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O pensamento de José Enrique Rodó

Pensar a América Latina, principalmente sob a perspectiva do papel exercido pelos intelectuais na sociedade, faz-se sobremaneira dificultoso, haja vista para as múltiplas interpretações possíveis das diversas obras produzidas pelos pensadores mais peculiares desse continente.

Se centrarmos o nosso raciocínio sobre a importância de alguns líderes intelectuais na busca de uma escrita da história própria da América Latina, intelectuais estes que se lançaram na empreitada de uma revisão crítica da identidade latino-americana, vemos que se intentou romper a sua posição acessória de um mero compêndio da história europeia ou simplesmente submissa aos auspícios estadunidenses. Com isso, costumou-se advogar que o poder dos intelectuais se justificaria pela sua incumbência natural de iluminar o caminho da massa disforme rumo ao progresso das letras e ao desenvolvimento nacional, passando pela compreensão do que realmente era a América Latina.

Passando além dos intelectuais formadores das nações latino-americanas, que foram protagonistas no palco das discussões durante a segunda metade do século XIX, vemos a predominância de alguns pensadores que se destacaram na construção de uma ideia nacional para a América hispânica e portuguesa, já na transição para o século XX. Nesse período, atemos nossa atenção ao uruguaio José Enrique Rodó, nascido em Montevidéu em 1872 e falecido em 1917.

Se pensarmos a produção intelectual a partir de uma caracterização personalista dos movimentos políticos na América Latina, os homens que lideraram o processo de construção e reconstrução nacional estavam imbuídos de um ideário intelectualizado comprometido com um grupo social, às vezes fazendo jus aos interesses das classes conservadoras, ou justificando seus atos conforme as ideologias liberais. No entanto, no final do século XIX o embate entre liberais e conservadores chegou a um arranjo, sendo sempre consolidadas medidas de agrado a ambos, uma vez que dependiam da mesma força, o Estado, para conter os avanços das massas, sempre ameaçadoras e perigosas aos olhos dos grupos dominantes da cena política e das relações econômicas.

Dessa forma, os países latino-americanos, inseridos mais complexamente e mesmo tardiamente no capitalismo que se aflorava como sistema internacional, atravessaram uma fase de crescimento econômico, ora sob o comando de conservadores ligados à Igreja Católica e às tradições de um passado que relutava em morrer, ora sob o comando de líderes de punho forte e reformista, mas sempre balizados por ideias forjadas no âmago de mentes inquietas – os intelectuais. O verdadeiro poder dos intelectuais se acreditava estar na missão, construída e fruto único da liberdade, a eles incumbida de levar pelas mãos aqueles oprimidos e reféns dos instintos e dos sentidos. A razão era o fim último da ação de cada governo, que deveria subjugar o Estado para ser também ele um servo seu, das ideias e dos valores benéficos à Humanidade como um todo.

Sob a ótica de Rodó, era preciso que se estabelecesse um Estado anti-utilitarista e a favor do homem em sua expressão máxima, em sua vida de ócio com dignidade, longe do pragmatismo exacerbado das influências norte-americanas. Abdicar à visão intelectual sobre o mundo, em favor de uma lógica exploradora e tão-somente do lucro, era o terrível fado que se caía sobre os ombros das Américas. Ora, o desenvolvimento econômico e a expansão das riquezas não eram ruins em si, mas o culto a esse progresso material não podia resultar em algo realmente digno ao homem.

É precisamente neste sentido que José Enrique Rodó desempenharia um papel de suma importância no pensamento latino-americano, indo muito além dos limites geográficos do Uruguai, como expoente no mundo todo. Tendo por base o contexto político do battlismo (as duas décadas iniciais do século XX uruguaio sob comando do colorado José Batlle y Ordóñez), Rodó escreveu inúmeras obras literárias, com mais de um milheiro de páginas escritas, criticando a posição tomada pelos líderes políticos de sua época, que aplicavam um modelo de desenvolvimento econômico importado, principalmente dos Estados Unidos, o que era incongruente com a realidade específica e culturalmente rica do seu país e do que julgava os bons costumes herdados dos conquistadores europeus.

