Timofey Sergeytsev [1]
Nota à edição ucraniana
O estrategista político russo Timofey Sergeytsev publicou recentemente, na principal publicação estatal russa, RIA Novosti, o artigo a seguir, que é, na verdade, um pequeno análogo do Mein Kampf versão Vladimir Putin. O texto explica a necessidade da destruição sistemática dos ucranianos e do estado da Ucrânia, com base nos objetivos monstruosos da política de Putin. Acreditamos que o mundo deve conhecer esse plano. Por isso oferecemos aqui uma tradução para o inglês desse texto (Timofey Sergeytsev. “What should Russia do with Ukraine?”. The Ukranian Post. Disponível em: shorturl.at/bqNY4).
Explicação à tradução brasileira
Na longa véspera da Segunda Guerra Mundial, véspera que se iniciou em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, as elites ocidentais, do Leste da Europa à costa Oeste norte-americana, incluindo políticos, economistas, historiadores, sociólogos, escritores, jornalistas, artistas etc., à direita, ao centro e à esquerda (Stálin faria um pacto de não agressão com Hitler), discutiram à exaustão as reais intensões do novo chanceler alemão, seus prováveis movimentos futuros, o que fazer e o que não fazer: para apaziguá-lo, satisfazê-lo, “compreender” suas alegações etc. (uma das exceções foi Winston Churchill, que passou os anos 1930 denunciando a ameaça nazista – e seu real significado – como um profeta clamando no deserto).
A história mostrou de forma cabal que a vasta maioria errou de forma cabal. E, de certo modo, errou voluntariamente. Porque Hitler não escondeu nada desde os anos 1920, quando iniciou sua carreira política, até afinal invadir a Polônia e levar o mundo à guerra em 1º de setembro de 1939 – depois de ocupar a Renânia, a Tchecoslováquia e a Áustria.
Em seus discursos e no livro Mein Kampf, toda sua ideologia e toda sua política, incluindo sua geopolítica, estavam explícitas, reiteradas, repetidas, detalhadas. Mas a intelligentsia ocidental encontrou mil razões bizantinas para descobrir sutilezas, complexidades e subsentidos onde havia completa clareza de propósitos.
Os motivos desse autoengano foram tema de bibliotecas inteiras. Vão desde a vontade genuína, apesar de inútil, de tentar evitar uma nova guerra mundial, depois de 1914-18 (o “apaziguamento” de Hitler através de concessões), até mais ou menos inconfessadas e inconfessáveis simpatias pelo nazismo (por criptofascismo e antissemitismo compartilhado), passando pela crença agradável de que o principal alvo da crescente máquina de guerra da Alemanha seria a URSS de Stálin, não as democracias europeias.
Guardadas todas as muitas e muito grandes diferenças, algo muito semelhante, em vários aspectos, acontece agora. Tanto na clareza das razões de Vladimir Putin para a invasão e a deliberada destruição da Ucrânia, quanto no autoengano e na “dificuldade” de compreensão dessas razões claras e declaradas por parte importante da intelligentsia ocidental.
As razões, as motivações e os objetivos de Putin e de sua camarilha para a invasão e a destruição da Ucrânia (incluindo os ucranianos) são conhecidos. E são conhecidos pelas palavras do próprio Putin e de seus ideólogos, através de inúmeros discursos, textos e livros. Mas, repita-se, parte importante da intelligentsia ocidental recusou-se, ao longo dos últimos anos – e recusa-se ainda – a reconhecer o conhecido sobre Putin, sua ideologia e sua geopolítica. Começando por Angela Merkel – que, como Chamberlain, quis acreditar poder apaziguar Putin (integrando-o à economia europeia via gasodutos russos e, óbvio, também pela compra de seu produto barato) e terminando no vasto “campo da esquerda”, acadêmico ou não, sempre imerso em seu eterno sonho de ver o fim do “império” americano e ávido por acreditar que Putin desafia a OTAN. O nonsense agora chega ao ponto de se “desconfiar” de que não são os agressores que estão agredindo suas vítimas, ou seja, massacrando os ucranianos, mas estes que estão matando a si mesmos, para “culpar” a “pobre” Rússia…
O texto a seguir, escrito originalmente em russo e de autoria de um influente ideólogo russo contemporâneo, explicita e sintetiza a visão distorcida, homicida e etnocida da atual geopolítica russa, e expõe os reais motivos da invasão da Ucrânia: o nacional-imperialismo xenófobo russo.
