Passados cem anos da estreia do Pierrô Lunar Op. 21, de Arnold Schoenberg, ainda nos parece evidente a possibilidade de se afirmar que esta obra é um ápice na história da música. Devido à sua força interna, é, até hoje, uma obra extremamente atual e, de certa forma, ainda incompreendida. É um ponto culminante da história da música, pois trata de consolidar o longo caminho de liberação da dissonância, que data desde os primórdios da polifonia renascentista e se estende até a primeira metade do século XX. A obra permanece atual, pois seu antinaturalismo, sua expressão obscura e seu alto teor de inovação continuam a estimular fortuna crítica com forte conteúdo de verdade, fator imprescindível em nossa sociedade marcada pelas exigências de clareza, realismo e ainda apegada aos padrões de escuta do sistema tonal. Desta forma, Schoenberg permanece vivo.
Modernidade musical
Composto e apresentado no ano de 1912, em Berlim, esse ciclo de canções surge numa onda vanguardista que presenciou outras grandes obras dos maestros da modernidade musical: no mesmo ano Debussy compõe Jogos (Jeuxs – Poeme Dance)e no ano seguinte é apresentada a Sagração da Primavera de Stravinsky. Esses três universos da poética musical foram responsáveis por uma revolução artística: a superação do sistema tonal.
Debussy liberou a arte musical das convenções de expectativa e resolução através de sua desfuncionalização da harmonia. Stravinsky, a seu turno, expunha o sistema tonal em ruínas usando materiais desgastados e primitivos através de colagens, justaposições e polirritmias; por fim Arnold Schoenberg, a quem considero o mais importante compositor do período, por inovar profundamente o material musical, liberar a expressividade das dissonâncias e adentrar num novo mundo do pensamento musical. A superação da tonalidade no conjunto da obra desses compositores – e especificamente na de Schoenberg – permanece até hoje, cem anos depois, ainda incompreendida pelo todo social e, dessa forma, isolada em redutos de especialistas e apreciadores de raridades das vanguardas modernas.
Nova forma de cantar
O Pierrô foi elaborado a partir de textos selecionados de um ciclo de cinquenta poemas de Albert Giraud intitulados Pierrot Lunaire. A versão de Schoenberg é, por sua vez, baseada na tradução de Otto Erich Hartleben, da qual o compositor recolheu e reorganizou três ciclos de sete poemas. Os poemas de Giraud, marcados pelo simbolismo dominante na literatura da época, foram elaborados na forma clássica do rondeau com a repetição dos versos iniciais no fim da segunda estrofe e no último verso da terceira e final estrofe. A recuperação da temática da Commedia dell’Arte, gênero do teatro italiano composto por bufonarias circenses e associado a questões políticas e morais da sociedade, vinha com o propósito de fazer frente à estética naturalista, portando a máscara do real e expondo-o como simples mascarada. Na leitura dos poemas é impossível não se lembrar de Baudelaire em “O vinho”, das famosas Flores do Mal, com a mistura que há neles da esfera fantástica de devaneios inebriantes de amor, violência e melancolia.
No âmbito da elaboração musical, o tratamento de Schӧenberg é de uma inovação que raras vezes se viu na história da arte. O primeiro fator é a transformação do estilo operístico: em contraposição tanto aos arroubos realistas e monumentais da ópera de Wagner e Verdi, quanto ao estilo vulgar “degustável” das operetas de cabaret, Schoenberg elabora uma música que funciona como anticanção. Faz uso de um pequeno grupo de câmara de sete integrantes (flauta, clarinete, violino, cello e piano, cantora e regente) que cantam o melodrama do Pierrô. Este que se expõe às avessas e, em sua lógica de fratura, se apresenta, ironicamente, como algo inautêntico.
Esse elemento se torna explícito quando lidamos com essa nova forma de cantar criada por Schoenberg: o Sprachegesang, canto-falar, falar-cantando. No prefácio para o Pierrô, Schoenberg faz resumidamente os seguintes apontamentos para o intérprete: trata-se de uma voz-falada que, conforme a variação das alturas notadas na partitura, pode virar uma melodia-falada, mas jamais uma fala-cantada ao modo realista dos recitativos; nas palavras de Schoenberg, “O que se pretende não é, de modo algum, uma fala realístico-natural”.
