À época fazia com chácaras de japoneses, areais, campos de várzea e clubes de nado, remo, esportes náuticos que fariam a delícia do atleta eventual que se parecia com Tyrone Power em As chuvas chegaram e Café Metrópole, seus filmes favoritos.

Inevitável não lembrar o poema “Indaiá” de Martins Fontes, que durante anos esteve impresso nas paredes do cinema de mesmo nome e tão frequentado por Mendes na Cinelândia santista ali na Avenida Ana Costa próximo à praia. Naquele instante Martins Fontes o inspirava tanto quanto Fauré ou Darius Milhaud, que por sinal também vivia a atmosfera das praias brasileiras. Eis “Indaiá”, que sempre o acompanhou:  

Não se te apague da memória Peço-te, flor, O ingênuo sonho, a doce história Do nosso amor.

Juro que nunca, em toda a vida, A esquecerei. Foste a mais bela e a mais querida Mulher que amei.

Lembras-te? Dentre pitangueiras, Dentre araçás, Roseiras bravas e murteiras, E manacás,

O nosso rancho se escondia, Sobre o jundu, Na ensolarada calmaria Do Indaiaçu.

Ao longe, a praia, ampla e discreta, Branca também. Pelo mistério da hora quieta, Ninguém, ninguém.

Tudo encantava a nossa vista, Com o claro tom Tudo tão simples, tão santista, Isto é, tão bom!

De légua em légua, umas canoas, Sob os sapés, Tendo, nas popas e nas proas, Os picarés.

De malhas finas e compridas, Em aranhol, Redes de arrasto, distendidas, Secando ao sol.

Bancos de pedra… Dos dois lados, Frescos frutais, Cheios de jambos perfumados, E sem rivais.

Era abundante, nas encostas, O cambucá. E abios que tanto gostas, Só no Indaiá!

Coberta de hera, no caminho Jardim-vergel, O nosso pouso, o nosso ninho Caramanchel.

Sonhava a nossa intimidade, Florindo, então! Ah! que lembrança, ai, que saudade No coração!

Foi nesta enseada predileta Cheia de ingá, Que um pescador, um grande poeta Fez o Indaiá

Gratos, recordas-te? – em surdina, Líamos, flor, Essa encantante e feminina Rosa de Amor!

E repousavas nos meus braços, Quase a dormir…. E me faziam teus cansaços Sempre sorrir…

Nada turbava a doce calma Desse ardor, Que era, por nunca haver viv´alma, Ainda melhor.

Semeando estrelas pela areia, Vidrilhos no ar, Balão aceso, a lua cheia Prateava o mar

Ó luar das nossas madrugadas, Dizei, dizei, Aos noivos, como às namoradas, Quanto eu chorei!

E tu partiste, e tu partiste, Tudo findou. Um remador bondoso e triste É o que hoje sou.

Só vinte dias tu ficaste Comigo aqui, Porém, depois que te ausentaste, Não mais te vi.

Desencantando, ou sem engano Consolador, As horas passo olhando o oceano: Contemplo a dor.

A década de 1930 começaria com uma revolução e terminaria com uma guerra, seria a década de formação do nosso compositor. Com a viuvez da mãe, ele e sua irmã Miriam seriam o núcleo remanescente da família, morando em Perdizes mas voltando a Santos logo depois em 1932. Gilberto nunca olvidaria a importância renovadora da Revolução de 30: o Brasil entrava finalmente na modernidade inaugurando novos e salutares hábitos: o voto universal, novas leis trabalhistas, a inserção da mulher na vida política e, principalmente, a instalação dos concursos públicos. Concurso público que daria oportunidade de trabalho a sua irmã como professora do estado ajudando em muito manter a família. Nesse episódio seria eternamente grato a um personagem hoje esquecido em nossa História: o tenente João Alberto, campeão de probidade administrativa depois das práticas viciosas do velho PRP. Voltando a Santos, Gilberto, sua mãe e irmã Myriam vão morar em pensões familiares, as célebres pensões familiares santistas, em sua maior parte no canal 1, canal 2 e no movimentado Gonzaga. Nada a ver com espeluncas que recebem “farofeiros”, os assim denominados turistas de um dia que desceriam a serra muitos anos depois. As pensões tão bem retratadas por Mário de Andrade no seu conto “Tempo de Camisolinha” eram de propriedade de imigrantes portugueses ou espanhóis, que ali mesmo viviam com suas famílias e locavam quartos em amplos corredores de grandes sobrados quase na areia da praia ou nas ruas perpendiculares que hospedavam moradores quase permanentes, vendedores habitués, mercadores de café, jovens médicos em total harmonia doméstica e rígidos princípios de convivência. Não se hospedavam propriamente, moravam sem prazo de comprar ou alugar um imóvel permanente. Mais à frente, em 1932, nosso compositor iria morar num dos primeiros prédios altos da orla santista: o imponente Olympia, na verdade “Condomínio Palacete Olímpia” na Avenida Presidente Wilson, 91, símbolo do processo que Santos e Copacabana tão bem conheceriam nos anos 1920 e 1930: a metropolização, conurbação e verticalização da faixa de praia adentrando a cidade. Além do campeão da música de vanguarda, no final dos anos 1950 moraria nesse prédio o Rei do Futebol, Pelé. Do longo corredor debruçado por seus cinco andares Gilberto testemunharia a passagem do Graff Zepellin e, pasmem!, manobras de aeroplanos durante a Revolução de 32 com aterrissagem no areião do José Menino, na altura da sua querida Ilha de Urubuqueçaba, a quem dedicaria muitas composições. Nesse mesmo momento, por avistar manobras supondo serem aeronaves inimigas em combate, suicidaria Santos Dumont ali perto, no Hotel La Plage do Guarujá. O menino perfazia o indizível percurso entre o areal até o Colégio Cesário Bastos, vetusto edifício encravado no ponto final da sobranceira Avenida Ana Costa de palmeiras imperiais entre o mar do Gonzaga e as garagens da City, companhia anglo-canadense que dava ares londrinos a Santos. Lembrar precisa que o Cesário, dirigido pelo antológico professor Bellegarde, espécie de Aristarco de O Ateneu pela disciplina, ocupava terreno outrora pedaço do Quilombo do Jabaquara, segundo maior campo de resistência de escravos do Brasil. Santos, sempre História libertária em cada naco de resistência. Ali fez o primário, que o abasteceu de curiosidade para sempre.