Se, para a racionalidade política “normal”, as motivações a seguir apresentadas parecem inverossímeis, a mobilização de um exército de 200 mil homens e a invasão e destruição da Ucrânia deveriam ser mais do que suficientes para demonstrar qual é de fato a geopolítica russa atual. Afinal, ela está sendo realizada monstruosidade às claras, em tempo real. Mas, de modo paradoxal, os fatos da invasão servem para muitos no Ocidente argumentarem que esses mesmos fatos demonstram não serem o que parecem ser… A própria pantomima verbal orwelliana de Putin, de chamar a invasão da Ucrânia de “operação militar especial”, deveria bastar para que o resto do discurso de Moscou fosse descartado como aquilo o que é: sofisma, mentira e engodo (apesar mesmo da contraditória exposição de seus reais motivos e motivações em vários textos, como o que se lerá aqui; não será a primeira vez na história: um dos motivos de todo esse ruído chama-se contradição; o outro, tentativa de gerar confusão).
Mas, afinal, e a “ameaça” da OTAN à “pobre” e acuada Rússia, via Ucrânia?, evocam os bem-pensantes da fria realpolitik. Em primeiro lugar, a Ucrânia nunca esteve sequer perto de se tornar membro da OTAN: nenhum trâmite neste sentido foi jamais iniciado. Em segundo lugar, Letônia e Estônia fazem fronteira com a Rússia. Letônia e Estônia fazem parte da OTAN há mais de uma década. A OTAN está na fronteira da Rússia há mais de uma década.
A mentira tem pernas curtas. E a grande mentira, pernas curtíssimas:
“Em entrevista ao jornal britânico The Telegraph, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse que a OTAN está ‘no meio de uma transformação muito fundamental’ que refletirá ‘as consequências de longo prazo’ das ações do presidente russo, Vladimir Putin”.[2]
Ou seja, trata-se exatamente do contrário:
“Desde o fim do nazismo, o rearmamento alemão era tabu. A invasão da Ucrânia mudou tudo. Ficou claro que guerras convencionais não são coisa do passado”, diz o professor da Fesp-SP, Bernardo Wahl, especializado em segurança e defesa pelo William J. Perry Center for Hemispheric Defense Studies, dos EUA. A Alemanha acaba de destinar US$ 113 bilhões para as Forças Armadas e mais de 2% do PIB para a defesa. A Romênia ampliou em 25% os gastos militares. A França fala em aumentar até US$ 66 bilhões em 12 anos. Na Estônia, 2,5% do PIB será destinado à defesa. Bélgica, Itália, Polônia, Letônia, Lituânia, Noruega e Suécia também anunciaram mais gastos no setor.[3]
E continua. A Finlândia, como a Ucrânia, possui uma extensa fronteira com a Rússia:
A Finlândia entra nesta semana na fase decisiva sobre sua candidatura à OTAN. Esta possibilidade, impensável até o começo deste ano, voltou a ser cogitada depois do início da guerra na Ucrânia.[4]
E continua…
O governo social-democrata da Suécia anunciou hoje o início de um debate interno sobre a situação estratégica do país e a possibilidade de uma adesão à Otan, um cenário aberto desde o início da invasão russa à Ucrânia.[5]
A Rússia atacará então toda a Europa? Ou o espantalho da OTAN não passou disto, de um espantalho costurado à medida da ingenuidade ou má-fé antiocidentalista de parte importante da opinião pública russa e também de parte significativa da intelligentsia ocidental, essa multidão de órfãos da Guerra Fria e de ex-simpatizantes da URSS que, agora, correm para “compreender” as razões russas, ou seja, as alegações de Moscou para tentar justificar o injustificável, a invasão e destruição da Ucrânia e sua pretensa e absurda “desnazificação” que, apesar de absurda, ou porque absurda, foi facilmente “comprada” por essa mesma intelligentsia?
Mas e a economia, os gasodutos, as terras raras…?, ecoa então o marxismo vulgar que se tornou o mantra dos “espertos” e de muitos experts.
As motivações de Hitler jamais foram primária ou predominantemente econômicas. Tratava-se, em primeiro lugar, de poder, de hegemonia, de cumprir o “destino” imperial alemão, ou seja, de submeter a Europa e criar o Lebensraum, o “espaço vital” que o nacionalismo germânico reivindicava para o povo alemão. É o caso da Rússia de Putin, trocando-se Europa por Leste europeu.