Desta forma, o compositor elabora um enigma para o intérprete, o que cria um espaço de tensão entre a obra e sua execução. Através destas indicações, Schoenberg abriu o caminho para toda uma tradição crítica de reflexão sobre como interpretar o Sprechgesang, modelo que foi incorporado por diversas obras subsequentes ao Pierrô. O canto-falado assim rompia com os ares realistas da ópera e exigia do intérprete uma encenação estilizada, própria do teatro bufo e da recitação.
O segundo fator é a inovação da tonalidade expandida, ou politonalidade, ou atonalidade, sendo este último o termo que ficou mais conhecido. Trata-se do movimento de emancipação da dissonância que Schӧenberg levara ao extremo e só ganharia sistematicidade com a invenção do método de compor com doze sons (dodecafonia). Para isso, Schoenberg opera em algumas peças uma espécie de inversão das tradicionais regras de contraponto: transforma as dissonâncias em notas de tempo forte e tolera consonâncias apenas como notas de passagem.
Expressão como novidade
A novidade no trato do material entra em tensão com formas clássicas de desenvolvimento musical como o canon, a fuga, e a passacaglia. Estruturada por estas formas autônomas, a relação da música com o texto oscila entre a independência do acompanhamento musical e a descritividade e inventividade nada vulgares de alguns trechos da obra, nos quais é possível imaginar uma pintura musical. Quanto à especificidade do texto e sua importância para a compreensão da música, vale lembrar que o próprio Schӧenberg recomendava a tradução do texto para a língua local da execução (para o português, temos a bela tradução de Augusto de Campos). O texto, nesse caso, mais uma vez – como outrora na música antiga – ajudava a organizar o todo musical, tendo em vista a perda da unidade estrutural formal que o rompimento com a tonalidade havia gerado e cujo sintoma se manifestava na tendência miniaturista das obras de Schoenberg deste período, classificado usualmente como expressionista.
A Expressão musical apresenta-se pela primeira vez na história da música como objeto central da poética musical. Trata-se de uma concepção realmente próxima daquilo que Schoenberg afirmara em seu tratado de Harmonia: “a música não é apenas a imitação da natureza externa, mas também da natureza interna”. E sinal desta intenção é a maneira como a crítica da época reagiu à sua música ao aproximá-la dos “nus cerebrais” de Kandinsky, como se o compositor se liberasse da convenção histórica e permitisse à inventividade e ao impulso expressivo do inconsciente se manifestarem de maneira informal na forma.
Isso é o que ainda podemos ouvir no Pierrô e em outras obras do período, em que em certos momentos a expressão musical se distancia do estilo representativo e mergulha no fluxo de ideias e motivos musicais que conjugam invenção e sentimento para a forma. O filósofo e crítico Theodor Adorno fala de uma música cuja imediatez já não adota a metáfora como referência, mas, sim, devora as imagens e permite que o interior mesmo se expresse. A expressão musical aqui se aproxima do ideal poético do “grito”, da manifestação imediata do sentimento. A conjugação deste ideal de expressão com a inversão dos procedimentos tradicionais da música estabeleceu os contornos deste estilo schӧenberguiano que poderia ser intitulado como composição feita de extremos, uma composição marcada pelo signo do “choque”.
Procedimentos construtivos
No entanto, o Pierrô de Schoenberg é uma espécie de pêndulo que oscila entre os polos expressivo e construtivo. Por um lado, vemos o expressionismo musical elaborado nos poemas “Madonna”, “As Cruzes” e “Decapitação”; por outro, vemos o construtivismo formal em “Noite”, “Paródia” e “Borrão de Lua”. Neste último o recurso construtivo utilizado por Schoenberg é um prenúncio de nossa situação musical atual e uma memória dos tempos da música medieval: trata-se de uma sobreposição de quatro procedimentos musicais distintos, próxima da maneira como a tradição do moteto medieval bricolava cânones e melodias de diversas canções num mesmo construto polifônico.
