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Por uma política literária para a cidade de São Paulo

1.

São Paulo não vai bem. Esta é uma constatação empírica, quase unânime e generalizada. Generalizada quanto aos mais variados aspectos da cidade: ela se tornou, com o passar dos anos, cada vez mais inóspita, mais fria, mais cinza, mais poluída, mais indiferente e menos interessante. Ao que era crônico e estrutural, como a feia falta de parques, árvores e paisagismo urbano, somou-se o crescimento metastático, lento e irresistível, do que é crônico e desfuncional, como o trânsito desumano, a proliferacão descontrolada de motos de serviço, as calçadas esburacadas, os ônibus lotados e poucos, o metrô pouco e lotado. A isso se acrescenta o sumiço dos cinemas, quase todos escrustados em shoppings, e a prolifer ação de shoppings, espaços desumanizados em que as pessoas, reduzidas à função de consumidores, desfilam indefinidamente ao longo de vitrines intermináveis, em passeios frios, sob luz fria, em que a intereção humana se limita àquela com os vendedores. Não há convívio, não há vida inteligente, não há nada, além da hipertrofia hiperbólica do egoísta e prosaico ato de compra.

São Paulo, há muito, não é mais uma cidade, mas um emaranhado de vias que permitem, quando permitem, o deslocamento de um ponto a outro. O que fica no meio, a própria cidade, não é um destino, não é um lugar, não é virtualmente nada. Mesmo porque, entre um ponto e outro, não se sai de dentro do carro. Sair para quê? Há tanta vida, tanto convívio, em suas ruas e calçadas, quanto nos corredores de um shopping.

Suas noites se tornaram vazias. De um lado, há leis em excesso regulamentando a vida noturna, lei do silêncio, lei do fumo, lei seca, lei contra os prostíbulos, de outro, a completa falta da Lei, da polícia, da segurança pública, que torna as ruas mal iluminadas ainda mais escuras. São Paulo é uma cidade vazia, tomada por multidões atomizadas.

Seus teatros são poucos, e sua produção teatral, ou precária, ou espetaculosa, com importações da Broadway para periféricos da globalizacão, ou produções de atores globais para suburbanos da midiatização.

Há “eventos” tão grandes quanto grandemente eventuais, bienais, exposições de clássicos da pintura europeia, cujas filas falam do espírito de manada de seus habitantes, que passam a vida numa cidade de pouca arte e muitas filas, mais do que da presença de preocupações e fruires estéticos nessas vidas.

São Paulo é tão grande quanto grandemente apequenada. Na verdade, há de ser a mais apequenada das grandes cidades. Como compará-la a Nova York, San Francisco, Chicago, Paris, Londres, Madrid, Roma, Milão, Tóquio, Hong Kong, Moscou, São Petersburgo, ou mesmo a vizinha Buenos Aires, com seus ubíquos parques aprazíveis, suas incontáveis livrarias, seus teatros, seus cafés, sua vívida vida noturna e seu extenso metrô?

As livrarias de São Paulo, cuja soma total é menor do que a de algumas ruas de Buenos Aires, também estão quase todas dentro dos shoppings. Encerradas neles, fecham com eles, às 10 da noite. Não há vida inteligente na pouca vida que há na moribunda noite paulistana. Há, claro, “casas noturnas”, como as que se concentram em certa região do bairro “nobre” do Itaim Bibi. Mas são para muito poucos, pois muito caras, além de restritas ao exibicionismo consumista-hedonista da juventude tardia e trintona das velhas e novas classes médias, com seus corpos cheios de hormônios e grifes e seus cérebros vazios de ideias preenchidos por sensações acústicas (vulgo música de DJs), sensações luminosas (lasers) e sensaçoes químicas (álcool, “energi zantes”, ecstasy).

Numa grande cidade cujo mercado cultural, por inúmeras razões, é grandemente apequenado, o espaço para a atuação do Estado, via governos estadual (pois se trata de sua capital) e municipal é vasto. Mas, surpresa, não é o que acontece.

2.