Suas ambições territoriais, suas ambições imperiais, são muito mais importantes do que qualquer outra coisa, incluindo o sustento da população russa e a situação financeira do país [Andrei Illarionov, principal conselheiro econômico de Putin de 2000 a 2005, hoje exilado].[6]
Enquanto a mesma OTAN estabelecida em suas fronteiras estonianas e letãs não era ameaça alguma, a Rússia de Putin (a verdadeira ameaça à Europa), à maneira de Hitler na Renânia, na Tchecoslováquia e na Áustria, já em seu primeiro ano de governo (1999), esmagou de modo selvagem os separatistas da Chechênia, incluindo reduzir a pó (além de sangue e coágulos) sua capital, Grósny. Em 2008, foi a vez da Geórgia, país independente, de ser invadida para frear sua aproximação com o Ocidente – isto é, seu afastamento e sua independência de Moscou. Finalmente, após o “inverno de fogo” de 2013-2014, quando os ucranianos derrubaram, apesar da repressão sangrenta, o governo de Viktor Ianukovitch, subserviente a Putin, este invadiu a Crimeia e instigou e armou os separatistas do Donbass, iniciando o processo de submissão e destruição da Ucrânia que agora tenta completar.
Nas guerras de agressão (há as de defesa, como a ucraniana), além dos “espertos” e dos experts, vale a velha consciência moral: “Tome partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado” (Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e Prêmio Nobel da Paz).
Cem imagens dizem mais que um milhão de palavras: o documentário Winter of Fire (Netflix), todo com imagens da revolta popular em Kiev em 2013-2014, é tão imprescindível para entender o que se passa quanto a filmagem do sufocamento de George Floyd para compreender o Black Lives Matter.
De fato, não se pode entender nada do que agora acontece na Ucrânia sem ver as manifestações massivas de 2013-2014 em Kiev, com a população nas ruas gritando “Somos europeus” e agitando bandeiras de União Europeia ao lado das ucranianas. O movimento popular ucraniano de 2013-2914 visava tão-somente isto: integrar a Ucrânia à UE, promessa de campanha de Ianukovitch depois traída por um acordo com Putin. Ianukovitch foi derrubado pela revolta popular (ao custo de centenas de mortos pelas forças de segurança) e fugiu para Moscou. O resto é história. A história das ações de Putin visando manter, a partir de então, a qualquer custo, a Ucrânia na órbita do Império Russo, digo, da União Soviética, digo, da Federação Russa. Tudo mais é ilusão, propaganda, engano, autoengano e mentira. A “deseuropização” da Ucrânia – além de sua “desucranização” [!] – é um dos temas principais do texto a seguir. A OTAN, por outro lado, salvo uma única a rapidíssima exceção, no contexto de uma referência à EU, é a grande ausente.
Em anos recentes, vários termos político-ideológicos foram vulgarizados e descaracterizados à exaustão. Entre eles fascista, nazista, genocida e genocídio. Qualquer oponente do “campo da esquerda” ou dos autodeclarados “progressistas” são fascistas, nazistas ou ambos. Putin apenas imitou esse cacoete ao afirmar insanamente que a Ucrânia é um país “nazista”. Mais insanamente, muitos quiseram acreditar.
Quanto a genocídio, todo assassinato de um grupo de pessoas passou a ser um. Trata-se, ainda mais objetivamente, de um uso impróprio, pois seu significado etimológico, histórico e jurídico não corrobora minimamente essa vulgarização. O sufixo –cídio em português (parricídio, infanticídio etc.) é sinônimo de assassinato. E gens (geno-cídio) referre-se a grupo étnico, ou, mais genericamente, a povo. Genocídio é a destruição física de um povo (assim definido nos dicionários e na jurisprudência da ONU).
O texto abaixo defende o genocídio do povo ucraniano e a eliminação da Ucrânia. Neste caso, o qualificativo de genocida aplicado ao texto não é descabido, ao contrário. Assim como à geopolítica de Putin.
Como Hitler, em sua época, representou uma ameaça existencial aos valores diretamente derivados do iluminismo e do humanismo, hoje Putin representa algo equivalente. Quem ainda quiser se enganar, leia o texto a seguir com um mínimo de vagar e atenção – e espanto. Depois, lembre que o autor é um dos porta-vozes ideológicos de um poder instalado em um Estado nuclear.