Mendes estudou no tradicional Colégio José Bonifácio, no bairro da Vila Nova / Paquetá, na extrema ponta da imensa Avenida Conselheiro Nébias, que corta a Ilha de São Vicente onde Santos ocupa a margem direita. Casarões entre palmeiras, o Colégio preparava alunos para cursos como contabilidade, mas também futuras normalistas e, entre as alunas das classes mistas, uma linda mocinha de elegante magreza e desenvoltura: Cacilda Becker Yaconis. Colega de carteira do nosso compositor, nascida em Pirassununga, viera morar em Santos aos dois anos em 1923 com sua mãe separada e mais duas irmãs: Dirce e Cleyde, que moravam num chalé na antiga Rua do Sol, atual Barão de Paranapiacaba no bairro da Encruzilhada próximo aos trilhos da Sorocabana, que cortava a cidade e vinha desde o Vale do Ribeira trazendo cargas agrícolas especialmente de bananas até o porto. Diáfana, exímia bailarina, com carisma exalante, Cacilda Becker seria revelada atriz pelas mãos do jornalista, dramaturgo e crítico de teatro Miroel Silveira, em breve cunhado de Mendes e figura central em sua biografia. Depois dum período curto morando no Alto da Lapa e na então bucólica Alameda Olga nas Perdizes, a família Mendes, sua mãe, Gilberto e Miriam voltaram para Santos e, pelos tormentos da instabilidade paulista, aventou-se a hipótese de voltarem à capital sob abrigo de familiares bem estabelecidos da matriarca. O fato de a jovem Miriam, já professora formada, estar namorando o filho prodígio de Waldomiro Silveira foi determinante na manutenção do clã em Santos, Gilberto formando-se no José Bonifácio, e finalmente Miriam casando-se com Miroel em 1939. Waldomiro era o patriarca de grande prole: casado com a escritora Isa Leal, era irmão de outros destacados vultos da sociedade do estado. Waldomiro foi o precursor da literatura com sotaque e conteúdo caipira, sertanejo, regionalista no Brasil, sendo predecessor de experimentos que iriam tomar corpo erudito pelas mãos de Guimarães Rosa. Escrevia como o capiau fala, pensa, matuta pelo interior profundo. Seus contos fazem parte de quase todas as antologias nacionais. Jurista, foi membro da Academia Paulista de Letras. Por essa mesma época nos anos 1920, seu irmão Alarico foi secretário do Interior de São Paulo e chefe de gabinete do presidente Washington Luis e mais tarde seria conhecido como pai da grande escritora Dinah Silveira de Queiroz e da primeira crítica de TV do país, a jornalista Helena Silveira. Dinah foi a segunda mulher na ABL e escreveria dois romances monumentais: Floradas na Serra, que seria levado ao cinema tendo como protagonista Cacilda Becker num dos poucos registros da diva suprema, e A Muralha, que tem como painel a colonização bandeirante a partir da Capitania de São Vicente. Gilberto muito citava esse romance em seu fascínio pela costa da mata Atlântica. Os Silveiras de origem interiorana se radicaram em Santos e ocuparam uma das mais belas residências da cidade na Avenida Conselheiro Nébias, próxima à praia onde hoje se encontra um hipermercado. A Conselheiro é a única via da ilha que vai da barra ao cais de mar a mar.

Corria a década dos dirigíveis, da incerteza nas safras do café, dos sectarismos ideológicos, a década de André Malraux e Hemingway na Guerra Civil Espanhola, do bando de Lampião, do getulismo ascendente, das lutas sindicais, e quase tudo isso tangenciava Santos, onde adolescentes despreocupados instauravam um hábito hoje banal: a frequência nas praias. Pois foi em Santos que surgiu o surf no Brasil e onde as práticas náuticas concorriam para a criação de imponentes clubes de remo, vela, natação, e nosso Mendes morando no zênite entre a embocadura do Estuário, as praias desertas doutra margem encostadas na Ilha da Palmas. Fazia a travessia do canal a nado, indo à praia do Goes, Sangavá, nas trilhas do rabo do dragão: afinal a Ilha de Santo Amaro tem o formato dum ciclope fumegante diante da Ilha de São Vicente, um decalque de cabeça de cavalo vistos do espaço sideral. Ali pontificando o Forte de São Felipe, proteção ao Brasil pelo Reino da Espanha nos idos da ocupação de Portugal. Nesse cenário “gilbertiano” no começo de 2016 seriam depositadas as cinzas do maestro, sabendo eterno seu espírito. Me aproprio dum lindo artigo do grande jornalista Carlos Conde sobre Mário Gruber: “A praia o fascinava, especialmente um verão vagabundo de praia”. Gruber, contemporâneo e conterrâneo de Mendes, um dos maiores gravuristas brasileiros, pintor personalíssimo, muralista, foi um desses companheiros do compositor nas praias, no comunismo e na genialidade santista. Santos era o maior entreposto de mercadorias e pessoas da América do Sul: cidade mutante, feito uma daquelas cidades invisíveis de Ítalo Calvino que ainda mudava mais com a fugacidade dos seus visitantes, rostos entrecortados nos cassinos, dancings, casas de banho, box de recepção de cargueiros, transatlânticos e estradas de ferro que desaguavam café, banana e forasteiros dos quatro cantos…

