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Protesto contra a crueldade da escravidão

Gama toma como mote da carta uma notícia recém-publicada no jornal. A notícia que vinha de Itu, interior paulista, o indigna de tal maneira que o convalescente Luiz Gama se levanta e pega da pena para escrever um dos  mais veementes protestos contra a crueldade da escravidão no Brasil. Quatro escravizados assassinaram o filho de um influente fazendeiro escravocrata. Após o cometimento do crime, os escravizados não fugiram, antes buscaram proteção das autoridades policiais. Revoltados, “trezentos cidadãos” vão em marcha até o cárcere onde os “quatro Espártacos” estavam presos e, armados “à faca, a pau, à enxada, a machado”, invadem a repartição policial e “matam valentemente a quatro homens; menos ainda, a quatro negros; ou, ainda menos, a quatro escravos manietados em uma prisão!” Dessa “hecatombe” Gama tira uma conclusão filosófica que sintetizaria sua visão de mundo e de direito: “o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão”. A reflexão se opunha diametralmente à de um professor da Faculdade de Direito de São Paulo, Leite Moraes, que havia se posicionado e justificado o linchamento de trezentos contra quatro. Gama não pararia ali. A revolta com o povo indigno da “heroica, a fidelíssima, a jesuítica cidade de Itu” — vejam só o misto de fúria e sarcasmo que Gama imprimiu na reflexão — estendia-se para outras praças da província de São Paulo. É o caso do “auto de fé agrário” ocorrido em Limeira, também interior paulista, onde um “rico e distinto fazendeiro” e certamente branco matou um homem negro com os mais violentos requintes de crueldade. “O escravo foi amarrado, foi despido, foi conduzido ao seio do cafezal”, contava Gama, com a loquacidade de uma testemunha ocular. “Fizeram-no deitar: e cortaram-no a chicote, por todas as partes do corpo: o negro transformou-se em Lázaro; o que era preto se tornou vermelho. Envolveram-no em trapos… Irrigaram-no a querosene: deitaram-lhe fogo…” Gama, adoentado em sua casa, deve ter chorado, porque aos outros seguramente fez. Bruno Rodrigues de Lima

Meu caro Menezes,2
Estou em nossa pitoresca choupana do Brás,3 sob as ramas verdejantes de frondosas figueiras, vergadas ao peso de vistosos frutos, cercado de flores olorosas, no mesmo lugar onde, no
5 começo deste ano, como árabes felizes, passamos horas festivas, entre sorrisos inocentes, para desculpar ou esquecer humanas impurezas.
Daqui, a despeito das melhoras que experimento, ainda pouco saio às tardes, para não contrariar as prescrições do meu escrupu-
10  loso médico e excelente amigo, dr. Jayme Serva.4
Descanso dos labores e das elucubrações da manhã, e preparo o meu espírito para as lutas do dia seguinte. Este mundo é uma mitologia perpétua; o homem é o eterno Sísifo.5

  1. José Ferreira de Menezes (1841–1881), natural do Rio de Janeiro, possivel- mente de Angra dos Reis, foi jornalista, dramaturgo e advogado. Amigo pessoal de Gama, estando ao seu lado em numerosas batalhas, Ferreira de Menezes foi um dos raríssimos homens negros a se graduar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em todo o século xix. Além disso, dirigiu, no Rio de Janeiro, o jornal Gazeta da Tarde, de tendência abolicionista, no qual Gama foi um dos colaboradores, notadamente na famosa carta que dirigiu ao seu amigo de longa
  2. Gama escreve do seu endereço até o fim vida, a “casa de campo” do Brás, muito provavelmente o número 25 da Rua do Brás (hoje denominada Rangel Pestana), nas cercanias da antiga Estação Norte (atualmente estação Pedro ii da linha vermelha do metrô paulistano).
  3. Jayme Soares Serva (1843–1901), baiano de Salvador, onde se formou em medicina em Foi voluntário da pátria durante os combates na Guerra do Paraguai e de lá voltou com a patente de major médico. Fez carreira médica em São Paulo.
  4. Na mitologia grega, Sísifo era o mais astucioso dos mortais e, por abusar da sua esperteza e malícia, foi condenado por toda a eternidade a empurrar montanha acima uma enorme pedra redonda de mármore e, quando chegasse ao cume, soltá-la montanha abaixo, tornando a carregá-la acima e empurrá-la abaixo num movimento incessante e contínuo. Numa bonita passagem, Gama reflete e exclama sobre a natureza humana e seus dias de lutas na imprensa e no

