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Saramago, Pound e Heidegger: ideologia e literatura

Em meio às previsíveis louvações a Saramago por sua morte, falou-se tanto de sua obra (ainda que relativamente pouco de seus méritos linguísticos próprios – porque de fato poucos –, ou elididos ou substituídos por adjetivos altissonantes) quanto de sua “lucidez”, “coerência”, “firmeza” ou “sensibilidade”. Trocando em miúdos, seu comunismo. E ainda que alguns veículos tenham dado destaque negativo, por exemplo, a seu acrítico apoio ao governo cubano, a maioria das manifestações ou edulcorou sua ideologia ou a desconsiderou (coisa que ele próprio jamais fez). Mas se em vez de comunista ele fosse fascista, tal fato também teria sido assim edulcorado? Na verdade, não. Teria sido descaracterizado. A diferença é importante.

Edulcorar é adocicar, amenizar, positivar. Saramago era então comunista não porque fosse antidemocrático, muito embora, por ser comunista, fosse antidemocrático, mas porque era “comprometido com seu tempo” (desconsiderando a morte histórica do comunismo) e “sensível à injustiça” (desde que não de responsabilidade de ditadores de esquerda). Já descaracterizar é negar um caráter, uma característica. Assim, quando se tornou necessário explicar o apoio de Pound ao regime de Mussolini sem considerar seu apoio ao regime de Mussolini, ele foi diagnosticado como louco, o que antes jamais fora, nem na vida privada nem na pública. Algo equivalente se passou e se passa com Heidegger em relação ao nazismo. Pois aceitar que Pound tenha sido fascista e Heidegger nazista cria um problema epistemológico e outro pessoal aparentemente insolúveis. Em termos pessoais, como posso admirar ou respeitar a obra de um fascista? Em termos epistemológicos, a obra de um fascista não deve ser ela mesma fascista, em algum grau? O que nos devolve ao problema pessoal: como posso admirar ou respeitar uma obra com elementos fascistas?

A questão, porém, não se coloca para obras de comunistas como Saramago. Pois não apenas se pode como, segundo muitos, deve-se não só respeitá-la como ainda admirá-la.

Não tenho nada contra a se respeitar e admirar a obra de um estalinista. Pois entendo que a obra de um estalinista será respeitável e admirável em algum grau, se for afinal em algum grau admirável e respeitável, a despeito de seu autor, e não devido a ele – como, da fato, alguns argumentaram em relação a Saramago. O mesmo, portanto, deveria valer para um fascista, ao menos no caso de um fascista artista – do mesmo modo que Saramago era um comunista escritor. Ainda que não para um artista fascista – ou para um escritor comunista, ou seja, realista-socialista. Tampouco para um pensador fascista, por este não poder se diferenciar de um fascista pensador. Enfim, se Saramago e Pound, assim como García Márquez e Borges, podem ser lidos sem maiores questionamentos (a não ser quanto às diferenças verdadeiramente irredutíveis entre suas respectivas qualidades artísticas), o mesmo não vale para Heidegger, porque um filósofo lida com conceitos, assim como a ideologia.

Porém isso não acontece. O fascismo de Pound foi simplesmente negado, já em seu tempo, por sua conveniente loucura pós-Segunda Guerra, e o direitismo de Borges foi, enquanto vivo, fortemente repudiado, tendo sido, em termos práticos, o fator responsável por ele não haver ganhado o Nobel, ao mesmo tempo que um escritor latino-americano de estatura literária infinitamente inferior, mas devidamente de esquerda, Gabriel García Márquez, o recebia. Premia-se, em mais de um sentido, o escritor de esquerda, e condena-se, de mais de uma forma, o escritor de direita. Porque, como dito, ser de esquerda se pode, e talvez mesmo se deva, mas ser de direita não se deve nem se pode. Por isso mesmo, ser um escritor de esquerda não faz mal algum à carreira literária, muito ao contrário, enquanto a um escritor de direita só é dado se impor pelo caminho estreito do puro mérito.

O problema é que tanto a esquerda estalinista – caso do próprio Saramago – quanto a direita fascista – caso de Pound, mas não de Borges – são igualmente antidemocráticas. Não obstante, seu antidemocratismo não é percebido do mesmo modo. Daí um ser edulcorado – como no caso de Saramago – e o outro ser repudiado ou descaracterizado – como no caso de Pound. Há, então, o antidemocratismo aceitável, o da esquerda, e o antidemocratismo inaceitável, o da direita.

A questão não teria sentido caso o direito fosse concedido pela própria esquerda – que, ao menos a revolucionária, não é democrática, mas favorável à ditadura do partido único. Porém a fonte do direito são aqui os próprios democratas, o que torna a questão tanto mais precisa quanto surpreendente: por que, afinal, setores progressistas das sociedades democráticas toleram o desdém à democracia à esquerda?

A resposta, ou melhor, as respostas, além de múltiplas, são relativamente fáceis, ainda que talvez insuficientes. Em parte, a questão é teleológica: o socialismo traria no final a redenção, ao contrário do fascismo, que não traz nada além de si mesmo. Em parte, é o discurso das intenções sobre a realidade dos fatos: eles são no fundo bons, como pretendem, apenas cometeram erros. Em parte, são razões históricas: depois dos processos de Moscou, em que Stálin eliminou a nata da Revolução Russa, da perseguição a anarquistas e trotskistas na guerra civil espanhola e do pacto nazissoviético, a esquerda como um todo se engajou francamente na luta contra o nazifascismo. Em parte, é a aura romântica do voluntarismo: Trótski, Che etc. Em parte, é porque a esquerda representa a rejeição ao capitalismo, do qual os democratas gostam, mesmo porque gostam do conforto capitalista, mas do qual muitos não gostam de gostar.

Pois ao menos desde meados do século XIX, mais precisamente, desde 1848, com a publicação do Manifesto comunista, o capitalismo é apontado como o mal maior, o maior mal possível, para cuja supressão todos os meios, portanto, são bons.

Menos, talvez, o genocídio. Os milhões de mortos por Stálin, as dezenas de milhões mortos por Mao Tse Tung e o milhão de cambojanos mortos por Pol Pot, entre tantos outros, tornaram então o estalinismo, também conhecido como “socialismo real”, ainda mais inaceitável do que o próprio capitalismo e sua tradução política paradigmática, a democracia liberal. Não se trata mais, assim, de afirmar as qualidades irresistíveis do capitalismo, como fazem os liberais e os direitistas, mas de simplesmente não negar os vícios, maiores e piores, do “socialismo real”.

Em suma, o “socialismo real” deixou como herança histórico-político-ideológica a necessidade de escolher entre o ruim, o capitalismo e a democracia liberal, e o pior, o próprio “socialismo real”, com sua mistura tóxica de inépcia econômica e opressão política. Sendo assim, o ruim é naturalmente melhor.

Ocorre que o ruim, se melhor, é também real. Já o mito da bondade “essencial” da esquerda, pelas prováveis razões expostas acima, como todo mito, tem uma inércia própria, ou seja, impermeável aos fatos, e na verdade desgostosa deles, ou não se necessitaria de mitos. Enfim, o mito é, por construção, sempre “melhor” do que a realidade. Saramago que o diga.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).