Aquele período entre 1935 e 1940 foi o ápice da década ideológica, mas concomitantemente do período de formação estética de Mendes e sua geração inoculada com o brilho de Hollywood mesclado ao cinema alemão ainda não contaminado de nazismo, o advento do mercado editorial brasileiro com traduções de Freud, Mann, Brecht, o conhecimento dado aos trópicos de Fernando Pessoa, Marcel Proust, todos os experimentos tributários de James Joyce, os romances de gozo e fruição de Somerset Maugham, Charles Morgan e a prosa conceitual de Chesterton e Aldoux Huxley, sem falar no onipresente Joseph Conrad. Esse o cadinho com codas não estanques que deu liga à música tonal, clássica, ouvida por Mendes de maneira quântica, substrato de que prorromperiam suas variações intermináveis de criação intertextual. A ambiência úmida de impregnação era Santos e seus entornos de pregnância. O rádio engatinhava mas o conteúdo era poderoso a ponto de forjar muito do gosto do adolescente antenado: Mendes ouvia os “caprichos” no supertocado Fritz Kreisler, as valsas berlinenses, as composições que Richard Rodgers americanizou, os clássicos nascidos clássicos de Irving Berlin, o onipresente Benny Goodman do velho jazz, a performática orquestra de Eddie Dunchin compunham a mise-enscène do garoto. A cenografia não poderia ser outra: ecos da Bauhaus, o advento indefectível do art decó nessa Miami do sul, a modernidade tão paulisticamente marioandradiana. A adolescência de Mendes via a nova missão francesa (Lévi-Strauss, Bourdieu, Braudel) ajudar a criar a USP com a elite bandeirante reinventada, a moda das palestras performáticas de figuras como Agripino Grieco, Guilherme de Almeida, do professor Dreyfuss e duma protoglobalização de São Paulo. A modernização do Estado, a primeira invasão de hábitos ianques no cotidiano, o enorme fluxo de imigrantes ao centro europeu depois da Primeira Guerra, a influência judaica do teatro ao mercado editorial, aqueles anos 1930 foram essa miscelânea que desaguaria depois nos grandes movimentos estéticos do segundo pós-guerra. Rotisseries austro-húngaras na Barão de Itapetininga, leiterias reunindo intelectuais na Praça da República, livrarias francesas e italianas, o majestoso Mappin Store (sempre o art decó!), as esfuziantes primeiras choperias, as Casas fonográficas Edison e Odeon, o consumo vendia de tudo, inclusive cultura. Mendes tanto ouvia Jeanette MacDonald e Nelson Eddy quanto Zarah Leander e Anton Walbrok: a onipresença norte-americana ainda tinha competidores que em muito ainda iriam enriquecer sua indústria de massa com brilho erudito da velha Europa. Quando releio Uma luz em meu ouvido de Elias Canetti, entendo o apreço que meu amigo tinha por esse enciclopédico amigo de Kafka: em certa medida aquela atmosfera de interesse cultural profundo ele tinha em menor escala em sua Rimini, sua Macondo, Santos parecendo saída de “A carta” de Somerset Maugham e suas tramas em antros obscuros ao som de Jan Kepura e Martha Eggerth. Escrevo rememorando o quanto ele se emocionava nos últimos cinco anos de vida ao ouvir essas raridades que eu puxava na internet: era como se se transportasse ao tempo que imaginava perdido, digno dum roteiro de Tarkovski. Esse substrato anímico deu asas para que entrasse nos anos 1940 maduro de conhecimento para discernir seus caminhos: ainda que os ditames práticos o impedissem dedicar-se integralmente a sua arte, sabia ser a música ligada a todas outras artes que o fascinavam. Mendes era o homo aestheticus que deveria se adequar à busca do sustento. Já lera A Arte de Viver de Lin Yutang e O Homem Medíocre de José Ingenieros, para citar dois livros marcantes para entender que poderia ser artista se adaptando pelo menos na superfície à busca do ganha-pão. Morando com sua mãe e irmã, com premência dum piano, acesso à cultura, foi a campo entrando no Conservatório Musical de Santos. Criado em 1927 de modo precário, o centro musical só foi regulamentado sob as normas do Instituto Nacional de Música e sob a égide de uma grande figura: a pianista Antonieta Rudge. Com metodologia formatada pelo genial musicólogo e professor de música Mário de Andrade (sempre ele em tudo), o Conservatório ganhou sede própria à Rua Sete de Setembro no outrora elegante Paquetá na mesma quadra onde nasceu e cresceu nosso Ribeiro Couto e foi inaugurado com visita e masterclass de Villa-Lobos no auge da política cultural estadonovista. Antonieta era um personagem que daria um romance da Sra. Dupré: antenada e rompedora, causou frisson no começo dos anos 1920 ao descasar do pioneiro do football no Brasil Charles Miller para ser companheira do poeta Menotti Del Picchia. Miller, filho do engenheiro-chefe da Estrada São Paulo Railway, viveu anos entre São Vicente e Londres, trouxe o esporte bretão para nossas plagas e nunca se recuperou desse escanteio marital que marcou época.

O início da década de 1940 seria o ponto de virada: a caminhada de horizontes difusos precisava realizar um ápice de dedicação. Ele queria ser um compositor, definia-se. Sem logicamente abdicar dos prazeres e interesses que adensavam ainda mais esse seu espírito de “esponja” do mundo. Tudo lhe dizia respeito, e ser compositor seria a maneira de expressar tamanho excesso de percepção. Era o tempo em que a linguagem jazzística o impregnara, mesmo sem método de análise preciso; ao mesmo turno, a dita música erudita o embevecia por caminhos não tão ortodoxos. Ele revela o impacto de ouvir o maestro ligeiramente pop Leopold Stokowski conduzindo a Orquestra Sinfônica da Filadelfia ao reger a “Toccata e Fuga em Ré Menor” de Bach, o “Prélude à l´aprés-midi d´un faunne”, de Debussy, as “Gymnopédies” de Erik Satie, além de “Uma noite no Monte Calvo” de Mussorgsky, “O Aprendiz de Feiticeiro” de Paul Dukas e a “Sagração da Primavera” de Stravinsky no desenho de longa-metragem de Walt Disney Fantasia. Mendes, erudito em tudo que lia, ouvia, pensava, intercalava, não tinha prurido algum em revelar as fontes heteróclitas de sua inspiração e conhecimento. Afinal, sua maioridade coincidira com a avalanche de influência norte-americana sobre nossa cultura, por mais nativista ou verde-amarelista quisesse imprimi-la o ditador Getúlio Vargas. Morando na Pensão Paulista, ouvia nos reposteiros as aulas de piano do maestro Lavalle, também hóspede que pagava estadia lecionando aos filhos dos donos que dedilhavam com a maior má vontade. Ele sorvia de ouvido sabendo sua mãe impossibilitada de pagar estudo. Sempre assim a vida injusta ou Deus dá nozes… pensava. Até que ingressa de vez no Conservatório onde estudava harmonia com Savino de Benedictis e piano com a própria Antonieta Rudge, o que fizera levar a sério seu talento natural. Adensava lendo a revista Clima de Mário de Andrade e La Musica Moderna de Adolfo Salazar. Alternava fascínio por Brahms, em que antevia a modernidade ouvindo à exaustão “Microcosmos” de Bella Bartok e sua “dissonância dura”. Dois relatos em seu livro de memórias são essenciais para o resgate de sua trajetória: “Nasci para ser autodidata”. Revela aí a brilhante linhagem dos autodidatas: onívoros buscadores de conhecimentos cruzados, escolas díspares, nascentes improváveis para um caudaloso fluxo de informação ao mar sábio e totalizante dessa cornucópia de significados. Outra é a observação do grande Claudio Santoro: dizia não ser bom morar numa cidade bonita, pois tirava atenção para o trabalho, no caso aplicação musical. Mendes era pura negação desse preceito. Contemplava crepúsculos na Ponta da Praia, nadava até a Ilha das Palmas, dançava em cassinos da Ilha Porchat, fazia o footing no Gonzaga entre os imponentes hotéis Atlântico e Parque Balneário. Essa a Santos onde podia ver tribos de índios errantes de Peruíbe e assistir a apresentações do mágico e paranormal Carmine Mirabelli, espécie de predecessor de Uri Geller, era aí mesmo onde moravam descendentes do compositor norueguês Grieg (donos de agência de navegação) e um irmão de Marlene Dietrich, comandante de longo curso. A Santos onde o próprio Mendes conviveu socialmente sem suspeitar com espiões nazistas com cidadania dupla, abrigados em poderosas firmas de exportação. Células desbaratadas de agentes pró-Eixo dando sinais a submarinos germânicos na costa e munidos de sofisticado aparato de rádio amador que seriam descobertas pelos delegados Elpídio Reali e Walter Autran, moradores na cidade que seriam notabilizados pelos filhos futuramente famosos: o jornalista Reali Jr. e nosso maior ator, Paulo Autran. Autran, irmão da grande amiga de Mendes: Gilberta e seu marido Oscar Von Pfuhl, médico e pioneiro do teatro infantil brasileiro com a celebre peça A árvore que andava. Tudo sempre Santos, costumava brincar com Gilberto que devíamos parodiar o pintor Cícero Dias, recifense em Paris: “Eu vi o mundo… ele começava em Santos”. Gilberto falava com encanto infantil do teto móvel ou removível do Cine Cassino ao lado do Atlântico quando assistia Diana Durbin com seus trinados embalados pela luz da lua de Santos. Já com gosto apurado, sempre preferiu William Powell e Mirna Loy a qualquer outro astro de muitos arroubos ou cantoras melodramáticas. Gilberto nasceu cool ao esganiçado sôfrego de Edith Piaf, preferia Jean Sablon que por curiosidade lançou a moda de camisa para fora da calça social no Cassino do Guarujá. Passaria a ser o jeito “Jean Sablon”… como disse, sempre tudo acontecia nesse pedaço de mar e mundo… Nosso compositor erudito em todos os sentidos nunca foi o intelectual ou artista de gabinete, cérebro poderoso mas sua “joie de vivre” não menos exuberante. Mas agora se deslocou para São Paulo, em 1941 entra nas Arcadas, se divide entre estudos de piano, leituras de Chesterton e as matinês nos cinemas Rosário (no térreo do célebre Martinelli ) ou no charmoso Cine São Bento de propriedade de quem? Do Moinho Santista de novos ecos da terra e as carteiras vetustas do Largo de São Francisco.