Adendo: Como subproduto dos incontáveis metamitos que hoje proliferam e se retroalimentam no Ocidente, há os que não se cansam de “questionar” e “denunciar” certa “Mídia” maiúscula e singular: trata-se de uma entidade um tanto metafísica que, sediada em algum lugar nos EUA e/ou na UE, manipularia corações e mentes de todos que se deixam manipular… pela “Mídia”. Claro, é um argumento circular. Se não bastasse, tal entidade não existe. Ao menos, no Ocidente. Porque a internet é aberta. Pode-se navegar por todas as fontes do planeta, em qualquer meio, língua e origem. O que existe, obviamente, são mídias minúsculas (de todos os tamanhos) e múltiplas. A ironia é que apenas em regimes totalitários, como o russo e o chinês, o Estado tenta criar uma Mídia única, oficial, através de censura e da repressão. No Ocidente, não. Pode-se ler o New York Times, mas também sites anarquistas, defensores do “Sul global”, stalinistas, trotskistas, islamitas, europeus, africanos, asiáticos… Há, na verdade, tantas mídias na grande mídia que é a internet aberta que não é possível sequer apreender sua dimensão. No mais recente movimento do nacional-imperialismo russo, que é a invasão e a destruição da Ucrânia independente, o mito da “Mídia” é usado e abusado por ingênuos e por nada-ingênuos a fim de criar ruído metainformacional: acatam-se certas informações, atacam-se outras, e também a “origem” de muitas informações, que seria a própria grande e maiúscula “Mídia”, literalmente ao gosto ou à má-fé de cada um. Não era assim no Vietnã: ninguém ousaria questionar quem era o agressor e quem o agredido. A Ucrânia é o Vietnã da Rússia. Eis, na verdade, o que “complica” tudo: afinal, o “Mal” não é ocidental?
Mas, apesar de tudo, as informações estão aí. Tão visíveis e inquestionáveis quanto cadáveres ucranianos espalhados pelas ruas de Butcha. Ou quanto o verdadeiro pequeno Mein Kampf da atual geopolítica russa que se lerá a seguir.
Luis Dolhnikoff
O que a Rússia faz na Ucrânia
Timofey Sergeytsev
Em abril do ano passado, escrevemos sobre a inevitabilidade da desnazificação da Ucrânia. Não precisamos de nazistas, Ucrânia Bandera,[7] inimiga da Rússia e instrumento do Ocidente para destruir a Rússia. Hoje, a questão da desnazificação passou para a prática.
A desnazificação é necessária quando uma parte significativa do povo – provavelmente a maioria – é dominada e atraída pelo regime nazista para sua política. É quando a hipótese “pessoas boas/poder ruim” não funciona. O reconhecimento deste fato é a base da política de desnazificação – de todas as suas atividades. E o próprio fato é seu objeto.
A Ucrânia está nessa situação. A desnazificação é um conjunto de medidas contra a população em massa nazista, que tecnicamente não pode ser punida diretamente como criminosos de guerra.
Os nazistas que pegaram em armas devem ser destruídos no campo de batalha. Não deve haver distinção significativa entre as Forças Armadas da Ucrânia e os chamados batalhões nacionais, bem como as forças de defesa territorial que uniu esses dois tipos de formações militares. Todos eles ainda estão envolvidos em exorbitantes crueldades contra civis, são igualmente culpados do genocídio do povo russo e não cumprem as leis e costumes da guerra. Criminosos de guerra e nazistas ativos devem ser punidos de forma brutal e exemplar. A limpeza total deve ser realizada. Quaisquer organizações associadas à prática do nazismo serão liquidadas e banidas. No entanto, além do topo, uma parte significativa das massas, que são nazistas passivos, cúmplices do nazismo, também são culpados. Eles apoiaram e favoreceram o poder nazista. A punição justa dessa parte da população só é possível ao suportar as inevitáveis dificuldades de uma guerra justa contra o sistema nazista, que é realizada da forma mais cuidadosa e prudente possível contra os civis. A desnazificação seguinte dessa massa da população consiste na reeducação, que é alcançada pela repressão ideológica (supressão) das atitudes nazistas e censura estrita: não apenas na esfera política, mas necessariamente também no campo da cultura e da educação. Foi através da cultura e da educação que se preparou e realizou uma profunda nacionalização em massa da população, fixada pela promessa de dividendos da vitória do regime nazista sobre a Rússia: propaganda nazista, violência interna e terror, além de uma guerra de três anos com o povo de Donbass que se rebelou contra o nazismo ucraniano.