Quanto a seu tempo, Rodó foi fortemente influenciado pelos debates de ideias decorrentes do batllismo, quando das reformas aceleradas promovidas nesse momento: havia certamente uma dialética entre os interesses conservadores da elite pecuarista do Uruguai, entre os interesses da Igreja e dos ainda caudilhos em potencial, e o reformismo anticlerical, utilitário e desenvolvimentista urbano do batllismo. Rodó trabalhou em prol do Partido Colorado, de Batlle, no início, mas com o desenrolar de suas políticas jacobinas foi significativa a sua mudança de pensamento.

O Uruguai que figurava em fins do século XIX e bem no alvorecer do século XX era um país pecuarista. A urbanização ainda em ritmo lento favorecia o domínio regional exercido pelas elites agrárias, representadas politicamente por partidos que apoiavam o caudilhismo, ainda que implicitamente. Mas o batllismo urbanizou e modernizou o Uruguai a ponto de fazer com que sua capital, Montevidéu, fosse um palco de letras, de homens do saber e de circulação das altas ideias.

Com base neste cenário político, Rodó criticará muitas posições ao seu tempo. Mas suas críticas mais fundamentais voltavam-se à ameaça estadunidense em fins do século XIX, tendo em vista a independência cubana e o domínio deste país recém-saído da tutela espanhola agora aos auspícios dos Estados Unidos.           Levando em conta sempre o olhar acurado de Rodó sobre os problemas que rondavam e que estavam entranhados nas estruturas da vida no continente do Novo Mundo, nesse contexto nasce a sua obra mais contundente quanto à formação de uma ideia de América Latina: Ariel. Tratava-se de um ensaio poético escrito no ano de 1900, que tinha como princípio a propagação conceitual e ativa dos valores máximos e bons à “juventude americana”.

Pautado em pilares como o idealizado “milagre grego” e nas benesses de algumas contribuições do modelo civilizacional europeu como um todo, em Ariel Rodó erigiu um amplo discurso sobre o potencial da América Latina enquanto a “juventude do mundo” – estado histórico este que seria o apanágio dos povos latino-americanos, que estavam se redefinindo e se construindo novamente enquanto nações únicas e de características autênticas, podendo e devendo fornecer o novo paradigma de civilização ao mundo.

Como fundamento simbólico de Ariel, Rodó elege A Tempestade de Shakespeare para criar a analogia da situação da América Latina, revivida com os personagens principais da peça: Próspero, Caliban e Ariel. Vemos se formar, então, uma caracterização das relações de identidade entre América Latina, Estados Unidos e Europa. Próspero seria o conquistador europeu, de moral elevada, tendo a Europa do século XVI como portadora do espírito do progresso que deveria ser implantado no mundo todo sob o fôlego da juventude grega arraigada ao longo dos séculos nos homens de saber; Ariel poderia ser, e de fato o era na metáfora, a representação do “espírito do ar”, que foi libertado pelo seu senhor e agora era o jovem potente, esperançoso e cheio do entusiasmo em uma América  Latina que ele encarnava e dava de presente aos cuidados dos intelectuais iluminados; em oposição, Caliban seria o perigo da avareza e da irracionalidade, das paixões que se impunham sobre a razão e sobre os valores religiosos e tradicionais que compunham as bases de um convívio harmonioso. Caliban não era a alternativa que a América Latina deveria traçar e aceitar, mas, sim, a vontade e iluminação intelectual do jovem Ariel.