Mendes, recém-formado em Educação Física e agora no Direito, tem entre os colegas de classe uma linda paulista de quatro costados, a futura escritora Lygia Fagundes Telles, nossa maior contista e exuberante persona literária. Entediado com leis, códigos e jurisprudências, nosso artista recebe um desses aconselhamentos que valem por uma vida. Foi a “chamada” do cunhado Miroel da Silveira, já renomado escritor e crítico de teatro que revelara para o Brasil uma preciosidade: a atriz Cacilda Becker, agora no Rio de Janeiro entre figuras como Ziembinsky e Paschoal Carlos Magno. Miroel, depois dessa descoberta para o teatro, seria motor de outra para a composição nacional. “Você não percebe que está perdendo tempo? Você é um artista, um compositor! Nunca vai ser um advogado!” Calou fundo no jovem músico que já decidira não por instrumentista, mas músico pela composição. Voltando a Santos determinado a arrumar um emprego, trabalhou em bancos privados que havia aos montes na cidade aduaneira. Aconselhado pela mãe, ouviu na época proverbial recado: “Faça um concurso público, entre para um banco do governo que te dê estabilidade a vida inteira”. Dito e feito, prestou concurso para a Caixa Econômica Federal com grande êxito, o que lhe deu tranquilidade naqueles anos 1940, para dedicar-se por um bom tempo do dia ao piano, leituras e observação das tendências mundiais da composição. Antes de iniciar-se de vez nos grandes experimentais e inovadores, ele seguia o hibridismo da mass media e a erudição tradicional a sua mão. Os anos 1940 ecoaram seu primeiro verão tão bem contado na Odisseia Musical, que considero dos mais valiosos livros de memórias escritos no Brasil e não estou sendo hiperbólico. “Aquele verão de 1941! ´Tangerine´ pela orquestra de Jimmy Dorsey, cantada por Ray Eberle em todas as festinhas familiares de sábado à noite. O Cine-Teatro Cassino, com seu teto que abria nas noites quentes de verão – de repente a gente olhava para cima e via as estrelas – Brailowsky tocando ali a ´Dança Ritual do Fogo´, de Manuel de Falla, num concerto domingo de manhã, minha iniciação ‘à música moderna´, como era chamada. Maurice Chevalier bem jovem, cantando ´Isn´t Romantic´, de Richard Rogers. Cidade dos bons cinemas, do culto ao cinema, uma religião”. Ainda nos fala dos blackouts, dos footing no Gonzaga, do Clube dos Ingleses, Santos tão inglesa em meio ao perigo de bombardeios por submarinos alemães. “E Santos se tornava ´Casablanca´, a orquestra tocava ´As Time Goes By´. Cada cargueiro levava um canhão na popa”. Noutra parte menos nobre, Santos boêmia da velha Boca na Rua General Câmara e arredores: “[…] os ´dancings´… Santos era também um pouco New Orleans, Baton Rouge. Saudades do Parque Balneário Hotel, sua boite, seu grill de verão, as orquestras argentinas de Oswaldo Fresedo, Oswaldo Norton, o fabuloso Robledo, o saxofonista Bolão e o fabuloso Stan Kenton… na casa do Moise, pai do saxofonista Roberto Sion, ali na Washington Luis, explicando-nos ao piano a diferença entre o seu arranjo politonal revolucionário e o ´swing´ clássico de Benny Goodman. Uma aulinha particular de Stan Keaton, já pensaram? Enquanto o navio não partia…”. O apuro do compositor de “Vento Noroeste” se colocava em tudo: Gilberto poderia tanto destacar Orlando Silva e Aracy de Almeida como virtuoses na MPB, quanto dar significação de excelência pessoal inestimável a telas de Rouault ou lá atrás de Grunewald.