Acabo de ler, na Gazeta do Povo, o martirológio6 sublime dos quatro Espártacos,7 que mataram o infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Valle.
É uma imitação de maior vulto da tremenda hecatombe que aqui presenciou a heroica, a fidelíssima, a jesuítica cidade de Itu,                                                                               5 e que foi justificada pela eloquente palavra do exmo. sr. dr. Leite Moraes,8 deputado provincial e professor considerado da nossa faculdade jurídica.
Há cenas de tanta grandeza, ou de tanta miséria, que, por completas, em seu gênero, se não descrevem: o mundo e o átomo                                                                                     10 por si mesmo se definem; o crime e a virtude guardam a mesma proporção; assim, o escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão.
Eu, que invejo com profundo sentimento esses quatro apósto-      15
los do dever, morreria de nojo, de vergonha, se tivesse a desgraça de, por torpeza, achar-me entre essa horda inqualificável de as- sassinos.
Sim! Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da África, roubados, escravizados, azor-                                                                      20 ragados,9 mutilados, arrastados, neste país clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito e      25 especuladores cínicos, de ladrões impudicos,10 de salteadores sem nome, que tudo isto sofreram e sofrem, em face de uma sociedade opulenta, do mais sábio dos monarcas,11 à luz divina da santa reli-

  1. Lista dos que morreram ou sofreram por uma causa. Ver n. 13, p. 75.
  2. Joaquim de Almeida Leite Moraes (1834–1895), paulista de Tietê, foi profes- sor de direito, vereador, deputado e presidente da província de Goiás.
  3. Açoitados,
  4. Imorais, sem-vergonha.
  5. Referência tão explícita quanto irônica à figura de Pedro

gião católica e apostólica romana, diante do mais generoso e do mais desinteressado dos povos; que recebiam uma carabina en- volvida em uma carta de alforria, com a obrigação de se fazerem matar à fome, à sede e à bala nos esteiros12 paraguaios;13 e que,

5 nos leitos dos hospitais, morriam, volvendo os olhos ao territó- rio brasileiro, ou que, nos campos de batalha, caiam, saudando risonhos o glorioso pavilhão da terra de seus filhos; estas vítimas, que, com o seu sangue, com o seu trabalho, com a sua jactura,14 com a sua própria miséria, constituíram a grandeza desta nação,

10  jamais encontraram quem, dirigindo um movimento espontâneo, desinteressado, supremo, lhes quebrasse os grilhões do cativeiro. Quando, porém, por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano no instinto revoltado, levantam-se, como a razão, e matam o senhor, como Lusbel15

15  mataria a Deus, são metidos no cárcere; e, aí, a virtude exaspera-
-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se, trezentos concidadãos congregam-
-se, ajustam-se, marcham direitos ao cárcere e aí (oh! é preciso que o mundo inteiro aplauda), à faca, a pau, à enxada, a machado,
20 matam valentemente a quatro homens; menos ainda, a quatro negros; ou, ainda menos, a quatro escravos manietados16 em uma prisão!…
Não! Nunca! Sublimaram, pelo martírio, em uma só apoteose, quatro entidades imortais!
25               Quê! Horrorizam-se os assassinos de que quatro escravos matassem seu senhor? Tremem porque eles, depois da lutuosa cena, se fossem apresentar à autoridade?

  1. Terreno baixo, alagadiço e
  2. Referência à Guerra do Paraguai (1865–1870), maior conflito militar do Império e da América do Sul no século
  3. No sentido de
  4. Lúcifer.
  5. Amarrados, de mãos

 

Miseráveis! Ignoram que mais glorioso é morrer livre em uma forca, ou dilacerado pelos cães na praça pública, do que banquetear-se com os Neros17 na escravidão.

Sim! Já que a quadra é dos grandes acontecimentos; já que as cenas de horror estão em moda; e que os nobilíssimos corações                                                                5 estão em boa maré de exemplares vinditas,18 leiam mais esta:

Foi no município da Limeira; o fato deu-se há dois anos. Um rico e distinto fazendeiro tinha um crioulo, do norte,

esbelto, moço, bem parecido, forte, ativo, que nutria o vício de detestar o cativeiro: em três meses fez dez fugidas!                                                                                                10

