Tiago Ferro e eu temos uma coincidência trágica: perdemos uma filha de modo trágico. Seu livro de estreia O pai da menina morta de 2018 ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura (autor estreante) e o Prêmios Jabuti de melhor romance ambos em 2019. Tiago é mestre em história social pela FFLCH-USP e agora doutorou-se com pesquisa sobre a obra do crítico literário Roberto Schwartz. Ele acaba de lançar seu segundo romance intitulado O seu terrível abraço, também pela Editora Todavia. Foi também um dos fundadores da plataforma de publicação independente de livros e-galáxia e da revista de ensaios Peixe-elétrico. Nessa entrevista ele discorre sobre seu novo livro, seus estudos, e a o estado atual do mundo.
Régis Bonvicino: Você estreou mais tarde do que se costuma estrear com o livro O pai da menina morta?
Tiago Ferro: Nunca havia imaginado escrever ficção. E ter escrito foi algo que aconteceu com muito menos cálculo do que se possa imaginar. Foi a morte da minha filha que de certa forma me arrastou para a escrita, até certo ponto sem que eu percebesse, ao menos nos primeiros momentos. Dos posts no Facebook logo após a morte dela até o romance de estreia, passando por um artigo na revista Piauí, escrever, e me perdoe o clichê, “me transportava para um lugar” onde eu conseguia lidar melhor com a dor brutal da perda. Enquanto escrevia e lia compulsivamente o que havia recém escrito, o trabalho do luto acontecia de uma forma um pouco menos insuportável. Alguma reconexão com a vida ia se estabelecendo lentamente. Um processo duríssimo. Mas para os leitores isso não importa, o que importa é o resultado, o livro. Pouco importa também a idade do autor.
RB: Vamos falar de seu segundo romance. Eu li na Folha de S. Paulo (14 de julho de 2023) que seu novo livro O seu terrível abraço “é corrosivo com você e com o mundo”. Por que seria? Literatura implica atirar em si próprio? O que significa isso? E particularmente me fale sobre seu novo livro.
TF: Se a crítica recente denunciou o falso universalismo dos padrões do homem branco impostos por toda parte, ao tratar da minha juventude, e também de algo que já pode ser pensado como minha geração, não era possível, nem desejável, insistir na camada ideológica dessa experiência. Somam-se a isso os bloqueios impostos pelo lugar de fala, e curiosamente surge uma ótima oportunidade, quando tudo parecia indicar um enorme interdito. Ao tratar de uma figura que, ao que tudo indica, e com razão, ninguém aguenta mais como protagonista da literatura (e da história), abre-se um caminho contraideológico: atirar em si próprio. É, portanto, de forma negativa que eu reconstruo esse personagem, que é também o narrador do livro, o que gera uma série de problemas, uma vez que é ele quem detém a palavra. Sobre a generalização dessa ideia, não cabe a mim estabelecer esse caminho como receita para a literatura como um todo, mas é uma opção para que uma arte produzida no interior de uma classe privilegiada ainda seja capaz de incomodar.
RB: A violência está na linguagem ou no conteúdo?
TF: Sempre na linguagem, ou melhor colocando, na forma. É claro que o ajuste entre a descoberta formal e o conteúdo precisa funcionar. Mas a literatura política, por exemplo, que apostou exclusivamente no conteúdo, rapidamente ficou datada, com seu maniqueísmo facilmente identificável com um mínimo de distanciamento histórico, ou até mesmo crítico. Me parece que é um tipo de literatura que tenta acompanhar o passo do mundo em vez de sondar o que não está ainda bem colocado por diferentes grupos e interesses. Agrada a leitores que querem ver suas próprias opiniões refletidas num livro, como se isso confirmasse suas escolhas e decisões. Em resumo, apesar de política e muitas vezes compreendida como combativa e engajada (e violenta), a literatura que aposta no conteúdo pode se revelar extremamente conformista, já que mimetiza lugares-comuns em disputa.
RB: Como você constrói suas formas?
TF: Durante a escrita e investigando da maneira mais sincera e despudorada possível minha própria vida. Nesse processo, fragmentação e idas e vindas temporais no texto são a mímese da escrita. Colocando de outra forma: entre relembrar e escrever não há qualquer distanciamento que permita tornar essa experiência trazida à tona pela memória uma narrativa com agenda política ou teleologia própria. A escrita acessa a memória ao mesmo tempo que é acionada pelas coisas do tempo presente. O que, acredito, pode criar um realismo no mínimo peculiar.
RB: Você acha que Machado de Assis está na moda? Há muitos romances que o mimetizam. Ele se tornou o precursor de tudo. Até em MPB ele é visto como profeta nesse campo, pelo conto “Um homem célebre”, por falar do músico erudito Pestana, que entretanto era fascinado pelas polcas.
TF: Se está na moda, é ótima notícia. Em meio ao massacre infantilizador da indústria cultural, seria muito bom que um artista do peso de Machado tivesse força em qualquer debate. Por outro lado, Machado, como você sabe, é de difícil enquadramento, e via de regra revela muito sobre o nosso momento histórico, nem sempre de forma lisonjeira. Um exemplo: até a crítica da norte-americana Helen Caldwell ao narrador nada confiável do Dom Casmurro, nossos melhores intérpretes do autor estavam bastante confortáveis compartilhando a visão de mundo de Bentinho, um sujeito violento, patriarcal e vingativo. Seja lá qual for a moda que hoje abraça Machado, ele não é um autor que se entrega sem antes promover muitas puxadas de tapetes. Vale sempre acompanhar.