Era o artista total, enfatizo. Sobre o “Zeitgeist” em que foi criado, é importante lembrar ainda da primazia dos gêneros urbanos norte-americanos em cidades já dessacralizadas de folclore como Santos e São Paulo. Mendes cresceu ouvindo Booker Pittman saxofonista, pai da futura estrela Eliana Pittman, nas casas noturnas portuárias e cultivando amizade eterna com o não menos proeminente Roberto Sion, que acompanharia Vinicius de Moraes e Tom Jobim em tournées pelo mundo. O Gilberto Mendes ou Gilberto Mundos, como o chamaria mais tarde Décio Pignatari, se dividia a partir do compositor em cultivador de todas as artes, homem de ação prática em cultura e o militante comunista. Fascinado com a resistência soviética ao nazismo, batalhas como Stalingrado, leitor dos socialistas fabianos e dos clássicos marxistas, se filia formalmente ao partido, contribui em células daquilo que era chamada “burguesia progressista” e interage com outros artistas do “partidão”. Seria inevitável esse engajamento: Santos era o epicentro da vanguarda sindical brasileira pelo porto sendo chamada de “Moscouzinho” ou “Barcelona Brasileira”. Internacionalista, Santos tinha sido palco de manifestações pela resolução do desaparecimento do poeta Federico Garcia Lorca, comícios com a presença da mãe de Prestes, Leocádia pela libertação de Olga e salvamento da menina Anita, até o boicote de navios franquistas que aqui desejavam aportar. Em 1947, candidatos apoiados por Prestes fizeram 14 cadeiras numa Câmara Municipal de 31 assentos no pleito, um ano antes Santos elegera o deputado mais votado pelo PCB à Assembleia Legislativa, o professor e poeta Taibo Cadórniga, e dera votação recorde aos candidatos paulistas à Câmara Federal: Jorge Amado e Marighella. Entre os estudos musicais e audições de Webern e Bartok, o jovem Gilberto ia à linha de frente em cursos de doutrina e panfletagem entre bancários e estivadores. Em 1945, durante a soltura de Prestes depois de dez anos de cárcere, ambiente tão bem contado por Graciliano Ramos, um megacomício, quando nem tudo conseguia ser mega no Brasil rural, iria ser organizado no Pacaembu. No frio mês de julho milhares de operários paulistas se concentrariam no recém-inaugurado estádio para consagrar o “Cavaleiro da Esperança” na sua nova trajetória popular. O orador seria ninguém menos que o poeta e senador chileno Pablo Neruda. O enorme poeta brilhou para a plateia da Rádio Atlântica de Santos, a velha PRG 5, foi ovacionado por operários santistas e subiu a serra de trem até a Luz com a escolta de jovens intelectuais comunistas capitaneados por nosso Mendes. Com tanta dedicação às lides vermelhas, dando expediente em bancos, sobrava pouco tempo para a música ou menos que desejava. Já se encaminhando aos trinta, seu irmão Erasmo, todo ele voltado à biologia marinha na USP, observou de modo paternal: “Você deveria parar com essa militância e dedicar-se de vez à música!”. Sempre dado a dilemas existenciais, Mendes rompe a década de 1950 disposto a dar vez e todas as horas possíveis à composição, era esse seu ofício, como sempre dizia citando Mário de Andrade: “O artista é um artesão, um operário que faz sua obra como um marceneiro, um tecelão ou ourives”. Agora seria mais Stravinsky, Shostakovich e menos Stálin, quem sabe um pouco de Artie Shaw e Harry James de vez em quando. Gilberto gostava de citar sempre uma frase do livro Aden, Arábia de Paul Nizan: “Eu tinha vinte anos. Não me venham dizer que é a mais bela idade da vida”. Os tormentos existenciais não deixaram saudade ao maestro, ainda que na velhice sentisse falta do viço e da força que lhe faltavam ao corpo, ainda que até o fim gozasse duma impressionante lucidez e vivacidade. Ele pensou muito, leu muito e teve uma vida longa para implementar suas criações a partir de tanta bagagem acumulada.

No começo dos anos 1950 casa-se com Silvia Moura Ribeiro e tem três filhos: Odorico, Antonio José e Carlos, todos três de certa forma também artistas no cinema ou na música. Desdobrando-se com expediente na Caixa e na música, por vezes queixava-se por não ter todo o tempo para a arte. Até que um dia o grande jornalista, escritor e crítico de arte Geraldo Ferraz, então editor chefe de A Tribuna e casado com a mítica Patrícia Galvão, a Pagu, ambos adorando morar em Santos, fez uma observação ao sacar dinheiro do guichê do amigo mix de músico e bancário: “Gilberto, um emprego é um emprego”. Macambúzio, circunspecto, o ex-trotskista, amigo de Sérgio Milliet, Mário Pedrosa, Anitta Malfatti e autor do romance Doramundo, tinha desde as hostes modernistas o apelido de “o açougueiro” pelo semblante de mal-encarado. Com Pagu era todo ternura, e ambos foram fundamentais para nosso biografado na visibilidade às suas primeiras composições e apresentação a outros artistas de nossa cidade que teriam renome nacional. Em torno de Pagu e Geraldo, Gilberto Mendes iria conhecer Plínio Marcos, a pintora Wega Nery, Evêncio da Quinta, Sérgio e Claudio Mamberti, autores como Carlos Alberto Sofredinni e Greg Filho. Não poderia esquecer de Júlio Bittencourt, que estrearia a primeira peça de Plínio “Barrela” com música de Gilberto, a atriz Terezinha Almeida que mais tarde seria tradutora de textos de Roland Barthes como “Fragmentos de um discurso amoroso” e que se casaria com o ator Jairo Arco e Flexa. Ainda naquele grupo que girava em torno de Pagu, que escrevia para a mesma tradicionalíssima A Tribuna de Santos e organizava os primeiros festivais de teatro amador brasileiro, havia um rapazinho de esquerda, idealista e candidato a ator que também estreou em “Barrela”: o futuro banqueiro Edmar Cid Ferreira: o mundo dá voltas! Quem sabe Pagu o profetizasse no seu livro O Banqueiro Anarquista. Apenas Júlio Bittencourt, voz potente e sincero comunista, permaneceu em Santos e tinha uma opinião sobre Mendes que nunca esqueci: “Independentemente do músico magnífico que se revelou mundialmente, Gilberto Mendes seria já por si um ser humano excepcional”. Não se trata de hagiografia, mas ele foi mesmo uma dessas figuras preciosas pela generosidade intelectual e afetiva. Decidido a alçar o voo da dimensão de sua tenacidade criativa, teve no professor e instrumentista Olivier Toni figura central. Aluno da Faculdade de Filosofia e Sociologia da USP nos anos 1940, colega de Fernando Henrique Cardoso e aluno de Florestan Fernandes, segue também aprendendo composição com Camargo Guarnieri e Hans Joachim Koellreuter e fundador da Orquestra Sinfônica da USP e do Departamento de Música da mesma universidade. Com apetrechos de informações múltiplas da música nacionalista, do folclorismo, conhecedor sutilíssimo da tradição, Gilberto estava pronto a empreender voo solo nas influências enriquecedoras farejando novos ventos nos quatro cantos do mundo, ele dado ao experimento libertador, iniciado no lance de dados mallarmaico musical, embebido de Schubert sem perder de vista o primeiro compasso da “Klavierstuck” de Stockhausen, astro insurgente no planeta invenção. O artista deve circular num movimento assim pendular: “esponja” e “garimpo”, assim nosso maestro absorvia de tudo feito ornitorrinco antropofágico e regurgitava criativamente tudo que absorvia existencial e esteticamente. Possuidor de técnica, aparato composicional, agora ampliaria o arco aglutinando confrades de experimento, participando de publicações específicas e catalisando talentos para romper amarras no que já intuía ser a “Música Nova” no Brasil.