A desnazificação só pode ser realizada pelo vencedor, o que implica (1) seu controle incondicional sobre o processo de desnazificação; (2) o poder que lhe confere tal controle. Nesse sentido, o país desnazificado não pode ser soberano. A nação desnazificante – a Rússia – não pode agir a partir de uma abordagem liberal para a desnazificação. A ideologia do desnazificador não pode ser contestada pela parte culpada submetida à desnazificação. O reconhecimento da Rússia da necessidade de desnazificar a Ucrânia significa reconhecer a impossibilidade do cenário da Crimeia e do rebelde Donbass para a Ucrânia como um todo.[8] No entanto, esse cenário era impossível em 2014.[9] Agora, oito anos de resistência à violência e ao terror nazistas levaram à coesão interna e à recusa em massa consciente e inequívoca de manter qualquer unidade e conexão com a Ucrânia, que se define como uma sociedade nazista.
O período de desnazificação não pode ser inferior a uma geração, que deve nascer, crescer e atingir a maturidade nas condições da desnazificação. A nazificação da Ucrânia durou mais de 30 anos – desde pelo menos 1989, quando o nacionalismo ucraniano recebeu formas legais e legitimadoras de expressão política e liderou o movimento pela “independência”, precipitando-se para o nazismo.[10]
A peculiaridade da moderna Ucrânia nazista é ser amorfa e ambivalente, o que permite disfarçar o nazismo como um desejo de “independência” e como um caminho “europeu” (ocidental, pró-americano) de “desenvolvimento” (na realidade, de degradação).[11] Além de argumentar que na Ucrânia “não há nazismo, apenas excessos privados isolados”. Afinal, não há nem um partido nazista, nem um Führer, nem leis raciais amplas (apenas sua versão reduzida, na forma de repressão contra a língua russa).[12] Como resultado, não há oposição ou resistência ao regime.
No entanto, todos os itens acima não fazem do nazismo ucraniano uma “versão leve” do nazismo alemão durante a primeira metade do século XX. Ao contrário, uma vez que o nazismo ucraniano está livre de tais marcos e restrições de “gênero”, ele se desdobra livremente como a base fundamental de todo o nazismo – como o europeu e, na sua forma mais desenvolvida, o racismo americano. Portanto, a desnazificação não pode ser realizada como um compromisso, baseado em uma fórmula como “OTAN, não, EU, sim”. O próprio Ocidente coletivo é o criador, a fonte e o patrocinador do nazismo ucraniano, enquanto os quadros ocidentais de Bandera e sua “memória histórica” são apenas uma das ferramentas da nazificação da Ucrânia. O ucranonazismo representa não menos, mas mais ameaça à paz e à Rússia do que o nazismo alemão de Hitler.
O nome “Ucrânia” não deve ser preservado como o de qualquer entidade estatal totalmente desnazificada no território libertado do regime nazista. As repúblicas populares recém-criadas em um espaço livre de nazistas devem crescer e crescerão a partir da prática do autogoverno econômico e da seguridade social, da restauração e modernização dos sistemas de suporte à vida da população.
Sua aspiração política não pode ser neutra – a expiação da culpa perante a Rússia por tratá-la como um inimigo só pode ser realizada confiando à Rússia os processos de reconstrução, renascimento e desenvolvimento. Nenhum “plano Marshall” deve ser permitido para esses territórios. Não pode haver “neutralidade” no sentido ideológico e prático compatível com a desnazificação. As pessoas e as organizações que são e serão um instrumento de desnazificação nas repúblicas recém-negadas [sic] não podem deixar de contar com o poder direto e o apoio organizacional da Rússia.
