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O TOUREIRO MANOLETE

A tourada de Manolete é de todo refratária a qualquer lirismo que não seja o de sua verdade silenciosa.

 

Manolete nasceu em 1917 e é por isso que sua juventude, ou seja, sua curta vida (morreu em 1947) transcorreu durante uma guerra (a Guerra Civil) e um pós-guerra espanhóis. Foi nesse pós-guerra de Espanha que ele alcançou fama e glória como nenhum outro artista. Por isso sobre ele, sobre um toureiro, recaiu por muito tempo a questão da possibilidade da arte – diga-se aqui, a tourada –, depois de uma guerra interna devastadora. Uma pergunta que, obviamente, se formula em um sentido moral porque, como é sabido, houve tourada no decorrer da guerra e no pós-guerra. E houve grandes mestres a partir de 1936.

Porém, a questão é se a tourada, que pressupõe um povo alegre e livre, já havia perdido seu significado, quando a arena nada mais era do que a própria nação; quer dizer, a plaza de toros deixara de ser um fórum irredento e insubordinado ou não? Diferente do poeta ou do pintor, o toureiro, por mais que padeça de solidão, não pode se dizer (existir) sem a arena, ou protelar seu trabalho, obrigado que está ao diálogo com o imediatismo de seu triunfo.  A traição, a imoralidade que alguns quiseram ver em Manolete foi a de se dedicar artisticamente à nação, entenda-se, aos nacionalistas, a de emprestar seu mito à mitologia do regime franquista.  

Esse esboço de Manolete como artista cúmplice ou mito fascista oculta não somente o olhar míope e injusto sobre aquilo que um jovem como ele tinha de enfrentar na Espanha, mas também uma profunda ignorância sobre o que ele foi, e, sobretudo, sobre aquilo que sua forma artística significou. Sua esclarecedora biografia pelo historiador cordobês González Viñas nos permitiu ver que Manolete foi testemunha de uma resistência solitária. Uma resistência que não tem nada a ver com a ideologia ou a militância política, mas com algo mais profundo e provavelmente corajoso.  

Senhor até o fim de seu silêncio, Manolete, na arte e na vida, sempre tomou a decisão mais difícil. Amou quem não devia, somente sorriu ao proibido e nunca aceitou a moralidade bélica do amigo/inimigo, como bem demonstra seu périplo mexicano e sua aberta proximidade com os espanhóis republicanos, a alguns dos quais, como Indalecio Prieto, agraciou também com sua amizade.

Mas, acima de tudo, a resistência de Manolete tinha muito a ver com sua obstinada opção pela inexpressividade, lá onde reinava um desdém orgulhoso de obediência. Inexpressividade na vida que não era nada além do prolongamento da inexpressividade de sua arte. Acontece que Manolete não herdou a graça ágil do toureiro Joselito, nem o gênio vanguardista do toureiro Belmonte. A situação de Manolete foi muito mais decisiva e difícil, e em relação a ela, soube encontrar uma maneira de se dizer anticúmplice, antifolclórico, contra a cintilação comemorativa e da falsa alegria da pirotecnia nacionalista. A opção de Manolete foi a de ser silencioso, traço puro, presença vertical, e, nesse não-dizer, nessa apatia triunfal, dizer tudo. Uma inação, como via Ramón Gaya, cheia de espírito, de presença, de personalidade; inação também transbordante e, de modo enigmático, popular, mas sobretudo leal a ele e à tourada.

Os gestos de Manolete depois de uma guerra foram gestos quase impossíveis, secos, autistas, antiflamenquistas, modos herdados de ninguém e, por sua vez, estéreis. Manolete não é José nem João; quer dizer, não é a fonte, mas um grande acidente da arte. Inesgotável referência moral, quase estéril, por impossível que pareça, referência artística. Tourear como Manolete – como bem o pode comprovar José Tomás antes de seu primeiro afastamento – acaba por silenciar sua inata marca criativa.

Ser como Manolete, estar como ele, engrandece, e não é por acaso, portanto, que o legado puramente artístico de Manolete não tenha sido outro que o de seu posicionamento frente ao touro, quer dizer, o de seu posicionamento moral na arena.

Então veio sua morte e todos os exuberantes elogios que se seguiram. Se a tourada suporta mal a poesia, já que é redundante fazer poesia sobre o que em si mesmo é já poético, a tourada de Manolete é de todo refratária a qualquer lirismo que não seja a de sua verdade silenciosa. Mas Manolete morreu em má hora, sendo inundado por uma enxurrada de rimas nacionalistas, e reinundado mais tarde pela mesquinhez de sua caricatura como o primus inter pares dos cruzados. Porém, há mais de cem anos de seu nascimento, segue intacta sua melancolia insubmissa, e sua profunda e obstinada inexpressividade. Bem se pode comemorar, portanto, que em tempos difíceis, um toureiro conseguiu erigir-se em perfeito paladino da arte como rebelião: que sua obra seja, portanto, a negação daqueles princípios que governam o povo.

 

Víctor Vázquez é professor de Direito Constitucional da Universidade de Sevilha.

 

 

ALGUNS TOUREIROS

                                                       João Cabral de Melo Neto

 

Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

(Duas águaspoemas reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, pp. 45-46)