Nessa maturidade o compositor amigo nos fala do que foi composto: desde Jeroe Kerne de “A Fine Romance” e “Never Gonna Dance” até a beleza “caramelada” do cancioneiro americano como “The Shadow of your smile” de Johnny Mandel e Paul Francis Webster cantada por Tony Bennet passando por “Die Nacht” de Richard Strauss. Mendes repetia um mantra de Andy Warhol: “Gosto de gostar das coisas”, sem preconceito logicamente privilegiando o que havia de melhor: “Mein Schoener Stern” de Schumann, o lindo “Si mes Vers Avaient des Ailes” de Reynaldo Hahn, compositor companheiro de Proust. Sem peias ou algemas estéticas, era a vida em sua plenitude que privilegiava. Outra frase que compartilhava com amigos era de Martin Scorsese: “A vida é ir a lugares, fazer coisas, conhecer pessoas”, gostava imenso de ouvi-lo exultante discorrer sobre a beleza de Natalie Portman, as trilhas sonoras de John Barry e Sakamoto assim como detalhes dos cenários de Fritz Lang! Nos anos 1950 já tinha composto obras a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade (“Episódio”), do grande e esquecido poeta fluminense Raul de Leoni (“Seis canções”) e do conterrâneo Vicente de Carvalho (“Sugestões do Crepúsculo”/ “Sonhos Póstumos”) e mais uma linda obra para voz e piano inspirada em Drummond (“Lagoa”). Ainda musicou também para voz e piano poemas de duas escritoras santistas que tiveram destaque bem além da terra: Maria José Aranha de Rezende (“Desencanto”), sobrinha de Vicente de Carvalho, e Antonieta Dias de Moraes (“A Tecelã”).

 Antonieta é um capítulo à parte: dama da sociedade santista, tornou-se comunista e rompeu com casamento deixando filhos no Brasil para se destacar internacionalmente autora infantojuvenil. Premiada na Espanha e França, traduzida em dezenas de idiomas, caiu num sintomático esquecimento para quem rompeu corajosamente tantos preconceitos. Ainda no começo dos anos 1960, Mendes adaptou poemas da não menos audaz escritora Hilda Hilst (“Trova I” / “Trova XV”). Hilda de Almeida Prado Hilst, nascida em Jau, morou cinco anos da infância em Santos no começo dos anos 1930, mais precisamente no mesmo terreno do tradicional Restaurante Baleia e na mesma quadra onde Gilberto viveria em vários endereços até o fim da vida entre as ruas da Paz, Arthur Assis e Avenida Conselheiro Nébias. Hilda por coincidência era prima do outro grande compositor santista José Antonio de Almeida Prado, autor de obras-primas como “Cartas Celestes” e amigo fiel sem nenhum traço de competividade de Mendes.

Traço marcante de Mendes o despojamento e ausência desse odioso senso de competitividade entre artistas tão comum. Nos meados dos anos 1950, Gilberto conhece uma outra escola poética e estética, o concretismo. Seguia a comunista, mas o XX Congresso do Partido Comunista Soviético com denúncias de Kruschev contra atrocidades do stalinismo e desvios através do culto a personalidade e centralismo cego foram decisivos para arrefecer o entusiasmo pelo socialismo realista. Ficaram no artista admiração pela resistência antinazista que o levava às lágrimas, a pedagogia de Makarenko nos anos 1930, o grande aporte de investimentos em cultura durante todo o regime e tudo aquilo que restou dum socialismo não contaminado pelos elementos intrínsecos à natureza humana desviada da fraternidade. Gilberto tornou-se um cético quanto ao comunismo por perceber que esses desvios de rota eram inerentes ao caráter daqueles que alçavam a liderança, a burocracia instalada e dificuldade de convivência do sistema com maior amplitude democrática. Repetia sempre que o homem em sua pequenez corrompia seus melhores sonhos. Cabe lembrar sua participação no Festival da Juventude em Viena em 1959, deslumbrado com a fraternidade de jovens de todos os quadrantes e concomitante com sua primeira viagem europeia logo de cara ao outro lado da “Cortina de Ferro”. Sempre recordava ver senhoras humildes de casacos puídos e homens nitidamente advindos do operariado em filas monumentais em torno do Bolshoi e Mariinky para prestigiar teatro, música de concerto e balés. A classe operária ia literalmente à alta cultura! Um sonho que nunca pôde presenciar no Brasil. Aquela virada de décadas marcaria imensas mudanças do compositor e o deslanche definitivo de sua carreira nacional. Claro que o ´espírito do tempo´ favorecia seus projetos estéticos. Surgiam novas sintaxes no romance com Guimarães Rosa e Clarice Lispector, o neoconcretismo de Lygia Clark e Lygia Pape, a criação de coletivos de teatro rompedores de todos os padrões e questionadores da miséria nacional como o Arena e o Oficina. O Cinema Novo colocava o Brasil no circuito mundial de experimentação com diretores de primeira linha capitaneados por Glauber Rocha e Nelson Pereira do Santos e ganhávamos a Palma de Ouro com o Pagador de Promessas, dirigido por Anselmo Duarte a partir da obra-prima de Dias Gomes. Nacionalismo e vanguardas convergiam dando-nos Ariano Suassuna, Ferreira Gullar e Vianinha, estes faziam com que o país se descobrisse ainda mais profundamente que pela Semana de 22, pela democratização radical muito além dos arroubos reformistas da burguesia.

Gilberto, leitor voraz dos clássicos marxistas, seguia fascinado os avanços socialistas, apesar de não cerrar fileiras com o nacionalismo musical de Francisco Mignone e Guarnieri; sem pendores folclóricos desde que nascido e criado em ambiente cosmopolita, fazia percurso liberto de iniciado nas experimentações sonoras sem desviar-se dos compromissos intrínsecos dum compositor do chamado terceiro-mundo. Pós-antropofágico, repito, era um “regurgitofágico”, sua marca era invenção como práxis e a heterodoxia estética como fio condutor. Se algo o incomodava na velhice, era alguma idiossincrasia cometida por intolerância conceitual. Recordava seu gosto por Rainer Maria Rilke e quanto se sentia culpado por esse não ser um poeta benquisto pelas “vanguardas”. Da mesma forma estranhava ter sido patrulhado pelo enlevo provocado por peças musicais feito a “Sonata Primavera” de Beethoven, tocada num amanhecer em Brasília por um inesperado violino num ensaio. Comentava curiosidade em abordar o gênio da raça Gilberto Freyre, sentado placidamente num salão da Bienal de São Paulo, não o fizera por desconfiança ideológica pelo apoio do mestre da sociologia ao Golpe de 64. Em 1962 Gilberto passa dois meses na Meca da neue Musik, aprendendo ensinamentos de Pierre Boulez, Stockhausen, Pousseur, Ligeti, Berio e Nono, acompanhado de dois jovens amigos que muito dariam o que falar na música brasileira: Willy Corrêa de Oliveira e Rogério Duprat. Willy assinaria o Manifesto Música Nova e Duprat se celebrizaria em trilhas de cinema e como um dos papas da Tropicália. Seria Duprat quem faria ligação entre Mendes e os concretistas. Trazendo desde o dodecafonismo até a influência de John Cage, nosso compositor estaria de novo fadado ao autodidatismo: quem ensinaria o que não se conhecia no Brasil? Seguindo as sendas dos “inventores” conforme Ezra Pound, faria um parto no que se entendia músicas eruditas, performáticas, eletroacústicas e até música-teatro. Elementos de cibernética, música aleatória, poesia concreta, colagens, happenings. Na esteira de tamanha miscelânea nasceriam “Blirium”, “Santos Football Music” e “Beba Coca-Cola”. Eram os anos de Pelé-Pepe-Coutinho e Mengálvio, a Vila Belmiro tornara-se centro nevrálgico do futebol mundial e que sorte de Gilberto ver florescer os mais radicais experimentos musicais na terra de Brás Cubas, afinal vulto que inspiraria personagem título na desconstrução do romance no século anterior por Machado. Ele até pensou nomear a obra para orquestra sinfônica com a participação do público-torcida do Santos Futebol Clube, mas temendo algum direito de uso pelo clube ampliaria seu escopo. Seria interpretada-encenada em todos os continentes tendo como regente mais conhecido Eleazar de Carvalho nos palcos europeus. Eleazar, que regera ao lado de Leonard Bernstein na América e conhecido pela austeridade nordestina, se rendera ao encanto da peça revolucionária do santista e torcedor do peixe. No entremeio da convivência com Diogo Pacheco, Pedrinho Mattar num escandaloso concerto no Teatro Municipal de São Paulo com suas músicas desconcertantes e na feitura de peças musicais para teatro de Millôr Fernandes no drama Ato sem perdão, paródia do AI-5, o maestro dava adeus ao partidão.