A desnazificação inevitavelmente também será a desucranização – uma rejeição do inflar artificial em grande escala da composição étnica de autoidentificação da população dos territórios da histórica Pequena Rússia, iniciada pelas autoridades soviéticas.[13] Sendo um instrumento da superpotência comunista, o etnocentrismo artificial não ficou órfão após sua queda. Ele passou desta posição oficial para a mesma posição sob outra superpotência – a superpotência do Ocidente. Tal instrumento deve ser devolvido às suas fronteiras naturais e privado de funcionalidade política.[14]
Ao contrário, digamos, da Geórgia e dos países bálticos, a Ucrânia, como a história mostrou, é impossível como Estado-nação, e as tentativas de “construir” isso naturalmente levam ao nazismo. O ucranismo é uma construção artificial antirrussa que não tem conteúdo civilizacional, um elemento subordinado de uma civilização alheia e alienígena. A desbanderização em si não será suficiente para a desnazificação – o elemento Bandera [o nacionalismo ucraniano] é apenas um disfarce para o projeto europeu de uma Ucrânia nazista. Portanto, a desnazificação da Ucrânia também é sua inevitável deseuropeização.[15]
A elite Bandera deve ser eliminada, sua reeducação é impossível. O “pântano” social que o sustentou ativa e passivamente por ação e inação deve sobreviver às agruras da guerra e aprender a experiência como lição histórica e expiação de sua culpa. Aqueles que não apoiaram o regime nazista sofreram com isso e com a guerra que desencadeou no Donbass, e devem ser consolidados e organizados e se tornar a espinha dorsal do novo governo, vertical e horizontal.[16] A experiência histórica mostra que tragédias e dramas de guerra beneficiam povos seduzidos e fascinados pelo papel de inimigo da Rússia.
A desnazificação como objetivo de uma operação militar especial é entendida como uma vitória militar sobre o regime de Kiev, a libertação de territórios de apoiadores armados de nazistas, a eliminação de nazistas irreconciliáveis, a captura de criminosos de guerra, bem como a criação de condições sistêmicas para a posterior desnazificação do tempo de paz.
Este último, por sua vez, deve começar com a organização de órgãos de autogoverno local, polícia e defesa despojados de elementos nazistas, e o lançamento das bases dos processos constitutivos da fundação de um novo estado republicano, e a integração desse estado em cooperação com o departamento russo para desnazificação da Ucrânia (recém-criado ou redesenhado: a Rússia deve atuar como guardiã dos Julgamentos de Nuremberg).[17]
Tudo isso significa que, para atingir os objetivos de desnazificação, é necessário apoiar a população e sua transição para o lado da Rússia após a libertação do terror, da violência e da pressão ideológica do regime de Kiev, após a retirada do isolamento informacional.[18] É claro que deve levar algum tempo para as pessoas se recuperarem do choque das hostilidades e se certificarem das intenções de longo prazo da Rússia – de que elas não serão abandonadas. É impossível prever de antemão em que territórios tal massa da população constituirá uma maioria criticamente necessária. É improvável que a “província católica” (o oeste da Ucrânia) faça parte dos territórios pró-russos. A linha de exclusão, no entanto, será encontrada empiricamente. Ela permanecerá hostil à Rússia, mas forçosamente neutra e desmilitarizada ao banir formalmente o nazismo. Os inimigos da Rússia irão para lá. A garantia de manter essa Ucrânia residual em estado neutro deve ser a ameaça de continuação imediata da operação militar em caso de descumprimento dos requisitos listados. Isso pode exigir uma presença militar russa permanente em seu território. Da linha de exclusão à fronteira russa, haverá um território de potencial integração na civilização russa, antifascista em sua natureza interna.[19]
A operação de desnazificação da Ucrânia, iniciada na fase militar, seguirá a mesma lógica e as mesmas etapas, em tempo de paz, da operação militar. Cada uma precisará alcançar mudanças irreversíveis, que serão os resultados da etapa correspondente. Os passos iniciais necessários de desnazificação podem ser determinados da seguinte forma:
– Eliminação das formações armadas nazistas (o que significa quaisquer formações armadas da Ucrânia, incluindo as Forças Armadas da Ucrânia), bem como infraestrutura militar, de informação e de educação que assegura sua atividade;
– Formação de órgãos de autogoverno popular e milícias (defesa e lei e ordem) de territórios libertados protegendo a população do terror dos grupos nazistas clandestinos;
– Instalação do espaço de informação russo;
– Retirada de materiais educativos e proibição de programas educacionais em todos os níveis contendo conteúdos ideológicos nazistas;
– Ações investigativas em massa para estabelecer responsabilidade pessoal por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, disseminação da ideologia nazista e apoio ao regime nazista;
– Publicação dos nomes dos cúmplices do regime nazista e sua condenação a trabalhos forçados para restaurar infraestruturas destruídas como punição por atividades nazistas (entre aqueles que não estarão sujeitos à pena de morte ou prisão);
– Adoção em nível local, sob a supervisão da Rússia, de atos normativos primários de desnazificação “de baixo”; proibição de todos os tipos e formas de renascimento da ideologia nazista;
– Instalação de memoriais, placas e monumentos às vítimas do nazismo ucraniano, e perpetuação da memória dos heróis da luta contra ele;
– Inclusão de um conjunto de normas antifascistas e de desnazificação na constituição das novas repúblicas populares;
– Criação de órgãos permanentes de desnazificação por 25 anos.