RB: Você escreve uma tese sobre a obra de Roberto Schwarz. Por que razão?
TF: Entendo que a pergunta é qual à importância do Roberto Schwarz hoje. A resposta fácil seria afirmar que é um grande pensador do Brasil moderno, um agudo crítico do capitalismo tardio e um estudioso que alterou a crítica machadiana. Tudo isso, goste ou não da obra dele. Ou seja, trata-se já de vaca sagrada do pensamento nacional, e isso já justificaria a pesquisa e me credenciaria a participar do grupo que o admira. A resposta mais complexa tem que assumir que a crítica dialética anda em baixa por toda parte hoje em dia. Nesse sentido, estudar a força do ensaísmo do Roberto e a complexidade das suas descobertas me pareceu algo proveitoso para quem está interessado na crítica do capital por vias não ortodoxas, e tampouco está convencido das respostas oferecidas pela hegemônica crítica desconstrucionista e seus desdobramentos. Estudar o Roberto, digamos assim na baixa, conta muito sobre o tempo do mundo presente, e, espero, pode abrir novos caminhos para avançarmos.
RB: O identitarismo é um produto da sociologia norte-americana? Você vê intersecção com a ideia de luta de classes nele? O identitarismo é emancipador?
TF: São muitas perguntas, e todas muito difíceis. O Marx da luta de classes, da teleologia socialista e do proletário como vanguarda histórica foi ultrapassado pelas próprias mudanças no mundo. Mas o Marx do fetiche da mercadoria, esse ainda tem muito a dizer. E me parece, mas posso estar enganado, que ele mal consta tanto na crítica marxista (em situação periférica) como nos movimentos surgidos das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos. Sem essa crítica, você inevitavelmente confirma o statu quo, ao menos em seu enquadramento mais amplo: sociedades de mercado como um dado inevitável da realidade, infernalmente naturalizadas. E a luta política fica resumida à conquista de espaço no interior das sociedades de consumo, seja você marxista, desconstrucionista, decolonial etc. Concluindo, haveria, portanto, intersecção nesse aspecto negativo, nessa ausência, que atravessaria diferentes correntes críticas.
RB: Como vê a situação do mundo com várias guerras, entre elas Rússia/Ucrânia e agora Hamas/Israel?
TF: Muita gente melhor capacitada do que eu está tratando das peculiaridades dos dois conflitos com seu enorme e inaceitável desperdício de vidas humanas. De uma forma geral, acredito que há diferentes riscos de uma escalada nuclear com consequências apocalípticas. E com o capital no comando do processo histórico, sem oponentes à altura, o futuro, esboçado pelos conflitos que você cita, mas também pelo desastre ambiental irreversível, pela precarização da vida por toda parte e pela pobreza galopante no mundo, é desesperançoso. Posso estar enganado, mas talvez mais do que no período em que havia um horizonte mais claro de esperança no futuro, ou seja, antes de um certo pensador decretar o fim da história, hoje qualquer agressão que tente se justificar como necessária para a libertação, a segurança, o futuro, a justiça, ou algo do gênero, soa imediatamente duvidosa. O que não impede que esses conflitos sigam ocorrendo diante de todos nós. Caberia perguntar o que significa escrever literatura hoje. É algo que fica e atravessa tempos históricos variados com suas contingências, como já se acreditou, ou precisa ser requalificado, uma vez que o que está em jogo é a própria vida no planeta?
RB: Como percebe o mercado editorial brasileiro? Há leitores?
TF: É um mercado que se profissionalizou de trinta anos para cá. Traduções diretas dos idiomas originais, profissionalização de toda a cadeia do livro etc. Mais recentemente, e acredito que devido aos programas de inclusão social e reparações históricas realizados pelo primeiro lulismo, proporcionou uma ampliação nas vozes representadas nas publicações, inclusive com uma série de novas e aguerridas editoras, muitas vezes trabalhando em circuito próprio bastante vibrante. Itamar Vieira Jr. vendeu, até onde eu sei, aproximadamente 1 milhão de livros. Então sim, há leitores, e para muito além da autoajuda ou dos best-sellers importados.
RB: A MPB acabou, o rock acabou? Só existe agora mundo pop?
TF: É claro que há bandas de rock com muita qualidade ainda hoje. Mas tenho a impressão de que o rock como expressão de um momento histórico e dos anseios de uma faixa da população que se recusava a ter sua vida enquadrada pela disciplina industrial e produtiva do mercado, essa experiência está esgotada. Se é possível cravar uma data para o fim desse processo é o dia 8 de abril de 1994, quando Kurt Cobain do Nirvana foi encontrado morto em sua casa. A banda, após o sucesso mundial do álbum Nevermind, lança In Utero, um disco com letras pessimistas e sombrias, com frases como: “Gostaria de comer seu câncer quando você morrer” ou “Lance seu cordão umbilical para que eu possa escalar de volta”. É possível pensar que a negatividade do Nirvana reflete e problematiza o esgotamento da ideia de juventude como força transformadora da sociedade bem como da contracultura. Isso num momento em que o país de onde veio a banda vendia ao mundo o caminho único rumo a uma fase de paz duradoura no interior da lógica das sociedades de mercado. De lá para cá tudo só iria piorar. O que nos remete às questões anteriores: como elevar a crítica ao ponto de interferir no rumo das coisas? É possível interromper o processo de degradação da vida por toda parte? Por que não reagimos à pura exploração capitalista que se dá às claras, sem qualquer justificativa ideológica que não a sua suposta inevitabilidade? A MPB fica para outra conversa, se não se importar.