No “Borrão”a primeira camada é formada por uma fuga a três vozes, elaborada de maneira bem estrita no piano. A segunda é um cânone em caranguejo (termina como começa) na viola e no violino. A terceira camada é um cânone simples entre a flauta e o clarinete. E a quarta camada é a voz no meio de toda esta textura complexa. Esta sobreposição de formas, cada uma com suas consequências temporais e construtivas, nos parece um prenúncio da multiplicidade de recursos e materiais com que a música moderna teria de lidar dali em diante e que diz muito sobre a arte em nosso tempo. É representativo, diante de tamanho formalismo, que na sequência de sua fase expressionista o compositor tenha desenvolvido uma fase mais construtivista por meio da técnica dodecafônica. Esta oscilação entre construção e expressão é marca dialética do percurso composicional de Schoenberg.
Se, no âmbito da reflexão puramente musical, é possível constatar uma oscilação entre extremos, no âmbito geral da obra, os extremos não deixam de se manifestar de maneira intensa. O bêbado de lua que abre o primeiro ciclo de sete poemas nos verte olho adentro de um inebriante espaço de horizonte mudo. A sedução da Colombina e as flores-luz da lua erotizam, assim, a paixão de um Pierrô pleno em alvura luminosa. Mas, pálido, o Pierrô apaixonado flutua com sua cara de cera como um flâneur decadente, um dândi vestido de oriental que aprecia os ramos do branco tecido que a lua verte como água lívida que a lavadeira banha sonolentamente. Depois destas quatro figuras de suspensão e placidez, a Valse de Chopin vem então borrar a tela com o sangue a gotejar nos lábios de um doente.
A melancolia que se espraia luminosa, Mãe do desespero, desenha os cadáveres verdes enquanto o mundo se diverte. A lua está doente, moritura lua, que dos céus desaparece. O segundo ciclo então nos mergulha numa profusão de ardilosas profanações. A noite cinza repleta de negras borboletas pede ao Pierrô que recupere o riso, lua que passou – passou. E ele elabora seu roubo, sob o olhar de mil olhos que miram o sono dos mortos. O sangue continua a gotejar e agora vem da hóstia – vê-se a forca – e o terror faz o pierrô tropeçar. Quando deitado ele jaz em seu divã mental, sente em seu pescoço o frio da lua, um sabre oriental que vem para decapitá-lo. As cruzes benzem o palhaço morto e ficam as feridas por onde sangram os poetas; cruzes santas são os versos.
O terceiro ciclo de sete poemas se abre com a nostalgia, a memória de seus idos da Itália e suas velhas pantomimas, que trazem de volta o nosso bufo herói vencido. Grotescamente Pierrô fuma um fumo turco na cabeça de Cassandro, em busca de paraísos artificiais para apagar a memória de suas atrocidades. Sonha com Bérgamo, sua terra natal; para lá aponta a barca de seu regresso cujo leme é a lua. Mil grotescas dissonâncias faz Pierrô numa viola, espalhando o borrão de lua por toda a atmosfera. O velho olor lhe traz ideias doidas a dançar:
toda a tristeza se desfaz
Pela janela iluminada
Eu vejo a vida que me vê
Sonhar além a imensidade…
Ó velho olor – dos dias vãos!
O caminho do Pierrô então oscila como lua entre a placidez e a violência, o riso e o desespero, o trágico e o cômico. O palhaço mergulhado na escuridão do imenso universo apresenta, assim, uma subjetividade solitária que se reabsorve a si mesma (“eu vejo a vida que me vê”), na embriaguez e na desolação. Depois do erotismo e da violência, a terceira parte do Pierrô esboça uma reconciliação, espaço onde é possível sonhar além da imensidade, mesmo sabendo dos dias vãos. É a imagem de um náufrago das estrelas, que em devaneio nos apresenta uma esperança desesperada. Cem anos de Pierrô e, mesmo com brilho ocultado pela fumaça, a lua ainda produz em nós a melancolia e a euforia. Nossa sociedade ainda não encontrou sua reconciliação. A crítica ao naturalismo ainda não se realizou. Seguimos oscilando como as marés entre a capitulação de uma tragédia e o riso que oferece alguma utopia para a humanidade. Schoenberg ainda vive.
Referências:
- Artigo de George Perle sobre a obra
- BOULEZ, Pierre. Trajetórias: Ravel, Stravinski, Schoenberg. Notas sobre o Sprechgesang. In: Apontamentos de Aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995.
- Boulez interpretando o Pierrot
- Versão brasileira da obra com Bologna na direção
- Versão Alternativa sob Direção de Peter Rundel
- CAMPOS, Augusto de. Música de Invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998.