Santos era cenário mais turbulento do sindicalismo janguista antes do golpe, o porto fervia de agitação comunista e a repressão foi devastadora na “Moscouzinho tupiniquim”. Um navio capenga serviu de presídio logo após o 1º de abril de 1964 com a detenção de centenas de políticos, militantes e esquerdistas, até mesmo de liberais insuspeitos de subversão. Mendes, chefe de família, mantendo-se bancário e com carreira musical ascendente, de há muito perdera ilusões e decidira livrar-se do que restara da sua biblioteca marxista, obras de Maiakovski e Mandelstam, programas de balés russos e tratados sobre Eisenstein e Brecht, duas paixões. Recolheu material de sua casa na Rua Goiás próximo ao bucólico canal 3 santista, coalhado de jambolões e chamado por Cacilda Becker “Alameda dos Sonhos”; rumou para a Ponta da Praia numa ‘hora mágica’, como chamava o crepúsculo no zênite entre as ilhas e estuário, e despejou todo o acervo vermelho sob apito dalgum cargueiro rumando do Brasil que via descer os anos de chumbo. Em 1968 num tour por Praga, a esplendorosa Praga de Smetana e Kafka, do ‘art nouveau’ tão caro a Gilberto, ele se depara no olho do furacão com a euforia democratizante de Dubcek por um socialismo de face humana e com a primavera secundada pelos tanques soviéticos. Consegue escapar desse transe e retorna seu caminho de reconhecimento musical.

Nosso compositor autodidata adentra os portões da academia, se torna professor da pioneira turma do Departamento Musical da USP, dá aulas como livre-docente da PUC e nos anos 70 de novo se reinventa conhecendo o grande amor na maturidade. Eliane Ghigonetto, sua colega na Caixa Econômica e formada em química, um ser raro pela sabedoria e duma generosidade visceral, quase monástica. Das melhores amigas e mais um legado de Gilberto em minha vida: versada em cultura védica, nos chakras, sabedora da Cabala, exímia pintora, gastrônoma antes da onda dos chefs, é capaz de dissecar com mesma sensibilidade os cantos da Divina Comédia quanto interpretar os herméticos filmes de David Lynch. Lembro-me de assistir à linda cena de Eliane a ler com método no café da manhã, ouvindo Poulenc ou Arvo Part, a enigmática obra de Dante Alighieri e a biografia de Isaac Newton para o marido fascinado. Com misto de Edward Hooper solar e antecipando Beatriz Milhazes, os quadros de Eliane a partir de aspectos da cena marítima santista e retratos de Gilberto são decoração antológica na cobertura acolhedora do casal. Se o termo ‘companheira cumplice’ se adequa num casamento, esse foi o deles, começado em 16 de maio de 1975 com nosso maestro se dividindo entre aulas na USP sem nunca deixar de dormir em Santos, a quase aposentadoria na Caixa e os festivais de música pelo mundo.

O golpe militar fez o maestro driblar com sutileza as injunções da censura enquanto professor e artista. Santos foi atingida em cheio pela ditadura. Depois de eleger um brilhante advogado, popularíssimo deputado estadual e excrooner de orquestras de jazz, Esmeraldo Tarquínio, a cidade perdeu autonomia política e o direito de eleger seu prefeito. Foi um dos atos mais brutais desse regime discricionário: longe de ser comunista, eleito legitimamente, Esmeraldo foi cassado por ser negro. Infâmia que levou ao poder um general carrancudo, Bandeira Brasil, e nem mesmo assim o Festival de Música Nova perderia seu brilho. Sempre com um informante na plateia seria muito exigir entendimento dos fascistas imbecis a obras do minimalismo de Steve Reich ou John Adams. Seriam o mercado e o emburrecimento, a idiotização cultural que levariam o Festival de Música Nova perder espaço na agenda santista. Admirei ao longe desde sempre Gilberto Mendes, uma celebridade artística nacional pelas ruas de Santos em minha juventude: frequentando cinemas de mãos dadas com Eliane, caminhando pela praia, sabia ser na música algo que gostaria seguir na literatura: alguém entregue todo o tempo ao seu ofício sagrado de criador. Ainda que depois de conhecê-lo dessacralizar a figura do artista: dizia, citando Mário de Andrade, que o artista é um trabalhador como um artesão, um ourives que faz o que precisa a partir duma profunda necessidade interior. Acrescentava ser um músico nas horas vagas, um bancário que compunha. Sabíamos que não era assim… Lançando meus primeiros livros pela Editora 7Letras do Rio de Janeiro, consegui através duma amiga comum, a querida médica e professora de pneumologia Beatriz Arnaldo, que a compilação dos meus poemas fosse entregue ao mestre. Conheci por sua vez a Dra. Beatriz em reuniões culturais num verdadeiro “Grupo de Bloomsbury” santista na casa da psicóloga, escritora e artista plástica Valéria Álvarez Cruz. Valéria, uma figura mágica para mim, era mística, junguiana e analista muito peculiar da alma humana com saberes que iam desde William Blake até a astrologia de alto nível. Valéria era-me uma Blavastki adorável e com um círculo de amigos devotados. Era, por sua vez, filha dum eminente desembargador paulista, que tinha sido discípulo jovem de Mário de Andrade e amigo de Gilberto Mendes. A última das célebres cartas de Mário a Carlos Drummond de Andrade em fevereiro de 1945 foi um pedido de ajuda profissional ao recém-formado advogado santista. Lembro que Drummond à época era chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema. A casa de Valéria era por si uma obra-prima modernista do seu tio Vilanova Artigas, o mais importante arquiteto brasileiro de sua geração. Foi no casarão tombado pelo patrimônio histórico municipal que conheci a viúva de Mário Schenberg, o ex-marido de Cacilda Becker, Tito Fleury e aonde levei um grande romancista, Lucius de Mello, biógrafo de Eny, a cafetina do Brasil, meu querido amigo. Conhecedor de minhas obras, ficou mais fácil me apresentar a Gilberto que me surpreendeu numa livraria admirador de meus versos.