Assim como não tem um grande mercado cultural, marca comum das grandes cidades do mundo contemporâneo, de Pequim a Estocolmo, São Paulo também não tem uma política cultural. Incluindo a literatura, de que foi, outrora, um importantíssimo centro produtor e irradiador, da Semana de 22 à poesia concreta e outras vanguardas dos anos 1950-60. São Paulo é cada vez menor em sua paisagem cultural.

Não faltam equipamentos culturais estatais na cidade, nem faltam equipamentos estatais propriamente literários, como o Museu da Língua Portuguesa, a Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos, o Centro Cultural São Paulo. Mas em termos relativos, ou seja, relativos à sua população total bem como à sua distribuição, São Paulo é praticamente destituída de equipamentos culturais. Basta comparar com o número, o tamanho médio e a distribuição dos shoppings. São Paulo é uma cidade onde se compra muito e se produz pouco.

Faltam, portanto, equipamentos estatais culturais e literários. Mas falta, ainda mais, uma política cultural, incluindo uma política literária. Os poucos equipamentos literários são tratados como corpos extanques, quase como corpos estranhos, entregues a indivíduos de méritos relativos em sua área de atuação, mas detentores das relações certas, ou de certas relações, que uma vez instalados, agem como os “cartolas” das entidades esportivas, ou como os ocupantes dos cargos públicos, perpetuando-se em suas “cadeiras” como pequenos senhores de pequenos feudos. E, como funcionários públicos padrão (no pior sentido), mantêm uma atividade morna, mediana, medíocre, pouca e apequenada, satisfazendo pequenos grupos de frequentadores mas deixando praticamente à míngua a grande cidade em torno. Não há absolutamente nada, em termos de política literária, minimamente à altura da grande cidade. Não há política literária.

Mas deveria haver. Porque o mercado cultural da cidade é medíocre. Exuberante, apenas o mercado de consumo, com seus shoppings ubíquos e suas ubíquas “ruas de compras”, que cobrem democraticamente todo o espectro social e toda a geografia urbana, da chique e “de grife” Oscar Freire à popular e populosa 25 de Março. Tampouco faltam farmácias, pizzarias, padarias e botequins. Mas faltam equipamentos culturais, incluindo literários, e políticas idem.

Isto dito e demonstrado, resta discutir como deveria ser uma política cultural literária para São Paulo.

3.

Em primeiro lugar, o mais óbvio: a quantidade. O número de equipamentos culturais públicos deveria ser multiplicado várias vezes, para atingir uma proporção mínima em relação aos milhões de habitantes da cidade. Incluindo tudo, de museus a centros culturais a bibliotecas etc.

Em segundo lugar, o ainda óbvio: a distribuição. Se São Paulo é uma cidade apequenada e relativamente esvaziada de vida inteligente, inclusive em comparação com sua própria história recente, suas vastas e enormemente inóspitas periferias constituem verdadeiros desertos. Antes que populistas filoperiféricos me acusem de preconceito de classe, explicito que não estou afirmando serem os habitantes das periferias faltos de inteligência, mas completamente faltos de condições de exercê-la socialmente. Eles trabalham muito e muito longe, portanto, têm pouco tempo, dinheiro e meios para a criação, a produção e a difusão cultural. O pouco que conseguem é relativamente muito. Mas tudo o que conseguem é irremediavelmente pouco.

Em terceiro lugar, o menos óbvio: o mérito, a qualidade artística. E aqui uma das causas da pequenez artístico-cultural da cidade é o populismo, que contaminou em graus variados, mas invariavelmente, todos os partidos. Porque o populismo é a marca maior de uma cidadania e de uma vida política atrasadas e apequenadas. E uma de suas principais características é a condenação ideológica e burra das “elites”. Mas uma elite é o que seu nome diz, um grupo dos melhores. Os melhores atiradores de um exército formam sua elite de atiradores. Os melhores médicos de uma cidade, sua elite médica. Os melhores cozinheiros são a elite de sua culinária. Os melhores cientistas, a elite de sua ciência. Mas no Brasil contemporâneo, as “elites”, de forma integral e generalizada, foram vilipendiadas e desprezadas pelo lulo-petismo, que não passa de um populismo. Sem excluir o fato de que ao menos uma elite foi adulada pelo partido, a financeira, isso acarreta um problema gravíssimo: se a elite representa os melhores, mas se os melhores são desprezados, como é possível obter os melhores e maiores resultados?