Tendo em mente que os intelectuais são aqueles que estão por trás do Estado, que o colocam em marcha e definem as diretrizes de seus planos de governo, o intelectual se põe como herói, um Ariel: ele se posiciona na missão de salvar a nação. As massas no poder ocasionariam uma deterioração social, indo contra a lógica desenvolvimentista do sistema capitalista sob a ótica da evolução, ou mesmo dos interesses dos homens letrados apartados do mundo ou puros clérigos sectários. Ter conhecimento erudito e iluminado do humanismo é dote de poucos, sendo que estes que a possuem são incumbidos de levá-la aos demais, que não tiveram acesso às letras, por bem do processo evolutivo, que, ao privar alguns do conhecimento, dão a outros a oportunidade de tornar dele um ofício.

Historicamente, é como portador de interesses voltados para um substrato social que Rodó escreve, pois sua fundamentação discursiva segue os mesmos padrões defendidos pelas forças conservadoras e, de certa forma, pelas forças antiprogressistas. Os valores econômicos necessários de serem cultivados para um desenvolvimento estrutural, urbano e industrial, foram postos no caminho inverso pelo pensamento contido em Ariel: este progresso não era o desejado, pois seria o fim do livre-pensamento e da intelectualidade.

Passando ao largo das tendências do discurso arielista, impressiona sobremodo a linguagem e a fineza intelectual de José Enrique Rodó, muito empenhado em construir tanto um sistema literário próprio e digno como um pensamento fundador, ou refundador, de uma nação que seguia às traças sob o poder batllista: impiedoso no modernismo reformista a qualquer custo das consequências sociais.

Todavia, perpassando as contribuições intelectuais do José Enrique Rodo, não podemos ter como intuito considerá-lo um conservador ou reacionário à sua época, pura e cruamente como são considerados outros pensadores que o antecederam. Rodó condenava o caudilhismo e outras formas de poder afins na mesma proporção do populismo batllista. Talvez se possa demonstrar que suas ideias se distanciavam da filosofia liberal – do liberalismo compreendido enquanto representação de uma práxis econômica ligada à mentalidade anglo-saxônica–, mas se aproximavam de alguns pressupostos democráticos, ainda que sempre moderado e comedido ao se pronunciar sobre as faculdades e a degenerescência do poder sob o mando do povo. Segundo Rodó, as massas não poderiam nunca ser confiáveis, visto sua incapacidade de apreensão do conhecimento fino e verdadeiro, somente alcançado por uma vida empenhada e dedicada aos estudos desde a tenra idade, ou seja, a juventude.

Enfim, quiçá possamos revisitar alguns temas tratados por Rodó e o mito de Ariel na América Latina como bases do imaginário dos intelectuais que intentaram pensar rumos distintos para a sua modernização, não somente em termos econômicos e urbanos, mas também literários e artísticos, trazendo seus ônus e bônus aos países atuais que, mesmo cruzando o limiar do século XXI, não resistem em deixar morrer as forças do seu passado, em um movimento quase inconsciente de rejeição do utilitarismo e do vil apreço ao mundano estereotipados no Novo Mundo da América anglo-saxã.

Saiba quem foi José Enrique Rodó:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Enrique_Rod%C3%B3


Bibliografia

 

Fernández Retamar, Roberto. Calibán: apuntes sobre la cultura en nuestra América. Ciudad de México, Editorial Diógenes, 1971.
Merquior, José Guilherme. O Outro Ocidente. Presença: Revista de Política e Cultura, nº 15. Rio de Janeiro, Abril/1990, pp. 69-91.
Ricupero, Bernardo. A tempestade e a América. Lua Nova, nº 93. São Paulo, 2014, pp. 11-31.
Rodó, José Enrique. Ariel. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.
Shakespeare, William, 1564-1616. The Tempest: with New and Updated Critical Essays and a Revised Bibliography. New York: Signet Classic, 1998.
Souza, Marcos Alves. A cultura política do batllismo no Uruguai: 1903-1958. 1. ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003. v. 1. 168p.


 Sobre Júlio Bonatti

É doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, tendo realizado parte do seu projeto como pesquisador visitante na School of Languages and Applied Linguistics da Open University, Inglaterra.