A Rússia não terá aliados para a desnazificação da Ucrânia. Porque é um problema puramente russo. E também porque não apenas a versão Bandera da Ucrânia nazista será erradicada, mas também, sobretudo, o totalitarismo ocidental, programas impostos de degradação e desintegração civilizacional, mecanismos de subordinação à superpotência do Ocidente e dos Estados Unidos.
Para levar a cabo o plano de desnazificação da Ucrânia na vida da própria Rússia, esta terá que finalmente romper com as ilusões pró-europeias e pró-ocidentais, para realizar-se como a última instância de proteção e preservação daqueles valores da Europa histórica (Velho Mundo) que o merecem e que o Ocidente acabou abandonando, perdendo-se na luta por si mesmo. Essa luta durou todo o século XX e se expressou na Grande Guerra e na Revolução Russa, indissociavelmente ligadas uma à outra.
A Rússia fez todo o possível para salvar o Ocidente no século XX. Implementou o principal projeto ocidental, uma alternativa ao capitalismo, que derrotou os Estados-nação – um projeto socialista e vermelho. Esmagou o nazismo alemão, um produto monstruoso da crise da civilização ocidental. O último ato de altruísmo russo foi a mão amiga da Rússia, pela qual a Rússia recebeu um golpe monstruoso na década de 1990.[20]
Tudo o que a Rússia fez pelo Ocidente foi feito às suas próprias custas, oferecendo os maiores sacrifícios. O Ocidente rejeitou todos esses sacrifícios, desvalorizou a contribuição da Rússia para resolver a crise ocidental e decidiu se vingar da Rússia pela ajuda que desinteressadamente forneceu. Então a Rússia seguirá seu caminho, sem se preocupar com o destino do Ocidente, contando com outra parte de sua herança – a liderança no processo global de descolonização.[21]
Como parte desse processo, a Rússia tem um alto potencial de parceria e relações aliadas com países que foram oprimidos pelo Ocidente por séculos e que não vão vestir seu jugo novamente. Sem o sacrifício e a luta russos, esses países não teriam sido libertados. A desnazificação da Ucrânia é, ao mesmo tempo, a sua descolonização – o que a população da Ucrânia compreenderá quando começar a libertar-se da droga, da tentação e da dependência da chamada escolha europeia.[22]
[1] Timofey Sergeytsev (em russo: Тимофей Сергейцев), influente analista e assessor político russo de origem ucraniana, em 1998-2000 foi membro do Conselho de Administração do Grupo Interpipe; em 1998, esteve envolvido na campanha eleitoral parlamentar de Viktor Pinchuk na Ucrânia; em 1999, trabalhou para a campanha presidencial de Leonid Kuchma; em 2004, foi consultor de Viktor Yanukovych, líder ucraniano aliado de Putin, derrubado por revoltas populares no “inverno de fogo” de 2013-214. Sergyitsev apoia o partido pró-Putin “Plataforma Cívica”. De acordo com o Euractiv (site multinacional independete europeu de notícias), é “um dos principais ideólogos do fascismo russo moderno”.
[2] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/04/10/russia-ucrania-10-de-abril-dia-46.htm.
[3] “Custo da guerra na Ucrânia terá impacto global e será duradouro para Rússia e EU”. Disponível em: https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo/20220410/textview.
[4] “Finlândia se prepara para tomar histórica decisão de pedir adesão à Otan”. Disponível em: shorturl.at/eimAR.
[5] “Governo da Suécia abre debate sobre adesão à OTAN”. Disponível em: shorturl.at/nrsEL.
[6] “Embargo total a petróleo russo poderia parar guerra na Ucrânia, diz ex-assessor de Putin”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2022/04/10/petroleo-russia-embargo-guerra.htm.