Em cada volta sofria um rigoroso castigo, incentivo para nova fuga.
A mania era péssima; o vício contagioso e perigosíssima a imitação.
Era indeclinável um pronto e edificante castigo.                      15
Era a décima fugida; e dez são também os mandamentos da lei de Deus, um dos quais, o mais filosófico e mais salutar é: castigar os que erram.
O escravo foi amarrado, foi despido, foi conduzido ao seio
do cafezal, entre o bando mudo, escuro, taciturno dos aterrados    20
parceiros: um Cristo negro, que se ia sacrificar pelos irmãos de todas as cores.
Fizeram-no deitar: e cortaram-no a chicote, por todas as par- tes do corpo: o negro transformou-se em Lázaro;19 o que era
preto se tornou vermelho.                                                          25
Envolveram-no em trapos…

  1. Referência a Nero (37–68), imperador de Roma que passou à história como símbolo de tirania e violência.
  2. O mesmo que vingança,
  3. Provável referência a Lázaro de Betânia, personagem bíblico descrito no Evangelho de João (11:41–44), que, quatro dias após sua morte, teria sido res- suscitado por milagre de Jesus. O contexto que invoca o tema do sacrifício reforça essa No entanto, a referência também pode ser a Lázaro, men- digo e leproso que protagoniza a conhecida parábola “O rico e Lázaro”, narrada no Evangelho de Lucas (16:19–31).

 

Irrigaram-no a querosene: deitaram-lhe fogo… Auto de fé agrário!…
Foi o restabelecimento da inquisição; foi o renovamento20 do touro de Fálaris,21 com dispensa do simulacro de bronze; foi
5 uma figura das candeias22 vivas dos jardins romanos; davam-se, porém, aqui, duas diferenças: a iluminação fazia-se em pleno dia; o combustor23 não estava de pé empalado; estava decúbito;24 tinha por leito o chão, de que saíra, e para o qual ia volver em cinzas.
10               Isto tudo consta de um auto, de um processo formal, está arquivado em cartório, enquanto o seu autor, rico, livre, poderoso, respeitado, entre sinceras homenagens, passeia ufano, por entre os seus iguais.
Dirão que é justiça de salteadores?
15               Eu limito-me a dizer que é digna dos nobres ituanos, dos limeirenses e dos habitantes de Entre-Rios.
Estes quatro negros espicaçados pelo povo, ou por uma aluvião de abutres, não eram quatro homens, eram quatro ideias, quatro luzes, quatro astros: em uma convulsão sidérea
20    desfizeram-se, pulverizaram-se, formaram uma nebulosa.
Nas épocas por vir, os sábios astrônomos, os Aragos25 do futuro, hão de notá-los entre os planetas: os sóis produzem mun- dos.

25

  1. O mesmo que renovação.
  1. Paulo, 13 de dezembro de 1880

Teu luiz gama

 

  1. O touro de bronze, que leva o nome do déspota Fálaris, foi uma máquina de tortura e execução, símbolo máximo da crueldade na Espécie de esfinge taurina onde o executado era confinado e queimado, tendo seus gritos de suplício canalizados até a boca da esfinge, que parecia urrar com a tortura.
  2. Espécie de tocha acendida ao queimar um pavio embebido em óleo.
  3. O que queima,
  4. Posição corporal deitada, de barriga para baixo ou de
  5. Dominique François Jean Arago (1786–1853) foi um astrônomo, deputado e ministro francês.

Liberdade, Luiz Gama, Editora Hedra

O texto acima, que está em «Liberdade», faz parte das Obras Completas de Luiz Gama, advogado negro e abolicionista, a serem lançadas em dez volumes com cerca de 800 escritos de Gama — 600 inéditos —, revelando as diversas facetas e estilos empregados pelo escritor para advogar pela grande causa de toda sua vida: a abolição da escravidão e a emancipação negra. Grande parte dos textos ficou esquecida por quase dois séculos após suas publicações em jornais da época e foi recuperada pelo pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, que passou nove anos localizando-os em arquivos da imprensa e do judiciário de todo o país. Os textos deste volume são fruto da campanha pela abolição radical que também visava à garantia da educação e cidadania para os libertos: o abolicionismo de Gama exigia cidadania e igualdade de fato e de direito. A importância desta reunião de escritos deve-se também ao fato de que o advogado refletia sobre o processo histórico em curso, e propunha soluções políticas para o tempo presente, revelando sua natureza intelectual até hoje pouco conhecida e quase sempre não reconhecida. «Liberdade» registra o surgimento de um tipo de literatura de combate que exigia a imediata abolição da escravidão. Compreende o período de 1880 a 1882, último período da vida do escritor. Apesar da recorrente temática abolicionista na obra de Gama presente desde o primeiro volume de suas Obras Completas, é somente em 1880 que a campanha pela liberdade ganha uma dicção específica.