Grandes equipamentos culturais, como o Lincoln Center em Washington, são em outros países habitualmente entregues à direção de grandes nomes, no caso, o músico Winton Marsalis. É a mesma lógica das grandes orquestras sinfônicas: elas disputam os nomes da elite mundial da regência musical a fim de dirigi-las. Faz sentido: como uma grande orquestra poderia ser grande se dirigida por um maestro medíocre? Como pode ser grande, ou seja, grandemente produtivo, um equipamento cultural entregue “vitaliciamente” a pessoas sem grandeza?

4.

Diz um velho ditado árabe que quem não quer fazer alguma coisa, arranja uma desculpa; quem quer, arranja um meio. Os partidos e políticos que vêm governando a cidade e o estado de São Paulo nas últimas décadas, e que agora buscam alongar-se no poder pela eleição para prefeito, simplesmente fracassaram em fazer da cidade de São Paulo uma cidade à altura de sua grandeza (altura, por aqui, apenas a dos edifícios). O Estado não é onipotente nem deve responder por tudo. Mas deve necessariamente responder pela parte que lhe cabe. Neste caso, trata-se de uma tríade, em que um terço cabe ao mercado, um terço à iniciativa e às iniciativas da própria cidadania, e um terço ao Estado. Em São Paulo como no Brasil, os três vêm fracassando historicamente da maneira mais completa. Daí o apequenamento do país em todos os aspectos, marcado pela distância quilométrica entre seu grande PIB e seu pequeno IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).

Mas, para cunhar uma frase, um erro não justifica outro. Se nossa cidadania é anêmica e nosso empresariado parasita (seja do próprio Estado seja de inovações externas), além de culturalmente indiferente, mais uma razão para o Estado agir como um “déspota esclarecido”. Historicamente, não foram os países então avançados que deles precisaram, mas os atrasados. Se a Rússia fosse então um país avançado, Pedro, o Grande, o grande modernizador do país, não teria necessidade de criar uma nova capital (São Petersburgo), universidades, bibliotecas, cursos, teatros etc., ou seja, toda uma elite artística e cultural, além dos equipamentos que a formariam e dos quais ela se serviria. Mal comparando, Juscelino foi um “déspota esclarecido” tropical e “bossa-novista”, que tentou, de forma mais branda do que Vargas recém-tentara, outra vez tirar o país de sua modorra periférica. Não conseguiram, ou essa modorra não se perpetuaria até hoje, apesar do crescimento unilateral do PIB. Mas tentaram.

Os partidos e políticos que governaram o estado e a cidade de São Paulo nas últimas décadas, o que mais tentaram foi o caminho eleitoreiramente proveitoso do populismo cultural, apesar das variações de grau, somado à pura e simples indiferença filistina pela cultura. Ficamos no pior dos mundos: nem equipamentos culturais na quantidade minimamente necessária, nem agentes culturais com a qualidade e a capacidade de trabalho minimamente suficientes.

O próximo prefeito de São Paulo não mudará um mínimo que seja esse estado de coisas. Serra e seu grupo já governaram o estado e a cidade (o atual prefeito tem uma das maiores rejeições da história recente, em parte, por haver fracassado notoriamente em inúmeros aspectos, incluindo a cultura). Quanto ao PT, é o próprio pai do populismo antimeritocrático em sua versão nativa contemporânea. Os equipamentos culturais estatais da cidade, assim como as pseudo-políticas culturais em geral e literárias em particular, devem, portanto, continuar entregues a essa mistura amorfa de indiferença, satisfação e mediocridade, pontuada aqui e ali, em ocasiões especiais ou especialmente midiáticas, por discursos tão cheios de intenções quanto vazios de result ados. Pobre cidade rica.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).