Gilberto dizia que minhas obras iconoclastas na forma e conteúdo lembravam o espírito inquieto do primeiro Haroldo de Campos, seu velho amigo. Fui seu amigo constante de conversas pessoais sobre James Joyce, Borges, Cortázar, Raul de Leoni, sobre o esquecido poeta santista Paulo Gonçalves, acerca da poesia de Anna Akmatova, seu cansaço por Nietszche e Sartre, admiração por Chesterton e a Sinfonia Pastoral de André Gide, sua loucura por Eça de Queiroz e Conrad, paixão por Fellini dos Boas Vidas e La Dolce Vitta e especialmente admiração pelos pintores Grunewald e Rouault. Por telefone eram duas a oito ligações por dia! Indicações de filmes de Etore Scola e Tarkovski nos canais a cabo, a reprise de comédias de Billy Wilder ou dramas de Joseph Losey ou para comentar crônicas de Sérgio Augusto e Ignácio Loyola Brandão no Estadão. Gilberto era sem nenhum preconceito estético: vibrava com novos clássicos de Woody Allen ou Almodóvar mas não perdia filmes de ação como A Casa da Rússia ou Identidade Bourne. Ele, que começou assistindo menino aos clássicos de Murnau, chegou a tempo de admirar De olhos bem abertos de Kubrick e Shame de Steve MacQueen, não descuidando de Sukurov e Kieslowsky. Descobriu na velhice autores que tinham passado despercebidos antes como Clarice Lispector.

Vi Gilberto receber a “Ordem Cultural” das mãos do Presidente Lula e do ministro Gilberto Gil, vi-o em ação trazendo atrações internacionais para o Festival de Música Nova, vi-o adaptar poemas meus como “Escorbuto, Cantos da Costa” para seu sinfônico “Alegres Trópicos” pela Osesp na Sala São Paulo. Ele gostava principalmente dum verso meu que ganhou notoriedade por suas mãos e notas: “Chuva no mar é desejo.” Mas também pude testemunhar seu desencanto com desvios da esquerda brasileira, sua preocupação ecológica crescente com o destino da Amazônia e chorar com desastres como de Mariana.

Tinha perdido muitas ilusões, mas ainda resistia por uma utopia muito particular de criação e motivação dos jovens. Bastava descobrir novos autores como Marcelo Ariel e observar esforços de Rubens Ricciardi Russomano no Departamento de Música de Ribeirão Preto para não esmorecer e retomar a crença. Era um prazer acompanhar Gilberto com Caio Pagano em cantinas da Bela Vista e com nosso querido amigo Lívio Tragtenberg nos restaurantes de frutos do mar na Ponta da Praia. A viagem à Rússia pós-soviética com o casal Edson Amâncio e Mara foi capítulo à parte tendo como pano de fundo a mesma devoção pela pátria de Dostoiévski e Shostakóvich. Nos seus 90 anos foi tocante ver toda a vida cultural de Santos e São Paulo reverenciar sua trajetória em concertos no Festival de Campos de Jordão, no Teatro São Pedro e no santista Teatro Guarany, que viu Sarah Bernhardt em 1889 e reformado com afrescos do artista plástico Paulo Von Poser fazendo as vezes de Benedito Calixto, para celebrar Mendes. Ter suas obras regidas no também santista Teatro Coliseu era tão recompensador quanto no Teatro Mariinky de São Petersburgo ou participar de concertos no Carnegie Hall. Gilberto era um cosmopolita nascido em ilha atlântica sua Ítaca, para onde sempre voltava com olhos marejados de saudade. Homem e músico formavam unidade indissociável da amplidão estética natural, quase que congênita: se entusiasmava tanto com uma paisagem do Haway, a arte do Languedoc ou de Toledo ou com o teatro kabuki. Gilberto refletia muito sobre de onde surgia o gosto, a tendência para o belo e seu cultivo persistente. Uso aqui citação do crítico cultural Harold Bloom: “Pragmaticamente, o valor estético pode ser reconhecido ou experimentado, mas não pode ser transmitido aos incapazes de aprender suas sensações e percepções. Brigar por ele é sempre um erro”.

Sempre terei muito a escrever sobre o compositor de “Ulysses em Copacabana Surfando com James Joyce”. Um mês antes da sua passagem, ele me pediu revisão dum poema meu saído dum sonho: “No fundo do vale verde”, que acabou sendo musicado para voz como sua derradeira canção com o nome profético de “Saudade”. Esse texto é uma homenagem e motivação aos que no século XXI iriam fazer arte com computador, teatro on-line, poesia por supercondutores, hologramas, grafites cósmicos, todos que vão seguir o legado musical e intertextual daquele que colocou o Brasil artisticamente na “transmodernidade”. E para nosso consumo emotivo quero lembrar as andanças de Mendes com o compositor irmão Jorge Peixinho em Portugal, a emoção de Mendes em Hollywood diante do célebre letreiro na cidade dos sonhos, Mendes caminhando pelas ruas de Amsterdã com Eliane e minhas descobertas “internéticas” de clássicos de Anton Wellbroak, Norma Scherer e Diana Durbin, saídos dos anos 1930 para seus olhos azulados de curiosidade infinita.

Gilberto Ambrósio Garcia Mendes foi compositor, professor universitário e autor de livros e artigos, um dos principais nomes da música contemporânea brasileira de vanguarda. Pioneiro em música aleatória e música concreta no Brasil, e signatário do Manifesto Música Nova de 1963. Wikipédia

Nascimento: 13 de outubro de 1922, Santos, São Paulo

Falecimento: 1 de janeiro de 2016, Santos, São Paulo

Cônjuge: Eliane Ghigonetto (a 2016)

Filhos: Carlos de Moura Ribeiro Mendes

Morte: 1 de janeiro de 2016 (93 anos); SantosSPBrasil


 Sobre Flavio Viegas Amoreira

Poeta, contista e crítico literário, Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas vozes da Nova Literatura Brasileira surgida na virada do século: a ‘’Geração 00’’. Utiliza forte experimentação formal e inovação de conteúdos, alternando gêneros diversos em sintaxe fragmentada. Aqui se publica poema de seu mais recente livro Des casulo.