[7] “Ucrânia Bandera” é uma referência usual nos discursos dos nacional-imperialistas russos, incluindo Putin. É sinônimo de “Ucrânia nazista”. Refere-se a Stepan Andriyovych Bandera (1909-1959), político nacionalista ucraniano. Por um lado, foi um dos líderes da luta contra os ocupantes soviéticos (autores de massacres como o Holodomor). Por outro, foi acusado de colaboracionismo com outra força de ocupação da Ucrânia, a Alemanha nazista.
[8] O autor subentende que na Crimeia e no Donbass, após as invasões russas de 2014, houve resistência ucraniana, o que levou à guerra civil no segundo, que se estende até hoje. Tal resistência, portanto, não será mais tolerada.
[9] Ou seja, esmagar toda resistência ucraniana às ações russas
[10] A data refere-se ao fim da URSS, que resultaria na independência da Ucrânia e de dezenas de outras repúblicas ex-soviéticas. Para os nacional-imperialistas russos, o fim da URSS, ou seja, de seu império, foi uma “catástrofe”, para usar um termo de Putin em um artigo famoso.
[11] A referência à “degradação” associada à Europa em particular e ao Ocidente em geral é outra característica do discurso nacional-imperialista russo. Não se trata, como gostam de pensar os “bem pensantes”, da “famosa” decadência geopolítica e econômica do Ocidente. No discurso russo, o Ocidente é, em si, sinônimo de decadência – em todos os sentidos, incluindo o moral. Trata-se de uma visão antidemocrática e reacionária, que tem o apoio explícito da Igreja Ortodoxa Russa, na pessoa do Patriarca de Moscou, Kiril, aliado figadal de Vladimir Putin.
[12] Mentira. A Ucrânia tem mais de 40 milhões de habitantes, e parte importante dessa população é falante de russo ou de russo e ucraniano.
[13] Pequena Rússia, ou Malarrosiya, era a designação da Ucrânia no tempo do Império Russo. Putin acusa Lenin de ter iniciado o processo “maligno” de “desrussificação” da Ucrânia, ao lhe conferir a condição de república (República Socialista Soviética da Ucrânia) dentro da URSS.
[14] O “instrumento” é a Ucrânia; e suas “fronteiras naturais” são, naturalmente, as do Império Russo, que o nacional-imperialismo putiniano pretende restaurar.
[15] E sua consequente “rerrussificação”.
[16] A “guerra no Donbass” – ou seja, seu movimento separatista – foi criação de Putin em 2014, no mesmo contexto da invasão russa da Crimeia.
[17] Cabe observar que nenhum órgão internacional, a começar da ONU, outorgou à Rússia tal papel. Aliás, considerando somente os crimes de Stalin, incluindo o Holodomor (genocídio perpetrado na Ucrânia), em um novo Nuremberg, o papel da Rússia seria necessariamente de réu.
[18] O autor se refere à Ucrânia democrática, mas parece involuntariamente estar se referindo à Rússia autocrática. Ou isso, ou se trata de puro cinismo.
[19] Neste projeto imperial há, portanto: uma Ucrânia antirrussa à oeste; uma Ucrânia talvez russófila ao centro; e (aqui subentendida) a parte leste da Ucrânia que será anexada à Rússia.
[20] A derrocada da URSS, sem que os EUA disparassem um tiro, causada pelos mesmos profundos problemas estruturais que levaram Gorbatchev a tentar inutilmente a perestroika e a glasnost, é aqui rápida e cinicamente atribuída ao ingrato Ocidente. Na visão do nacional-imperialismo russo, a Santa Mãe Russa é isso mesmo, santa.
[21] Aqui o nacional-imperialismo russo assume toda sua face de farsa anti-imperialismo americano, visando ganhar os corações e as mentes tanto da referida intelligentsia ocidental órfã da URSS quanto das lideranças autocráticas de todo mundo, da própria Europa (Viktor Orbán) à China à África à América Latina ao Oriente Médio. Não por acaso: além de tentar refazer geograficamente o Império Russo, o nacional-imperialismo russo pretende unir o agradável ao útil, resgatando a solidariedade desses mesmos autocratas à antiga URSS (por exemplo, na Síria – antes Assad pai, hoje Assad filho).
[22] O final do texto confessa explicitamente, como se ainda necessário, que nunca se tratou da OTAN, mas sim da União Europeia – ou seja, da saída da Ucrânia da órbita geopolítica e cultural da Rússia, anátema para o nacional-imperialismo russo.